Capítulo 1 - Espuma do Mar
Akvarie era um dos reinos mais antigos dos oceanos. Os povos sereianos, diferenciados pelas cores de suas caudas e barbatanas, há muito tempo viviam em paz. Não era do interesse de nenhum explorar ou conquistar mares de outros. A natureza curiosa dos akvarianos era exceção e a grande maioria deles não se arriscaria em terra firme ou oceanos desconhecidos. A água poderia ser de uma temperatura drasticamente diferente, com animais estranhos demais e profundidades terrivelmente assustadoras até mesmo para os sereianos mais experientes.
Cada um deles tinha nascido para viver em suas próprias águas, e Akvarie ficava no mar Báltico, tendo os muros de proteção mais próximos à costa de qualquer povo sereiano. O reino era praticamente cercado por dois países terrestres, encurralado no Norte do planeta e banhado por água gelada, mesmo em verões em que o sol da meia noite conseguia fazer seus raios alcançarem o pico mais alto do castelo de Saltholm. O povo feito por merecer sua reputação de adorador do mundo dos humanos, estudando, aprendendo e colecionando conhecimentos sobre os hábitos, as línguas e as pessoas que lhe eram vizinhas. A sorte de cada vencedor dos Dias ao Sol vinha com a responsabilidade de repassar o que tinha visto, o que tinha mudado e algum outro detalhe que tivesse passado despercebido para o anterior. Enquanto outros povos sereianos os julgavam imprudentes e se recusavam a procurar algo que lhes permitisse algumas horas em terra firme, os akvarianos tinham orgulho de se arriscar.
Eles eram sereianos do Norte, viviam apenas cento e cinquenta anos, quase metade dos tropicalianos, mas nunca lhe faltaram sonhos e alegria. Até o dia em que se viram arrogantes. Até o dia em que a rainha ganhou pernas e, pouco depois, os deixou para sempre.
Reis anteriores já tinham feito milhares de testes. Já tinham deixado de consumir a flor para ver se duraria mais, já tinham tentado separá-la em seis pétalas, uma para cada sereiano, mas nada funcionava. O único jeito de se transformarem em humanos era a consumir inteira, só um por vez. E nunca duraria mais do que dois dias, dois pores-do-sol.
A Rainha Athena tinha sido a última a tentar procurar um jeito de cultivá-la e fazê-la dar mais de uma flor. O máximo que tinha conseguido aprender era que os humanos não conheciam aquela planta. Ainda que eles tivessem desenvolvido seus conhecimentos com plantas terrestres, aquela só crescia no reino de Akvarie, que não era visível para eles. Poderiam mergulhar quantas vezes quisessem, que a correnteza de Saltholm os desviaria para longe. Nem mesmo do trem que ligava os dois países vizinhos, poderiam ver um único detalhe de todo o reino. E os sereianos, ainda que insistissem na esperança de uma solução, foram obrigados a aceitar depois da tragédia que se seguiu.
Os cento e cinquenta anos da rainha se resumiram a oitenta. No terceiro dia depois de ter voltado, tudo que sobrava dela era espuma do mar. Sem explicação, sem qualquer precedente, cedo demais para qualquer sereia, ainda mais uma que já tinha sido tão cheia de vida quanto Athena, ela se foi.
Por muitos anos, a antiga rainha pareceu ter levado todos os sonhos do povo consigo. Ainda havia muito que eles precisavam entender sobre o mundo dos humanos, mas isso era o que mais lhes assombrava, a possibilidade de contrair algo lá fora que lhes fosse fatal. Foi o único jeito que encontraram para entender o que tinha acontecido, e o medo de que se repetisse fez com que toda a celebração do Caranguejo fosse de algo celebrado a sussurrado pelos cantos, levando bastante tempo para que os sereianos voltassem a ver aquela pequena flor como a dádiva que era.
Algumas primaveras tiveram que passar com receio, poucos se inscreveram e os que ganharam se arriscavam cada vez menos pela cidade dos humanos. Três, sete, quatorze anos depois, e a lembrança do que poderia acontecer se desfez como a rainha, virou espuma do mar, se espalhou e desapareceu em uma outra onda quebrada na praia.
A busca por um jeito mágico de fazer a planta do Caranguejo florescer, por outro lado, cessou. Mas um sereiano sortudo ainda criava pernas durante quarenta e oito horas por ano. E, dessa vez, Ariella queria que fosse ela.
Não era difícil saber que estava chegando o dia em que floresceria. Era depois de a superfície se quebrar em milhares de pedaços de gelo, depois de derreter e se misturar ao resto do mar. Era quando o sol começava a se prolongar, o período escuro se transformava em uma lembrança distante, e o quadro do museu dos humanos desgastava seus últimos centímetros. Era quando o povo todo voltava sua atenção para o pequeno botão que tinha nascido na planta em formato de caranguejo.
No terceiro dia do botão, logo ao pôr do sol, a flor se abriria. E então morreria depois de quarenta e oito horas, dentro ou fora de um sereiano.
