Capítulo 21
Sangria
Heitor estava diferente. E não apenas pela ruga de confusão em sua testa, algo inédito para Malu — que sempre viu o amigo barra ex-namorado com o semblante leve e um sorriso no canto dos lábios. E, também, não era a barba mais espessa ou os músculos mais salientes que esgarçavam um pouco sua camiseta. Não era nada físico, embora Malu não conseguisse deixar de notar o quão bonito ele estava ou o quanto ela tinha sentido falta dele, não, a diferença no rapaz estava em algo que emanava dele, como a sua aura ou algo do tipo.
— Heitor? — Malu se afastou rapidamente de Diego, como se ele fosse uma panela quente. — O que... o que você está fazendo aqui?
— Eu, é, hum... — Heitor coçou a cabeça e agarrou com força a alça da mochila que carregava, enquanto observava Malu e Diego, passando os olhos de um para outro, como se assistisse uma partida de tênis. — Vim pegar uma água.
— Ele também! — A jovem respondeu de imediato, sem conseguir formar uma frase coerente.
— Desculpe? — Heitor perguntou confuso.
— Acho que vocês querem privacidade, não é? — Diego perguntou poucos antes de sair à francesa do vuco-vuco que aquela área do bar havia se transformado.
Malu percebeu que em nenhum momento Diego olhou para ela, nem sequer quando lhe deu as costas e mergulhou na multidão da pista de dança.
— Cara legal. — disse Heitor, tentando quebrar o constrangimento.
— O Diego?
— Acho que sim... Vocês estão juntos há muito tempo? — Malu percebeu que Heitor contraiu a mandíbula, um movimento que fazia sempre que tentava conter sua emoção.
— A gente está trabalhando junto.
— Ele também é da pet shop?
Aquela situação toda não parecia fazer sentido algum e Malu imaginou que poderia estar simplesmente sonhando, mas ao ser empurrada novamente por um homem que parecia fugir de uma manada de elefantes, a jovem percebeu que estava acordada e vivendo um tipo de pesadelo. De repente, aquele lugar lhe pareceu claustrofóbico e a música ensurdecedora.
— Vamos lá para fora Malu, você está ficando verde. — Heitor a escoltou por entre a multidão, mas eles foram parados no caminho.
— Ué, a Lívia, virou esse gatinho aí? — Stephanie já estava com a língua solta de quem tinha álcool o suficiente no sangue. — E cadê o outro que estava com você?
— Stephie, acho melhor você parar de beber. — Mel surgiu ao lado da garota.
— Não, não, Mel. Eu só queria entender porque a Malu tem dois e eu não tenho nenhum! — Os olhos da futura contadora ficaram marejados. — O outro cara até ligou na loja hoje, só para saber da "Maluzinha" dele! Foi tão romântico!
— Hum, na verdade fui eu quem ligou. — Heitor falou, um pouco constrangido. — Eu estava na escala do voo e queria encontrar a Malu assim que descesse do avião.
— Queria? — Malu sentiu seu peito apertar e não tinha nada a ver com o mal-estar que a acometeu.
— Tá vendo, Mel? Por que eu não consigo isso?
— Eu vou rezar para esse DJ não tocar "Evidências". — Mel resmungou, enquanto segurava a amiga pelos ombros. — O que você acha de a gente pedir uma sobremesa Stephie?
A veterinária guiou Stephanie de volta ao mezanino, provavelmente para colocar alguma glicose na corrente sanguínea da jovem. E Malu até pensou em se oferecer para ser a babá da vez, mas o leve toque de Heitor em sua mão a lembrou de que ele, talvez, tivesse cruzado o oceano apenas para conversar com ela.
O casal caminhou até uma varanda, com vista para a rua, que tinha placas de "reservado" nas mesas do espaço aberto. Ali, eles tinham total privacidade, pois eram os únicos no ambiente tecnicamente proibido do restaurante-bar.
— Seus amigos parecem ser divertidos. — Heitor começou. — Até o seu novo namorado.
— Ele não é o meu namorado. — Pela segunda vez na noite, aquela frase saia da boca de Malu.
— E pelo visto, eu também não. — O rapaz parecia realmente magoado. — Você só poderia ter me avisado antes, acho que eu merecia no mínimo isso, né Malu?
Todos aqueles sentimentos que ela tinha enterrado depois da ligação dele no metrô, saíram da cova rasa em que estavam, assim como zumbis famintos em um filme de terror.
— Eu estou confusa aqui, Heitor! — Malu colocou as mãos na cintura, numa clássica pose de quem iria soltar os cachorros. — Você já estava até namorando com outra pessoa! E eu sim não recebi memorando nenhum!
— Namorando com quem Malu?
