CARTAS NA MESA
C A S S I E A N D R A D E
Quando saímos do cemitério e voltamos para o carro eu me virei para Verônica.
— Você só pode estar ficando louca! Me colocar numa missão de campo assim sem mais nem menos! Eu acabei de entrar na equipe! — disse a encarando.
— Por que tanto espanto? Não será nada perigoso, você só deverá ser uma boa atriz para recolher informações. — falou como se fosse a coisa mais simples do mundo — Vamos te enviar a escola, você se passará por uma garota de 15 ou 16 anos. Você só precisa fazer amizade com a Helena. Não há nada de extraordinário nisso.
— Não sei se eu consigo... Ela está traumatizada! — disse, e eu também estava.
— Se a gente não fizer nada, em pouco tempo ela pode estar morta! — Verônica se virou para mim — Cassie, querida. Às vezes precisamos fazer esse tipo de coisa e até coisas piores, mas tudo para um bem maior, entende?
Eu assenti respirando fundo. E comecei a entender o motivo do meu pai gostar dessa mulher. Eles tinham muitas coisas em comum. Inclusive querer salvar vidas.
— Não será difícil, você é cativante, ela vai gostar de você assim que te ver! — Verônica mexeu no meu cabelo com um sorriso.
Eu sorri — Não precisa me bajular, eu vou ajudar... — disse me lembrando do corpo de Célia Lima. — Eu tenho que ajudar.
Verônica sorriu e tocou no meu rosto com as costas da mão. — Vamos ajudar. Esse é o nosso trabalho.
Eu sorri a encarando e assenti querendo acreditar que iríamos ajudar.
O celular de Verônica começou a tocar, ela mexeu na bolsa, olhou o visor e me mostrou. Era meu pai.
— Meu Deus! Ele não dorme? — questionou Verônica olhando para o celular.
Eu sorri. — É, ele não dorme. — respondi dando os ombros. — Não enquanto não estivermos em casa.
Ela guardou o celular na bolsa e soltou um suspiro. — Quando chegarmos em casa a gente conversa... — ela olhou para mim — O que vamos dizer?
Eu mordi os lábios — Vamos mentir?
— Eu não gosto disso... Mas eu também não posso falar que eu levei você para desovar um corpo! Ele iria me matar. — confessou Verônica dando partida e soltou um longo suspiro — Vamos mentir.
E love in top começou a tocar na minha bolsa.
Eu abri a bolsa e puxei o celular, olhei o visor e mostrei para Verônica.
Meu pai.
— Não atende. — disse Verônica respirando fundo.
Ela estava incomodada em fazer isso com o meu pai, mas realmente não tínhamos outra escolha a não ser mentir. Eu silenciei o celular e enfiei no bolso da calça, ele parou de tocar poucos segundos depois. Logo depois eu senti meu celular vibrar indicando uma nova notificação.
Era do Whatsapp.
Abri o aplicativo e vi a mensagem recente, era de Enzo.
Enzo: Estamos em casa. Cadê vocês?
Mostrei a mensagem para a Verônica e ela soltou um suspiro.
— Diz que já estamos chegando.
Eu: Já estamos chegando!
Enzo visualizou e começou a escrever depois de uns dez segundos, eu saí do aplicativo e fui para a barra de notificações.
Enzo: Seu pai quer saber onde vocês estão?
— Meu pai tá perguntando onde estamos. — falei guardando o celular.
— Quando a gente chegar em casa, vamos dizer que a minha mãe passou mal e tivemos que sair às pressas, ok?— ela estava concentrada na estrada.
Eu abri e fechei a boca, esperava que ela fosse uma mentirosa melhor do que eu, com certeza essa não iria colar, mas acho que ela sabia. — Ok. — encostei a cabeça na janela e bocejei.
— Já sabe como vai abordar a Helena na escola, depois de amanhã?— perguntou Verônica, mudando de assunto.
— O que? — questionei — Depois de amanhã?
— Eu sei, mas você precisa dormir e precisamos te encaixar na escola, um dia dá para organizar tudo, mas você já pensou na abordagem que vai usar?
