Capítulo 24
Ângulos
— Eu pedi fatias de pepino e não suco de pepino, menino!
A mãe de Lucas gritou do outro lado da cozinha do restaurante, tirando o rapaz do torpor em que ele estava, com a cabeça em outro planeta enquanto esfacelava o pobre vegetal na tábua de corte.
O futuro jornalista não estava sendo de muita ajuda para a mãe e tia naquele dia, mas elas não podiam se dar ao luxo de mandá-lo embora no dia mais movimentado da semana. Domingos eram caóticos para o pequeno restaurante familiar de comida coreana, mas, quando o irmão mais novo de Lucas, Murilo, apareceu com um recado para o jovem, as mulheres respiraram com certo alívio.
— Ô Lucas, tem um cara te chamando lá no caixa!
O pré-adolescente, que já ostentava algumas espinhas no rosto, disse enquanto mastigava um chiclete de boca aberta de uma forma muito desleixada.
— Espero que você não esteja atendendo os clientes como se fosse uma vaca no pasto, com isso na boca. — Lucas disse com rispidez, limpando as mãos no avental.
— Nossa, mas como tá azedo, hein! — o menino reclamou dando as costas para o irmão e voltando para o salão, onde ele limpava as mesas.
— Eu não vou discordar dele, viu, filho! — a mãe do rapaz disse, enquanto mexia uma panela no fogão industrial.
— Também acho. Coce onde está coçando, menino! — sua tia Jina falou com um sotaque carregado.
As mulheres naquela cozinha não podiam ser mais diferentes, então se elas concordavam em alguma coisa, isso só poderia significar problemas.
A mãe de Lucas, Irene, era uma brasileira de gênio forte, mas que disfarçava isso dizendo apenas que era uma pessoa prática. Enquanto sua tia Jina, irmã mais velha do pai do rapaz, tinha um espírito livre, do tipo de pessoa que deixava acontecer naturalmente e sem pressa alguma.
Normalmente, quando estava ajudando na cozinha, Lucas as provocava sobre isso, jogando no ar algum tema do qual elas obviamente discordariam, apenas para rir um pouco e fazer por merecer o apelido de Pentelho que elas lhe deram. No entanto, desde que ele tinha chegado em casa ontem à noite, depois da briga com Guilherme, o jovem estava irritadiço e disperso.
Ele tinha aceitado o conselho de Malu em dar um tempo e esfriar a cabeça, mas isso o estava enlouquecendo, por isso o seu mau humor repentino. Lucas ainda não conseguia mudar seu ponto de vista, que era muito simples, seu namorado vivia em uma bolha e não estava preparado e muito menos disposto a enfrentar o mundo real.
O jovem ainda remoía esses pensamentos quando deixou a cozinha e caminhou de cara fechada por entre as mesas, que se enchiam de clientes, até ter a surpresa de encontrar o namorado encostado no balcão do caixa, remexendo no pote de balas de hortelã que era cortesia do local.
— Gui? O que você está fazendo aqui?
Eles estavam juntos há um tempo considerável, mas o designer nunca esteve no restaurante da família de Lucas, que ficava do outro lado da cidade. Ele também nunca tinha conhecido pessoalmente seus parentes.
— É que eu, hum, queria te falar, é, te mostrar a revista. — ele falou pausadamente, como se procurasse as palavras certas diante da atenção persistente do irmão caçula de Lucas.
— Você já mostrou para a Malu e o Diego? — O tom de Lucas foi ríspido.
— Não, eu ia mandar para eles amanhã. — Guilherme estava desconfortável e um pouco constrangido, mudando o peso do corpo de um pé para o outro enquanto evitava o olhar do adolescente atrás do balcão do caixa. — Será que a gente pode conversar em outro lugar, Lucas?
Por um segundo ou dois, Lucas pensou em negar, dar as costas e voltar ao seu trabalho, porque no fundo ele estava com raiva do namorado. Mas, como o problema era dos dois e só eles poderiam consertar, o rapaz caminhou até uma das mesas, no fundo do salão, e se sentou.
— Tudo bem, eu não vim aqui te mostrar a revista, eu nem fechei o arquivo. Na verdade, eu queria conversar com você.
— Eu estou ouvindo, pode falar. — Lucas disse com rispidez.
— Você não vai facilitar a situação para mim mesmo, né? — Guilherme usou seu charme para adoçar o namorado, lhe lançando um sorriso tímido.
— Eu acho que você já tem muita facilidade na vida Guilherme, e se eu falasse alguma coisa, só ia parecer um mosquito no seu ouvido. — Ele cruzou os braços deixando ainda mais evidente sua posição defensiva.
— Não é assim também, Lucas! O que você me falou ontem, eu levei em conta! — Guilherme fez uma pausa, aguardando algum tipo de reação do namorado, mas quando isso não aconteceu, ele continuou. — Eu sei que sou privilegiado e que isso é uma diferença entre nós, mas isso não muda o que eu sinto por você. Eu ainda imagino um futuro para a gente, juntos.