— Com a mulher incrível que você conheceu no hotel! — ela ressaltou com deboche as palavras. — Tudo bem que o nosso relacionamento tinha esfriado, nossos horários não batiam e a gente quase nunca se falava... — Heitor tentou falar, mas ela o calou com um gesto de mão. — Mas sei lá, um e-mail me dizendo que para você já não estava mais dando certo seria bom, você não acha? Mas ao invés disso, você me contou da sua nova namorada como seu eu fosse só a sua boa e velha amiga!
Malu terminou seu discurso acalorado sem fôlego e ficou surpresa por Heitor apenas a encarar com olhos arregalados e a boca meio aberta, completamente pasmo. Demorou um pouco para ele ter alguma reação.
— De tudo isso que você falou, Malu, a única coisa que está certa e não posso discutir, é que você é e sempre vai ser a minha amiga, minha melhor amiga nesse mundo. E é por isso que eu peguei um avião, no improviso, só para te falar dessa mulher...
— Você só pode estar brincando, né Heitor? — A jovem estava a um segundo de explodir de raiva, por isso, ela começou a se afastar.
— Não, Malu, eu me expressei errado. — O rapaz deu um salto, se colocando na frente dela e impedindo a sua passagem. Ele não ousou tocá-la, com medo da sua reação, mas se apressou em explicar. — Eu só queria dizer que independente do nosso namoro eu sempre vou fazer de tudo para ver a sua felicidade.
— Só que no momento eu não estou nenhum pouco feliz!
— Me deixa explicar Malu. — Heitor parecia desesperado. — Eu conheci a Ana no hotel sim, mas foi durante uma convenção que estava acontecendo, e ela é de Portugal, então entendeu quando eu xinguei um cara folgado no saguão, e Malu, ela trabalha na equipe da CWS Comics. E eu falei de você, dos seus desenhos e ela ficou interessada, porque ela é quem faz o recrutamento dos quadrinistas para as revistas clássicas deles.
Toda aquela informação demorou para ser processada pela jovem, mas ao final, surtiu em Malu uma confusão de sentimentos, uma verdadeira mistura de alívio, excitação, incredulidade e uma boa dose de culpa.
Ela se tinha se enganado muito com Heitor.
A jovem sentiu suas pernas falharem e se sentou em uma das cadeiras vazias da varanda. Nesse momento, ela viu passar pela rua um carro do mesmo modelo que Diego dirigiu mais cedo e tudo pareceu ficar mais confuso e nublado em sua cabeça e coração.
— E então Malu? Você quer conversar com a Ana? Mostrar o seu portfólio? — Heitor se agachou a sua frente, não querendo perder o contato visual com ela, mas sua postura era de quem tinha receio de ser enxotado. — Estamos falando da liga dos super-heróis, aquele pessoal que está nos cinemas e na cultura há décadas... Essa é, tipo, uma chance...
— Única. — Ela completou a frase dele, mesmo estando completamente atordoada. — Heitor, você veio da Europa só para me contar isso?
— Vim... Você não me atendia, não visualizava minhas mensagens e não retornava os recados que eu pedi para os seus pais e a sua madrinha te passarem. Eu só... só não achava certo te privar dessa chance, então, eu peguei as milhas dos meus pais e comprei as passagens de volta...
— E o seu trabalho? E a sua vida na Irlanda? — ela perguntou descrente de que aquilo fosse realidade.
— Eu disse que estava doente. E tenho certeza de que o frio vai continuar me esperando quando eu voltar.
— Sua mãe vai querer te matar. — Malu não resistiu ao riso, quando imaginou a Dona Lourdes surtando com a fuga do filho.
— Vai mesmo. — ele riu também. — Mas só depois que me abraçar, bem naquele no estilo Felícia.
Eles se encararam, com o peso de tantos anos recaindo sobre os dois naquele instante. Eles se conheciam desde a infância, brincaram juntos e se apaixonaram assim, da mesma forma em que cresciam. E agora, parecia uma ideia estranha e absurda imaginar que esse sentimento morreria com facilidade.
— Senti sua falta, Maluzinha.
Antes que a jovem pudesse responder, um Lucas com irritação estampada em cada milímetro do seu rosto apareceu na entrada da varanda.
— Você não vai acreditar no que aqueles dois fizeram! — Lucas disse apontando para o celular que trazia nas mãos, até que notou o rapaz agachado na frente da moça. — Hum, quem é você?
— Ah, Lucas, esse é o Heitor! — Malu se levantou de súbito, quase derrubando o antigo amigo no processo. — E Heitor, esse é o meu amigo Lucas.
Os rapazes se encararam por um segundo.