— Não... — respondi surpresa e depois soltei um longo suspiro. Eu não tinha a mínima ideia de como iria fazer isso. Esperava um pouco mais de um dia para me preparar.
— Quer algumas dicas?
— É rainha dos disfarces também? — ironizei a encarando com um sorriso.
Ela riu, balançando a cabeça.
— Helena é tímida e introvertida, você provavelmente vai encontrá-la isolada em algum canto sozinha. Você deve se aproximar lentamente e ser você mesma. Não tente disfarces, só tente ser amiga dela, de verdade. — disse Verônica fazendo uma curva. — Você só precisa ser você. Você tem uma ótima personalidade, apesar de ser áspera no início. Mas faça isso, seja você mesma, e vai conseguir cativar essa garota.
— Vai ser um processo lento... — disse a encarando — Ganhar a confiança de alguém não é fácil, ainda mais alguém que não confia em mais ninguém.
— Eu sei, o seu desafio é se tornar uma grande amiga para ela em menos de uma semana, consegue?
— Não sei — respondi com sinceridade.
• • •
E N Z O T E I X E I R A
Eram cinco horas da manhã quando ouvimos a porta da garagem abrir.
Eu estava cochilando no sofá quando a porta dos fundos se abriu e Rodolfo se levantou atento.
— Meus amores! Não precisavam ficar acordados nos esperando! — disse minha mãe com um sorriso ao nos encontrar na sala.
— Ficamos preocupados, não deixaram nenhum bilhete. — disse Rodolfo olhando elas entrarem.
— Você também não avisou, quando saiu. — Cassie retrucou jogando a bolsa no sofá.
Rodolfo lançou um olhar repreendendo a filha pela resposta atravessada.
— O que aconteceu? — perguntou Rodolfo — Sair tão tarde é perigoso.
— Minha mãe passou mal, precisei ir correndo ajudar. Cassie se ofereceu para ir junto, foi só isso. — respondeu minha mãe se sentando na ponta do sofá, perto dele.
— Minha avó tá melhor? — perguntei preocupado.
— Sim, foi só uma queda de pressão. Sabe como ela é dramática. — respondeu minha mãe tirando sapato de salto alto.
— Que bom que sua mãe está melhor. — Rodolfo respondeu áspero, chamando a nossa atenção e subiu para o quarto em passos pesados.
Nós três trocamos olhares tensos, eu sem entender nada. Vi minha mãe franzir a testa e subir as escadas atrás de Rodolfo.
Olhei para Cassie novamente, ela me olhou. Ouvimos uma porta bater com força lá em cima, ela correu para subir as escadas e eu a segui. Seguimos até o quarto deles, que estava com a porta fechada e tentamos ouvir o que estava acontecendo do outro lado.
• • •
Quando Rodolfo disparou escada acima, Verônica o seguiu quase na mesma intensidade. Ela entrou no quarto batendo a porta com força, na intenção de chamar a atenção do noivo e mostrar que estava irritado pelo seu comportamento lá embaixo.
Ela encontrou Rodolfo trocando de roupa, ele estava terminando de vestir um samba canção e fingiu não ouvir a porta bater.
— Rodolfo! O que foi aquilo? — Questionou apontando para a porta.
— Nada, Verônica. Vamos dormir, eu estou cansado. — Rodolfo caminhou até a cama e se sentou, tentando finalizar aquele assunto. — Hoje o meu dia não foi nada bom.
— Primeiro você vai explicar a sua atitude lá embaixo. — ela levantou a voz, mostrando o quanto estava irritada — Você foi áspero comigo e praticamente me deu as costas! Eu não gostei das suas atitudes grosseiras. — o encarou esperando uma resposta.
Rodolfo respirou fundo tentando manter a calma, mas não conseguiu.
— Eu não gosto que mintam para mim! — também elevou a voz ficando de pé, se arrependeu no mesmo momento, mas não voltou atrás ao se deparar com a expressão da noiva, provando que estava certo.
Ela mentiu pra ele.