O lugar favorito de Ariella era na entrada do museu que os akvarianos tinham construídos para o que aprendiam sobre o mundo dos humanos. Era onde eles estudavam sua cultura, seus costumes. Era onde aprendiam a pronunciar palavras das mais distintas, ainda que precisassem de bolhas para fazer o som sair do fundo da garganta, ao invés de seu peito.
Ariella já tinha decorado todos os utensílios, bugigangas e relatos dos próprios vencedores espalhados pelos corredores. Mas ela gostava mesmo era da entrada, onde ficava o quadro daquele ano. Cada vencedor tinha a responsabilidade de trazer outra representação de imagens criada por humanos talentosos quando saísse, para substituir aquela que já se desfazia na entrada do museu. Ainda que eles tentassem de inúmeros jeitos diferentes, os quadros nunca duravam embaixo d'água.
Mas ela não se importava. Passava horas pairando na frente do de cada ano e memorizando cada traço que ia desbotando com o tempo. Era como uma contagem regressiva. Ela tinha tentado várias vezes se inscrever no sorteio, desde que tinha completado oito anos de idade. Tinha sido seu jeito de se rebelar contra a regra que acreditava ter sido criada pelo seu pai de só poder se inscrever depois de completar vinte e um anos. Mas, ainda que tivesse sangue real, seu nome nunca era escolhido, e ela teve que aceitar esperar até ter idade o suficiente para escrever seu nome dentro de uma concha e finalmente ter seus Dias ao Sol.
Ninguém se atrevia a falar no assunto, mas todos os akvarianos estavam certos de que nunca mais veriam um membro da realeza se arriscando como Athena. Se antes cada um ia só uma vez, as irmãs de Ariella tinham deixado bem claro que não tinham o menor interesse em se inscreverem. A questão tinha virado tamanho tabu, que Ariella teve que esconder que, ainda depois do que tinha acontecido quando ela era pequena, seu sonho nunca tinha mudado.
E esse era o maior problema. Não sabia a palavra para o que fazia, mas mentia. Não deixava que ninguém soubesse que seu desejo de andar com duas pernas em terra firme não tinha se desfeito com sua mãe. Ninguém lhe entenderia. Ninguém mais tinha tido a chance de ouvir a rainha enumerando as maravilhas que se considerava sortuda por ter conhecido.
Era uma de suas últimas lembranças ao seu lado. Sua mãe já estava abatida, já dava para ver em seus ombros como ela precisava se esforçar para se movimentar pela água. Já sentia os sintomas do que lhe tinha contaminado na terra. Mas ela repetia várias vezes que tinha valido a pena. Seus olhos ainda pareciam vivos e voltaram a ganhar um brilho ainda mais intenso do que seu característico quando teve a chance de contar à sua filha mais nova sobre seus Dias ao Sol.
Tinha valido a pena sentir o sol no rosto sem se queimar. Tinha valido a pena poder conhecer um mundo completamente diferente do deles. E seres humanos maravilhosos também! Eles não eram tão terríveis quantos os outros povos sereianos acreditavam ser. E eram bem melhores do que os akvarianos já tinham conseguido entender.
Ariella ainda guardava a exclamação de sua mãe para cada sensação indescritível que tinha conseguido experimentar, seu jeito incansável ao tentar explicá-las, como se as sentisse outra vez. Seu corpo inteiro parecia reviver ao lembrar. Como era sortuda de poder se abater assim! Tamanha tristeza só poderia vir após uma sereia - ou um ser humano - ter sido consumido completamente por uma felicidade imensurável!
Mas as palavras que Ariella repetiam em sua cabeça eram outras.
Sua mãe tinha tido a chance de lhe falar de suas partes favoritas do mundo humano. Ela tinha contado sobre uma massa com aparência sólida, mas que se desfazia e derretia ao ser tocada. Tinha acrescentado, ao notar o tamanho do sorriso da filha, que a tal massa tinha as mais diversas cores e os mais intensos sabores e que esfriava sua língua. Athena tinha achado quase doloroso, mas terrivelmente viciante. Ela tinha lhe dito também que era possível ver o mundo de cima, sem precisar ter os pés no chão, que o ar era como a água, envolvia tudo, e os humanos tinham encontrado jeitos de nadar por ele. Ou, como eles chamavam, voar. E as cores! O mundo dos humanos era feito de cores para todos os lados! Mesmo que trouxessem alguns objetos de volta para seu reino, eles todos ficavam praticamente da mesma cor embaixo d'água. Lá fora, era como se tivessem vida e brilho próprios!
Mas sua parte preferida - e também a de Ariella - tinha sido descobrir como se sentia ao tocar alguém. Era quente, ela tinha explicado aos olhos arregalados da menina. Quando sua pele encontrava a de outra pessoa, era quente. Ainda que as duas estivessem frias, uma esquentava a outra. Buscavam calor dentro de si para aquecer o outro. E isso soltava um arrepio como o do frio, mas ainda mais elétrico, que conseguia correr pelo corpo inteiro. Era maravilhoso o sentir chegar até as pontas dos dedos dos pés. Para ela, era a melhor sensação do mundo.