— Oi cara, tudo bem? — Heitor estendeu a mão em cumprimento, ignorando que Lucas parecia medi-lo como se seus olhos tivessem raio-x.
— Tudo bem. — Lucas devolveu o gesto sem desviar o olhar ou diminuir sua desconfiança. — Você é o ex namorado? E não estava em outro país? Com outra amiga? — A última palavra foi dita com ênfase suficiente para deixar claro o verdadeiro sentido que o jovem buscava.
— Obviamente eu não estou em outro país e não estou com outra amiga. — Heitor respondeu em um tom plano e contido, ainda balançando a mão do jovem jornalista. — Sobre a parte do ex namorado, só a Malu vai poder te dizer.
Sentindo a tensão que crescia entre os dois, Malu interveio separando-os do aperto de mão que parecia durar uma eternidade.
— Tudo bem, podem abaixar a crista, porque nenhum dos dois tem jeito para galo de rinha.
A frase da garota fez um sorriso aparecer no rosto de Heitor e uma ruga de confusão no de Lucas.
— Já usou essa com os meninos? — Heitor perguntou.
— Não, essa foi criada exclusivamente para vocês, mas pode deixar que eu vou incluir na minha cartilha de irmã mais velha. — Ela brincou com o amigo e Lucas percebeu a familiaridade entre eles, antes de ter sua atenção requerida pela seguinte pergunta de Malu. — O que você ia falar quando entrou aqui, Lucas?
— Ah, é só que o Gui e o Diego foram embora. — Ele deixou claro em sua voz e gestos bruscos a irritação com a dupla. — O Guilherme inventou uma dor de barriga ridícula e o Diego o levou para casa.
— O quê? — Malu pegou seu próprio celular na bolsa para confirmar a história, mas sua mente rapidamente a lembrou de que ela havia visto um carro, igual ao do publicitário, cruzar a rua minutos atrás.
— É isso mesmo, perdemos a nossa carona e eu a minha D.R., porque eu estava ali no bar só montando o meu roteiro para a discussão monumental que eu e o Guilherme íamos ter, mas já era de se esperar que ele fosse correr...
A explosão do rapaz deixou Malu um pouco preocupada e ela logo tentou apaziguar a situação, ignorando a sensação confusa que o abandono de Diego causou nela.
— Eu não sei o que aconteceu entre vocês, mas às vezes foi até melhor ele ter ido embora, Lucas. Assim vocês conversam amanhã, com a cabeça fria...
— Não querendo me meter, mas eu acho que a Maluzinha tem razão. — Heitor falou. — Cabeça fria nos dá novas perspectivas.
O conselho tinha obviamente a intenção de atingir tanto Lucas quanto Malu, mas a jovem tinha a cabeça anuviada com informações demais para processar.
— Acho então que a noite acabou para todo mundo né? Por que até a aniversariante saiu carregada por aquele amigo de vocês com cara de bravo. — Lucas disse.
— O Bruno?
Malu não precisou pensar duas vezes para saber de quem Lucas falava, mas, como se o universo quisesse apenas confirmar a cena descrita, o telefone de Malu vibrou em sua mão, avisando que uma imagem havia sido envida no grupo da pet shop. Na foto, Stephanie parecia um saco de batatas jogado nas costas de Bruno, que por sua vez tinha o semblante fechado e a roupa suja com o que só poderia ser vômito.
O envio havia sido feito por Marcelo, que prometia não deixar nunca aquele vexame da futura contadora cair no esquecimento. E em seguida, Mel explicava que todos estavam indo embora, pois além de Stephanie, ela e Lívia estavam passando mal e que aquilo com certeza só poderia ser bebida adulterada ou copos mal lavados. Rapidamente uma discussão sobre desculpas para quem não conhecia o limite da bebida se iniciou entre os dois e Malu simplesmente mandou um emoji antes de se desligar da conversa.
— Acho que perdemos todas as nossas caronas. — ela comentou com um muxoxo, pois se não bastasse a confusão em sua mente envolvendo Diego, beijo, Heitor e a tal Ana com a oportunidade de trabalho, ela ainda precisaria usar um mapa para ir embora.
— Vamos de ônibus? — Heitor ajustou a mochila nas costas. — Tem um ponto na outra esquina.
— Como é que você chegou aqui, afinal de contas? — Lucas perguntou.
— Dois aviões e três ônibus. — ele respondeu com simplicidade, do jeito que sempre costumou ser e essa constatação fez uma parte de Malu se aquecer.
Seu melhor amigo tinha voltado, mas a verdadeera que ele parecia nunca ter ido embora.
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gente linda que está acompanhando essa saga desde 2019, vocês gostariam de ver Malu e sua gangue na versão física ou na Amazon?
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