Verônica abriu e fechou, sem saber por onde começar, franziu os lábios e se aproximou dele. — Meu amor...
Rodolfo se afastou negando com a cabeça, sua expressão corporal exalando decepção.Verônica se sentiu péssima.
— Eu sou sincero com você, quero que seja sincera comigo. — disse ele — Mas você não está sendo. Pensei que a nossa relação era baseada em confiança. Você sabe muito bem que eu não suporto mentiras. Vivi muitos anos acreditando em uma, não quero isso de novo.
— Você não confia em mim? — perguntou Verônica levando a mão ao peito, com uma expressão de incredulidade.
— É claro que eu confio em você! Vamos nos casar. — Rodolfo respirou fundo se sentando na beirada da cama.
— E então, por que desconfiar de mim? — perguntou Verônica sentando ao lado dele. Rodolfo apenas balançou a cabeça, estava exausto, sem forças para uma briga.
Diante do silêncio, Verônica subiu na cama, se posicionou atrás de Rodolfo, acariciando seus ombros e sentiu a tensão nos músculos do futuro esposo.
Como se carregasse o peso do mundo nas costas. Ela carinhosamente começou a massagear os ombros tensos dele — Acho que é o seu trabalho que te deixa assim, tão estressado, querido. Já pensou em tirar férias?
— Porque você está mentindo. — respondendo a pergunta de minutos atrás, se levantando sem avisar deixando Verônica de boca aberta. — Verônica, eu não alcancei o meu posto na polícia por puxar saco do chefe. Eu sei quando estão mentindo. Trabalho com mentirosos o tempo todo.
— Qual é o problema? Não posso sair com a Cassie? Você e o Enzo não se desgrudam mais! — disse Verônica levantando da cama e tentando enfrentá-lo de outra forma.
Rodolfo balançou a cabeça — Tudo bem, se você não quer falar eu aceito isso, só não precisa mentir para mim... — ele a encarou nos olhos — Sabe que eu odeio mentiras. — ele voltou para a cama e se deitou.
Verônica fechou os olhos e respirou fundo antes de soltar.
— Eu levei a Cassie no cemitério.
— Para fazer o que?— questionou Rodolfo ficando sentado com a testa franzida.
— Desovar um corpo... — respondeu rapidamente e franziu os lábios esperando a reação.
— O QUE? — Rodolfo já estava de pé.
— Eu posso explicar. — respondeu o encarando, enquanto ele vinha na sua direção, lembrando a gravidade do ato inconsequente e criminoso que ela fez.
— Quer deixar eu explicar!? — pediu Verônica se sentando na cama de casal e sinalizou para ele a acompanhar batendo no espaço ao seu lado.
— Existe uma explicação? — ironizou a encarando.
Verônica não respondeu a provocação e esperou o noivo se sentar ao seu lado.
Ele sentou e esperou a explicação.
— Você sabe que a Cassie quer ser como você não é? Uma grande policial investigativa. — começou e Rodolfo soltou um suspiro como se já estivesse cansado de ouvir isso, Verônica continuou — Você não percebeu, mas a Cassie fica ressentida com todos esses acontecimentos. Já era difícil dividir você comigo, agora ter que dividir você com o Enzo.
Rodolfo franziu a testa — Como assim?
— Você e o Enzo estão tão próximos que nem estão percebendo. Esse caso do assassino em série uniu vocês dois. Vocês passam mais tempo no departamento do que em casa! — explicou — Você não acha que a Cassie percebeu isso? Como ela se sente com essa situação? Com o abandono da sua ex-mulher você deveria ficar mais atento a ela, em vez de proibir ,você deveria conversar, se abrir com ela e deixar que ela faça o mesmo com você. Ela queria estar no lugar do Enzo, trabalhar com você, mas você não permite...
— Ela sabe que eu sou contra ela trabalhar na polícia. O Enzo foi injustiçado e é uma testemunha, por isso ele está ajudando. — falou Rodolfo a interrompendo — E o que isso tem a ver com a sua saída e o cemitério?
