"Só viver não é o bastante.
É preciso ter brilho, liberdade e uma pequena flor."
ANDERSEN, Hans Christian
Ariella sabia que algo tinha mudado antes mesmo que a tivesse avistado. Todos do reino tinham se reunido atrás e em cima do muro de proteção, esperando a mãe dela voltar, e não foi diferente com seu pai, suas irmãs e ela. Era a primeira vez que um nome da realeza tinha sido sorteado entre sua família, mas não havia sido por acaso. Era a primeira vez que alguém tinha tentado depois de seu pai virar rei.
Talvez fosse destino. E ela ainda não soubesse.
Sua mãe, Rainha Athena dos sereianos, tinha tirado a vez de todos os outros por uma causa maior. Era de conhecimento geral que, quando um membro da família real colocasse seu nome no sorteio, ele sempre seria o escolhido. Aquela tradição já vinha acontecendo há 300 anos, mas somente há cem que o povo tinha alguma chance de conseguir ganhar os Dias ao Sol. Até que a rainha precisou sair.
Ariella tinha milhares de perguntas para sua mãe e as ensaiava em sua cabeça uma última vez antes que ela retornasse. Queria saber se ela tinha sentido falta de seu rabo, se doía ter que respirar ar por tanto tempo seguido. Será que alguém a tinha reconhecido? Era possível mexer cada um daqueles negocinhos que ficavam na ponta das pernas? Elas eram mais firmes ou mais moles que o rabo? Tinha alguma palavra nova das línguas dos humanos que ela poderia lhe ensinar?
Mas o povo só queria mesmo saber se a rainha tinha completado sua missão e conseguido encontrar algo que fizesse a idolatrada planta do Caranguejo florescer mais vezes por ano. Uma única flor era pouco demais para centenas de sereianos curiosos e sonhadores.
Só fazia dois dias que a rainha tinha ido, tempo que nenhum deles conseguiria mesmo marcar com exatidão sem se arriscar a ficar constantemente na superfície, observando o sol. Mas Ariella apostaria que fazia anos. Ela ainda nem tinha aprendido direito a contar o tempo, ainda se embaralhava nas divisões que pareciam se dissolver em sua cabeça. E, quando apoiou os bracinhos no muro de proteção do reino e tentou enxergar através da profundidade do mar, teria apostado que minutos era o nome que se dava à eternidade. Ela sorria, pois não sabia franzir. Mas sua mãe sabia.
Assim que Ariella sentiu a água fria que ela trazia se enroscar à sua volta, no fundo, entendeu que algo tinha mudado.
Ela só tinha sete anos de idade, mas tinham sido sete anos decorando o jeito que sua mãe murmurava baixinho as músicas que ouvia de vez em quando vindo da costa; sete anos aprendendo a reconhecer as ondas que se propagavam de seu movimento gracioso e leve quando ela vinha na sua direção, preparando um abraço e um rodopio para fazer bolhas engraçadas. E, naquele final de tarde, podia sentir sua dor chegar até ela antes mesmo de ver os olhos arroxeados e puros de sua mãe.
A dor se multiplicou entre os sereianos. A rainha não balançava o rabo, deixava que a correnteza criada pelo seu povo a levasse de volta para casa. Não conseguia ao menos movimentar seus braços, tampouco encarar cada par de olhos que a tinha esperado com tanta expectativa.
Mas os sereianos entenderam sua profunda decepção sem que ela precisasse falar nada. Não estavam nem um pouco mais perto de conseguir florescer a planta do Caranguejo fora de época. Não havia lugar para mais sonhadores. E a pequena Ariella sentiu seu peito apertar ao entender, pela primeira vez na vida, que existiam finais tristes. Ela reconheceu desânimo antes de saber o que era.
E tristeza também. Entretanto, passaria os próximos dias duvidando dela, perguntando a todos que cruzassem seu caminho por que estavam tão decepcionados. A planta continuaria lá. Ainda teriam o sorteio anual. Um sereiano ainda poderia realizar seu sonho a cada vez. Para que tanta tristeza?
Ninguém precisaria responder. Ninguém precisaria ouvi-la. Eram os próprios sentimentos que ela começava a questionar, aqueles desconfortáveis e assustadores que lhe faziam arrepiar ainda que em água morna. Eram eles que ela queria entender, eles que tentava esconder.
Quando sua mãe retornou a Akvarie, os olhos dela não brilhavam, não se focavam em nada. O rei se preparava para consolar a ela e ao reino inteiro, enquanto as irmãs de Ariella se entediavam com o clima pesado da situação. Sua filha mais nova era a única que parecia observar cada movimento dela, torcendo para que, na próxima pequena onda que passasse, na menor das interrupções de um peixe distraído, o colar de concha que ela carregava em volta do pescoço brilharia outra vez.
Era só o fundo do mar, Ariella se convenceu. Era culpa da noite que se aproximava lá fora. Seu pequeno e puro coração não conseguia acreditar que sua mãe trazia tanta tristeza em si que não se permitia ser iluminada nem pela luz do pôr-do-sol, a mais bonita e mais forte a atravessar as águas do mar. Mas, apesar de qualquer esforço da pequena sereia em esconder de si mesma toda a decepção que testemunhava, o colar de sua mãe vinha em um inegável tom de azul escuro que acabou ficando gravado em sua mente.
Aquele era o único objeto humano adorado pela rainha. Ela nunca tinha feito questão de visitar o museu do mundo humano, nem se importava com as palestras que os antigos vencedores davam. Mas aquele colar lhe era especial e tinha vindo da terra firme, de quando seu pai teve a chance de ter seus Dias no Sol. Era o símbolo de sua vida até então. Tinha transformado sua família em parte importante de Akvarie. Tinha feito com que o rei lhe conhecesse. Ele lhe lembrava de onde tinha vindo e onde estava.
E, naquele momento, lhe lembrava de onde nunca mais poderia estar.
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