Ariella nunca tinha entendido como isso era possível. Mas gostaria tanto de provar, que aceitava todos os riscos que viessem com o sorteio. A cada ano que passava, ela tinha mais certeza de que queria poder viver o que sua mãe tinha vivido, ver o que ela tinha visto, tocar na pele de um ser humano sem que a dela o esfriasse. Queria se aquecer por alcançar alguém. Queria ter pés e sentir um arrepio chegar até a ponta deles. Seriam só dois dias, dois pores-do-sol. E valeria a pena.
Fazia quatorze anos desde que a mãe de Ariella tinha ido, quatorze anos esperando pela sua vez. Sua ansiedade agora se igualava a medo, que ela fingia não sentir. O quadro à sua frente já tinha desaparecido quase completamente, mas Ariella ainda passava as mãos pelo que tinha sobrado da tela, se perguntando qual seria a imagem que ela traria.
Sabia que seu nome seria sorteado. Não havia concorrência. Tinha sangue real, tinha descendência direta de um dos herdeiros do Deus dos Mares e já tinha completado vinte e um anos. Ninguém mais tinha chances e, apesar de isso quase a ter feito desistir no último segundo, tinha agora abraçado seu egoísmo e o chamado de direito merecido.
Ninguém tinha sonhado com os Dias ao Sol mais do que ela. Mesmo que os tivessem desejado há mais tempo, ninguém tinha tido que criar desculpas para suas irmãs, perder horas de repouso no período escuro e entrado no museu por espaços minúsculos fora do horário da escola. Ninguém tinha se esforçado mais. Era justo seu nome estar lá, pelo menos pela certeza absoluta em seu coração de que ela queria ganhar mais do que qualquer outro akvariano.
Ainda assim, ainda que sua metade humana e sua metade peixe se difundissem em ansiedade, quando as primeiras ondas dos tambores se propagaram até ela, ainda encarava o quadro. E demorou outros segundos para entender que tinha chegado a hora. O sorteio estava para começar.
A planta do Caranguejo ficava do outro lado do reino, na frente do castelo de Saltholm, que agora estava escondido atrás de todos os sereianos esperançosos de Akvarie. Ariella teve que colocar seu rabo para nadar em capacidade máxima, depois se espremer entre eles e ignorar seus olhares espantados quando percebiam que ela não estava no palco. As próximas ondas dos tambores pareciam amortecidas ao chegar até ela, mas contavam também os segundos para o grande momento.
Apesar de se orgulhar de nadar rápido e fazer curvas com perfeição, ter que passar por entre sereianos curiosos a atrasou ainda mais e, quando Ariella finalmente conseguiu avistar o palco, percebeu que todas suas irmãs olhavam na mesma direção: sua concha vazia.
Antes que a voz de seu pai saísse, ele bateu com o tridente no chão. Não era raiva que ele espalhava. Era preocupação, forte o suficiente para espantar os peixes mais próximos e escurecer a água à sua volta.
"Estou aqui!" Ariella disse em sua língua natal, abrindo espaço entre os últimos sereianos que estavam no seu caminho. Seu rabo ficou aliviado de finalmente chegar ao seu potencial máximo e poder balançar livremente. Em um segundo, ela estava ao lado de sua irmã Andrina, fingindo nunca ter se atrasado para começo de conversa. "Podem começar," completou, fazendo um gesto para seu pai e sua irmã mais velha, Attina.
Seus olhos rapidamente encontraram a pequena planta em forma de caranguejo guardada por uma gaiola prateada. O broto ainda estava fechado, parecendo esperar o vencedor ser anunciado para se abrir.
Como ela o queria! Como precisava dele!
Todos os seus sonhos passaram em sua mente enquanto Attina girava o aquário de inscrições e deixava que a concha destinada a ganhar caísse sozinha. Ela teria quarenta e oito horas em terra firme, mas já as tinha multiplicado em mil dentro de sua cabeça. Tanta coisa para fazer, tanta coisa para comprovar e provar! Dois dias seria pouco demais e, ao mesmo tempo, a melhor coisa que já teria acontecido com ela. Repassava pela milésima vez as primeiras palavras que usaria, como os humanos do Leste se cumprimentavam. Era na praia deles que ela daria seus primeiros passos.
Será que doía mais do que os outros vencedores teriam admitido? E se ela sentisse falta demais de seu rabo? E se não fosse boa em andar? E se ela, como era aquela palavra mesmo?, caísse? Cair parecia terrível. E era a coisa que os sereianos mais faziam ao virarem humanos. E se acontecesse com Ariella? Como conseguir realizar todos os seus sonhos se ela não pudesse ao menos ficar de pé?
O barulho de uma concha caindo a obrigou a engolir seus medos. Era seu nome que esperava dentro dela. E, enquanto o resto do reino o ouvia e se desmanchava em desânimo e surpresa, Ariella só conseguiu permanecer imóvel, observando a pequena flor do Caranguejo desabrochar.
Suas quarenta e oito horas tinham acabado de começar.
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