— Sabe muito bem que não é só por isso! — disse Verônica soltando um longo suspiro. — Já que você não quer a Cassie trabalhando com você, na polícia civil, eu a contratei como minha estagiária.
— Você deu um emprego a Cassie sem me consultar? — Questionou Rodolfo a encarando, ele se levantou dando alguns passos pelo quarto e sem esperar a resposta, apenas balançou a cabeça assentindo — Tudo bem...
— Rodolfo, ela tem 18 anos.
— O que isso tem a ver com o corpo que desovaram no cemitério?
— Cassie está estagiando na minha equipe investigativa. — respondeu.
— Equipe investigativa? — Franziu a testa — Mas você é só uma advogada...
— SÓ?— Questionou o encarando.
— Uma grande advogada! A melhor! — Rodolfo rapidamente tentou se retratar, mas ela estava revirando os olhos.
— Desculpe, eu me expressei mal... Mas por que uma advogada da sua área precisaria de uma equipe investigativa? — questionou Rodolfo cruzando os braços.
— Na maioria dos casos na vara da família, da criança e do adolescente há casos de abusos, maus-tratos. Portanto preciso investigar os meus clientes e os envolvidos no caso. Entendeu? — explicou — E a Cassie precisa disso para explorar as habilidades, só assim ela saberá e decidirá seguir ou não na carreira policial. Não podemos decidir por eles, Rodolfo.
— Eu sei... — disse Rodolfo assentindo — E eu não acredito que estão fazendo tudo isso pelas minhas costas...
— Não seja dramático. — disse Verônica se aproximando dele. Ela segurou o seu rosto e grudou os seus lábios nos dele, por alguns segundos, ainda sorrindo.
— Você tem que cuidar dela. — pediu.
— Estou cuidando, como você cuida do Enzo. — ela abraçou por trás, pousando a cabeça nas costas dele — Já somos uma família... Um cuidando do outro. É como se eles fossem irmãos de verdade...
— É... — concordou Rodolfo — Os dois são teimosos como uma mula, o Enzo também quer ir para o ramo de detetive.
Verônica o soltou surpresa — O que? Esse moleque disse que não se interessava em direito e em seguir o legado da família...
— É só uma ideia boba, ele vai mudar de ideia. Ele só ficou animado com a perseguição... — contou Rodolfo.
— Perseguição? — questionou Verônica incrédula.
— É, hoje teve uma pequena perseguição. Estávamos atrás do assassino. Foi só correria, não houve perigo nenhum... — explicou — Mas eu não quero falar do meu trabalho. — ele a puxou pela cintura — Acabamos de fazer as pazes, isso requer uma comemoração. — falou a conduzindo até a cama e fazendo ri, entre gemidos enquanto beijava seu pescoço.
• • •
C A S S I E A N D R A D E
Enzo e eu eu desgrudamos da porta com uma careta e a tempo de não ficarmos traumatizados.Voltamos para o quarto e eu estava o encarando.
— O que foi?
— Teve perseguição?!
Enzo sorriu balançando a cabeça positivamente.
— Não acredito nisso! Como foi?
— Foi bem louco! — falou animado se sentando na cama — Cara! Me senti em um verdadeiro filme de ação, corremos da faculdade até a estação de trem! Pulamos a roleta e corremos pelos vagões seguindo o sinal via satélite ou sei lá o que de GPS do serial killer! Corremos de vagão em vagão, tivemos que descer do trem numa estação qualquer só para mudar de vagão e acompanhar o bandido que também se movimentava até o primeiro vagão. Quando chegamos lá no primeiro vagão encontramos o celular com um garoto de rua. O desgraçado usou o garoto para nos despistar!
Eu estava de boca aberta com toda essa informação de uma vez.
— UAU! Ele é muito inteligente!
Enzo me encarou de cara feia e eu dei os ombros.
— Ué, é a verdade! Ele é muito inteligente e fez vocês de bobos. Isso nunca teria acontecido se eu estivesse lá. — apontei para meu próprio peito — Meu pai deve ter ficado puto.