— Acontece que para chegar nesse futuro, existe o presente, Guilherme, e eu queria muito acreditar que o amor move montanhas e vence tudo, mas as coisas não são assim.
— Lucas, eu sei que o amor sozinho não faz nada, e é por isso que eu quero fazer a minha parte. Eu não quero perder o que temos. Você é a primeira pessoa com quem eu quero falar quando acordo e a última em quem eu penso antes de dormir.
O futuro jornalista não conseguiu se manter impassível e frio diante da declaração do namorado, porque aquelas palavras todas e o comprometimento que ele viu nos olhos castanhos e meigos de Guilherme eram tudo o que ele no fundo queria do rapaz. Sem pestanejar, Lucas se atirou por sobre a mesa e beijou o namorado, derrubando o porta guardanapo que estava ali.
— Que lindo, hein, Senhor Lucas!
A voz da mãe do rapaz fez com que o casal se separasse, mas foi Guilherme quem ficou petrificado em um misto de vergonha e medo, pois ele não sabia muito bem sobre a posição da família de Lucas em relação ao seu namoro. E a mulher que parou ao lado da mesa parecia estar bem aborrecida.
— Mãe, esse é o Gui, meu namorado. — Lucas apresentou, com um sorriso no rosto, mas acabou levando um peteleco na cabeça da mulher.
— Você poderia ter avisado que ele vinha! Eu estou toda desconjuntada! — A mulher ajeitou a redinha no cabelo, enquanto falava. — É um prazer te conhecer Guilherme! Você é mais bonito do que eu imaginava.
— Añh o prazer é meu, senhora. — o jovem respondeu com constrangimento.
— Irene, sua panela tá pegando fogo! — a tia de Lucas apareceu no vão da boqueta.
A mulher ao lado da mesa revirou os olhos e apertou as mãos e dentes, demonstrando a sua genuína irritação. E com a reação dela, Guilherme ficou feliz por estarem longe das mesas com clientes e o mais próximo possível da cozinha.
— E por que você não tira do fogo, criatura divina de Deus?
— Porque você me ameaçou com um cutelo da última vez em que eu encostei na sua preciosa panela! — A mulher do outro lado disse com seu sotaque ainda mais forte.
— Ah então isso é desculpa para botar fogo no lugar inteiro, Jina? — Irene rebateu, colocando as mãos na cintura, em defensiva.
Diante da iminente guerra entre as mulheres, Lucas se levantou e olhou para o namorado.
— É melhor eu voltar, antes que isso vire um ringue de luta.
— Olha, eu até queria te liberar, filho, mas com a sua irmã fazendo aquela prova, vai ser apertado fazer o atendimento hoje.
— Eu posso ajudar! — Guilherme se ofereceu de imediato.
— E você lá entende alguma coisa de cozinha? — Lucas perguntou com zombaria.
— Eu aceito!
Os dois rapazes olharam para a cozinha diante da rapidez dela.
— E ele vai fazer o quê, mãe?
— Lavar a louça já vai ser um adianto. — A mulher empurrou o filho pelo braço. — Vai lá e arranja um avental para ele, que eu aproveitar e colocar a sua tia aqui na frente para me livrar dela.
— Eu ouvi isso, viu! — Jina ralhou da porta da cozinha, por onde saiu pisando dura enquanto tirava o avental.
Guilherme observou a mulher com traços orientais se aproximar cada vez mais dos três ao redor da mesa e por um segundo, ele se imaginou tendo que apartar uma briga física, no entanto, assim que a Jina os alcançou, ela empurrou o avental no peito dele.
— Bem-vindo à família, menino! Mas cuidado, que a sua sogra é uma jararaca!
Nem um milésimo de segundo depois, a mulher já estava do outro lado do restaurante, separando os cardápios na entrada.
— Ela só tá viva, porque é esperta. — Irene resmungou.
— Ah, mãe, para né? Você sabe que ela está no lado ninja da família. — Lucas a provocou.
— Lado ninja? — ela debochou. — Vai trabalhar menino, que de ninja você não tem nada.
A mulher o enxotou com um tapinha no ombro, antes de caminhar para a cozinha ratiando sobre a ingratidão dos filhos.
— Você não precisa ficar. — Lucas disse, ao segurar a mão do namorado e entrelaçar os dedos com o dele.
— Mas eu vou. — Guilherme acenou com a mão livre, expondo o avental com desenhos de pimentas vermelhas e amarelas. — Além do mais, eu talvez nunca tenha te dito, mas eu sempre imaginei a gente em um curso de culinária.
— Isso é bem brega, mas eu AMEI! — Lucas riu da confissão dele.