— E ficou. — concordou — Mas amanhã vamos encontrar o pivete e pegar o celular. Ele disse que já viu o Stalker misturado com os moradores de rua.
— Stalker?
Enzo assentiu — É assim que nos referimos a ele. É o nome que recebeu na Homicídios. — Dá de ombros — Foi ideia da Melissa em nomear assim, já que ele é um perseguidor.
Assenti pensando em Edgar. Seria eles tão ardiloso para despistar a equipe do meu pai?
— Mas e aí, conta como foi desovar um corpo? — quis saber Enzo me encarando agora.
— Foi horrível. — respondi — Não tem nada de excitante. O cheiro, a cena. Só de pensar fico com arrepios.
— Sinistro. Nunca imaginaria que minha mãe sai escondida na madrugada para desovar corpos.
Sorri — A Rainha da vara de família tem muitos talentos. Pode se surpreender com o trabalho dela.
— Estão melhores amigas mesmo.
Ri balançando a cabeça. — Não enche.
Me levantei e parei em frente ao espelho para ver meu estado, quando percebi Enzo me encarando pelo reflexo, quando me viu franzir o cenho ele me deu um sorrisinho.
— Sério que você tem ciúmes de mim?
Revirei os olhos e me virei em sua direção — Por favor, Enzo. Quem é você na fila do pão?
Ele apenas continuou me encarando com o sorrisinho debochado.
— Sua mãe exagera. Eu só não acho justo ele preferir trabalhar com você, do que comigo que já estou nesse ramo há muito tempo e sou muito mais inteligente que você! Fique você sabendo que sou formada em várias temporadas de CSI, Criminal Minds, The Black List e etc. — falei contando nos dedos e fazendo Enzo soltar uma risada.
• • •
E N Z O T E I X E I R A
No dia seguinte todos nós acordamos mais tarde do que o costume, minha mãe e Rodolfo levantaram mais cedo por causa do trabalho.
Todos nós tivemos o dia de ontem cheio.
Por mim continuava dormindo até umas 18 horas, porém o dever me chama nesse mesmo horário, lá na estação de Madureira com um pivete, apelidado de Ferrugem.
Preguiçosamente me levantei, olhei no celular, 14h36m. Olhei para a cama vizinha e Cassie já não estava mais lá. Fui para o banheiro, lavei o rosto e escovei os dentes, estava feliz por ter a casa só para mim, pensando que Cassie devia ter ido trabalhar com a minha mãe de novo, mas para o meu desgosto a encontrei esparramada no sofá, assistindo filme.
Murchei da escada e desci lentamente. Cassie não olhou na minha direção, mas sabia que eu estava ali.
— Tem comida pronta? — perguntei.
— Claro que não. — respondeu sem nem se dar ao trabalho de olhar para mim.
— O que você comeu, garota? — questionei perto do sofá que ela estava.
Cassie deu de ombros — Tem miojo.
Fiz careta.
— Eu odeio miojo.
— Então vai se foder, Enzo. — falou jogando as mãos pro ar, com a sua impaciência.
— A mocinha não xinga quando o papai tá em casa, hein? — provoquei.
Vi daqui da cozinha Cassie exibir seu dedo do meio com a unha pintada de preto. Sorri e dei uma olhada rápida na geladeira, não confiava nas palavras daquela garota.
Não havia nada rápido e prático que não precisasse ir ao fogão.
Respirei fundo pegando o meu celular e fiz o pedido de uma pizza de bacon e calabresa enquanto caminhava de volta para a sala. Desliguei o celular me jogando no sofá livre. A entrega demoraria meia hora e então fui dar uma olhada no WhatsApp.
Melissa tinha me mandado mensagens às 9 horas da manhã.
Havíamos trocado números antes de nos despedir.
Mel: Por que não veio hoje, seu preguiçoso?
Comecei a digitar uma resposta, sorrindo.
Eu: Cê não dorme, garota?
Mel: Cinco horas de sono é o suficiente para segurar o tranco. Tem o final de semana para repor.
Eu: Fale por você.
Mel: 😒
Vai no encontro?
Eu: É óbvio.
Mel: Chegue uma hora antes.
Eu: blz
Guardei o celular sorrindo. Estava animado com tudo isso e estranhamente positivo. Estávamos cada vez mais perto de pegar esse desgraçado.
Rodolfo estava errado, essa minha animação não é momentânea ou causada por adrenalina. Ela já existia dentro de mim e foi despertada, quando ele me abordou no dia da morte da Dani. Olhei para Cassie, focada na televisão.
Um dos motivos para o meu ávido envolvimento era proteger essa criatura, que apesar da nossa relação de irmãos um tanto conturbada, eu me preocupava com ela. Cassie me flagrou encarando de longe e franziu a testa, estranhando.
— Tá olhando o que, seu bucha?
Percebe Evair? A petulância do cavalo?
Lembrei da discussão de ontem, entre os nossos pais.
— O Rodolfo não é divorciado? — perguntei me aproximando dela.
— É... — respondeu voltando o olhar para a televisão.
— E então que história é essa de abandono? — perguntei ficando sentado de frente para olhar bem pra ela enquanto respondia.
Consegui atrair a atenção de Cassie com essa pergunta, agora ela me encarava. Com cara de poucos amigos.
— É que.... a minha mãe comentou enquanto discutia com seu pai... — tentei explicar.
— Eu sei... — ela se ajeitou no sofá, também ficando sentada — Eles realmente não têm segredos... — fez uma leve careta.
Eu dei de ombros, concordando.
— Vai contar a história?
Com uma revirada de olhos ela se deitou de novo. — Não tem história para contar. Ela foi embora e fim. — respondeu secamente e aumentou a televisão — Só isso.
Ela era a mãe de Cassie. E ex-mulher de Rodolfo.
— Por que ele foi embora? Aconteceu algo? — perguntei querendo saber se Rodolfo tinha alguma culpa na história. Não deixaria minha mãe sofrer algo parecido.
Cassie jogou os ombros — Aconteceram muitas coisas.
Respostas vagas.
Insisti.
— Que coisas? O que aconteceu?
Cassie respirou fundo fechando os olhos, durou longos dez segundos até abri-los de novo, voltando a se sentar no sofá, se ajeitando para me encarar.
— Enzo? — chamou.
— Fala.
— Por que não pergunta para o meu pai? Agora são melhores amigos. — falou ríspida.
Minha vez de respirar fundo.
Cassie era muito difícil de lidar, segundo o pai, quem também era difícil de lidar. Era de família.
Quando comecei a conhecê-la melhor, descobri que o que ele falou era apenas eufemismo.
Os primeiros dias de convivência foram um verdadeiro inferno. Cassie não cedia e muito menos eu.
Meses depois as coisas mudaram, quando fomos obrigados a nos aliar, diante da ditadura dos nossos pais. Conseguimos mudar algumas regras com muita luta e eles levaram em consideração a evolução do nosso conturbado relacionamento de meio irmãos.
No início minha mãe ficou preocupada com algum envolvimento entre Cassie e eu. Porque somos jovens com os hormônios à flor da pele, segundo suas palavras.
Mesmo se existisse a possibilidade de achar Cassie — aqui expresso a minha careta de nojo — atraente — careta se intensifica — ela era a filhinha do namorado da minha mãe. Desde que minha mãe havia avisado que seu namorado tinha uma filha, mais nova do que eu. Eu imaginei uma piveta irritante e quando conheci Cassie, constatei que era mesmo uma piveta irritante.
Antes de conhecê-la já imaginava uma irmãzinha para encher o saco, poder reclamar dela e protegê-la. Como um irmão mais velho deve ser.
No final das contas, acho que sempre quis ter uma irmã.
— Você podia tentar, sei lá se abrir comigo. E eu faço o mesmo. — falei atraindo sua atenção novamente, ela me olhava estranho. — Somos irmãos agora, Cassie.
— E irmãos que se odeiam.
— Irmãos cuidam um do outro apesar de se odiarem.