— Ei, casal vinte! — a mãe gritou da boqueta. — Ainda tem uma pia cheia de louça por aqui e legumes para serem descascados.
Ao contrário do esperado, os dois rapazes caminham felizes para o trabalho árduo que os esperava, cada um carregando um pouco de esperança de que as coisas mudariam e ficariam bem.
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Diego estava cansado de ouvir o drama de seu irmão sobre a situação "Babi em fuga", mas ele também não podia negar que estar à disposição de Alex naquele dia — ligando para todos os hotéis que ele encontrou na internet e a agenda de funcionários da empresa dele — tinha tirado da sua mente a obrigação de consertar as coisas com a Malu, porque ele odiaria ter que admitir para si mesmo que estava procrastinando essa tarefa.
É claro que ele já tinha pensado em mil e uma opções de como abordar o assunto e ser direto em seu pedido de desculpas. Foi uma coisa de momento. Eu pensei que você fosse outra pessoa. Não é você, sou. No entanto, ele não tinha coragem de encarar a garota e ver a decepção naqueles olhos grandes e expressivos.
— A Babi fez um saque da conta jurídica que eu não estava sabendo... Vou confirmar com o gerente do banco isso. Vinte mil é um valor pequeno, mas ela nunca foi de fazer isso... Será que ela foi sequestrada? Assaltada? Eu sinto que tem alguma coisa errada nessa história... Ela comentou alguma coisa com você aquele dia, Diego?
Diego não sabia quando aquela atração entre eles começou de fato, mas ele tinha a total certeza de que ele não queria ferir os sentimentos de Malu, portanto, qualquer envolvimento que ultrapassasse a barreira do amigável estava fora de questão.
— Diego? Diego?
Ter esbarrado com ela tinha sido um grande golpe de sorte e ele não estava disposto a colocar em risco o desenvolvimento da revista. Não quando eles já estavam tão perto de terminar o projeto.
A reunião da diretoria estava planejada para o final da próxima semana, uma data com luzes neon piscando no calendário de cada funcionário do alto escalão da editora. E talvez os outros pudessem estar preocupados com isso, mas Diego tinha toda a confiança do mundo de que ele sairia daquela sala com aplausos por sua ideia genial.
— Às vezes eu acho que quando você era bebê e eu te derrubei do berço, causei alguém dano irreparável nessa sua cabeça. — O cutucão na testa que Diego recebeu em conjunto com a frase do irmão o fez voltar ao presente.
Eles estavam na mesa de jantar, ambos com os computadores abertos na busca incansável por uma pista do paradeiro da assistente do irmão, mesmo que o jovem estivesse a cada cinco minutos dizendo para Alex deixá-la em paz. No entanto, ele aparentemente tinha perdido os últimos instantes da conversa e isso tinha tirado o homem do sério, já que ele o encarava com fúria no olhar.
— E você está dizendo isso por quê?
— Porque eu estou aqui, há uma meia hora, falando sobre um assunto sério e você simplesmente se desligou.
— Será que é porque você já falou a mesma coisa um milhão de vezes? — Diego rebateu, cruzando os braços, em uma posição defensiva.
— Ou será que é porque você é um puta de um egoísta, que sequer se deu ao trabalho de me ouvir! Quando você vai crescer Diego?
— Ah fala sério, Alex! Não eu sou quem não consegue ouvir um não, é você!
— É sou mesmo, sou eu quem não... Ah quer saber de uma coisa, deixa quieto, pode voltar para a sua vida Diego.
Alex se levantou da mesa, impaciente com a preocupação que rondava seus pensamentos e a irritação com a indiferença do irmão caçula. Ele preferiu se afastar para evitar dizer coisas que estavam engasgadas há um tempo, mas que provavelmente magoariam o rapaz temperamental.
— Ei, volta aqui, eu te ajudo, Alex. Para de ser um bebê chorão! — Diego gritou para as costas do irmão.
Respirando fundo para manter a calma diante do desconforto que tinha surgido entre os dois, Diego se preparou ir atrás do irmão e descobrir o que tinha mexido com as suas emoções sempre tão sensíveis, mas antes que ele levantasse da mesa, a notificação da chegada de um e-mail da Editora Benini o fez estacar no lugar.
Diego Sentiu o coração palpitar, por receber ao domingo uma mensagem oficial de Geraldo, imaginado de imediato, que tipo de humilhação o chefe planejava para ele. Mas ao analisar com calma o conteúdo daquele e-mail, ele sentiu o sangue gelar nas veias e o desespero começar a tomar conta de cada célula do seu corpo.
Todos os diretores de departamento estavam copiados naquela mensagem que simplesmente comunicava, em caráter de urgência, o adiantamento da reunião para o dia seguinte, às três da tarde.
O que significava que a revista da Senhorita Flamejante tinha menos de 24 horas para ser finalizada e impressa para a apresentação.
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