— Que papo gay, Enzo. — falou me fazendo rir, ela me acompanhou na risada.
Legal, o gelo estava derretendo.
Me sentei ao seu lado, a obrigando a abrir mais espaço.
— Se nossos pais não tem segredos um com o outro, por que deveríamos ter? — perguntei e ela não respondeu, limpei a garganta e contei a falar — Meu pai era um magnata. — comecei, ela não olhava pra mim, apenas para o controle remoto nas mãos — Um tremendo babaca, sabe? Ele traía minha mãe na cara lavada... Acredito que antes mesmo do casamento ele já metia chifre nela. Deduzi pelo ódio da minha avó e dos meus tios, um deles chegou a bater nele. — sorri — eles adoram contar essa história, quando conhecê-los, vai saber. Enfim, ele vivia em viagens, quase não parava em casa. Sugava o dinheiro da minha mãe. Nas brigas ele admitia que tinha várias amantes... — parei um pouco para respirar. Essa história me perseguia e pesava.
— Como ela aguentava? — questionou Cassie surpresa.
— Por mim, porque tinha esperança que ele mudasse... Principalmente por mim, eu adorava aquele desgraçado. Aos meus olhos ele era um grande pai porque era muito legal comigo... — mais uma respiração profunda — As brigas eram feias, só pioravam, não lembro de tudo, mas... — Cassie pousou a mão na minha perna — Lembro dele batendo nela. Foi um soco, minha mãe ficou com o olho roxo... — meus olhos estavam ficando úmidos — Eu vi, tinha cinco anos, fiquei horrorizado, vendo minha mãe no chão. Corri em sua direção e fiquei ao seu lado. Minha mãe gritou e o mandou ir embora, enquanto me abraçava, ele só foi quando ela ameaçou chamar a polícia. — Cassie secou as minhas lágrimas. — Ela devia ter terminado há muito tempo, mas continuou com ele durante cinco anos. Cinco anos de sofrimento por minha causa.
— Relacionamento abusivo é muito mais complexo. — falou pegando a minha mão — Nenhum de vocês tem culpa.
— Você conhece a minha mãe. Ela é desse jeito desde sempre. — falei sorrindo — É uma mulher forte, que outro motivo uma mulher como ela, permitiria viver num relacionamento assim?
Cassie abriu e fechou a boca, e do nada sorriu — Você não é muito esperto agora, e era menos ainda aos cinco anos, então me deixa explicar. — a encarei, um sorriso acabou escapando, apesar da ofensa. Esperei a explicação — Ela só conseguiu se livrar daquele relacionamento abusivo, por causa de você. No momento que você correu para os braços dela, com medo do seu pai, após a agressão, abriu os olhos para tudo. Inteligente como é, percebeu que aquilo não estava certo. Se ele bateu nela, não demoraria muito para isso chegar a você.Uma mãe de verdade, faz de tudo para deixar seu filho protegido — Cassie sorriu — Sabia que a Rainha não ia me decepcionar.
Abri um sorriso.
— Ela denunciou ele, né? Seu foi preso?
Balancei a cabeça — Ela não fez nenhuma denúncia. — vi Cassie ficar incrédula e logo continuei antes dela se revoltar — Minha mãe sabia do escândalo que seria. Não preocupada com a mídia, mas sim com a família. Tenho muitos tios, muitos mesmo. Minha mãe é a única irmã. É a protegida deles. Se eles ou meu avô soubessem dessa história...
Cassie se aquiesceu entendendo.
— Como sempre, ela só estava protegendo a família. — Cassie assentiu.
— Nesse tempo todo achei que ela queria que eu crescesse sem uma figura paterna por perto, por isso que aguentou aquele cretino. Também tentou arrumar um namorado, anos depois, mais por mim do que por ela, mas também não conseguia confiar em ninguém depois dele... — falei reflexivo — Ela criou sozinha, teve assistência da família é claro, mas a parte dura ela fez sozinha mesmo e ainda sim conseguiu me dar tudo o que eu precisava e até o que eu não precisava. Dedicou-se a mim e ao trabalho totalmente, até...
— ... encontrar o meu pai... — completou Cassie.
— É...
— E você não mantém contato com o seu pai? — perguntou.
Eu abri um sorriso — Sabe o que aconteceu com ele?
— O que?
— Ele arrumou outra família depois de 6 meses do divórcio. Casou no ano seguinte, teve outros filhos e levou um golpe.
Cassie pareceu surpresa.
— A nova esposa deu o golpe nele, além de levar tudo descobriu que os filhos nem eram dele.
Cassie sorriu — Quem fere com ferro, com ferro será ferido.
Franzir testa — Não é: Quem com ferro fere, com ferro será ferido?
Ela deu de ombros revirando os olhos e perguntou:
— Onde ele está agora?
— Não sei. Não quero saber e tenho raiva de quem sabe. — respondi.
— Agora é a parte que eu devo me abrir para você e contar sobre a minha mãe? — perguntou me encarando.
E eu concordei com a cabeça — É.
• • •
C A S S I E A N D R A D E
Suspirei fundo me ajeitando no sofá após a história sobre o pai de Enzo, passei a admirar mil vezes mais a Rainha da vara de família.
Agora Enzo me encarava com expectativa para saber da minha história.
— Olha... — comecei devagar — Não tem muita coisa para falar, sabe? É sério. Minha mãe simplesmente foi embora. — Enzo ouvia em silêncio, balançando a cabeça à espera de mais — As lembranças começaram aos meus quatro, cinco anos. Lembro que eles brigavam muito, sei que era por minha causa. Ouvia meu nome durante a discussão. — Olhei para as minhas mãos — Ela foi embora depois de uma briga com o meu pai. Não lembro muito bem, mas ele logo me afastou dela, me deixou no quarto vendo desenho no volume máximo, e desceu para continuar a discussão. Alguns dias depois ela foi embora. Desapareceu por um ano, quando voltou era como se nada tivesse acontecido. Acho que fizeram as pazes, éramos uma família novamente.
Tudo estava ótimo durante os próximos quatro anos, e então do nada ela começou a passar mais tempo fora de casa e eles começaram a brigar de novo.
As saídas dela se tornaram constantes. Dois meses, três meses, tudo em menos de um ano... Meu pai aguentou essas fugas, aguentou por mim. Apesar dela se distanciar de nós, ainda era a minha mãe e eu ainda gostava dela.
E então quando eu fiz 10 anos ela cortou qualquer tipo de laço entre nós. Ela chegou e disse: Essa vida de mamãezinha e esposa não é para mim. Não aguento mais vocês, não aguento mais ter que conviver com vocês, não aguento fingir que sou uma mãe, que sou uma esposa. Não aguento mais fingir que amo vocês, eu não amo. Eu não quero essa vida. Eu nunca quis isso aqui. Adeus.
Enzo estava de olhos arregalados, claramente incrédulos.
— Ela disse isso?
— Exatamente as mesmas palavras. — balancei a cabeça positivamente. Me lembrava perfeitamente de tudo, pois ficou muito marcado para mim.
— Meu deus...
— Eu sofri, fiquei chocada, mas meu pai ficou despedaçado. — continuei — Nossa, quando ela disse essas palavras e bateu a porta ele foi furioso atrás dela, gritou, a xingou, e não voltou. Ele pegou o carro e saiu, meia hora depois minha avó apareceu para ficar comigo, explicou que ele precisava de um tempo sozinho e levou isso ao pé da letra, até conhecer a Verônica.
— Acho que entendi porque os dois se combinam. São perfeitos um para o outro.
Encarei Enzo com a testa franzida — Você os acha perfeito?
Enzo se levantou e pegou uma foto dos dois juntos brindando o noivado no ano novo.
— Acho... é chato admitir, mas eles combinam.
Sorri concordando. — Só rezo pra uma coisa.
— O que? — Questionei Enzo
— Que a gente não herde os dedos podres para os primeiros casamentos. — disse lembrando do Edgar.
Enzo sorriu — Amém!
• • •
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