Capítulo 26 - O beijo carmesim
Desde de criança, eu sonhava em ser várias coisas.
Comerciante, costureira, navegadora, pesquisadora ou mesmo cuidadora de cavalos. Eu me imaginava sendo tudo, menos uma princesa de um grande império.
Encarei os franceses mais uma vez e quase cedi ao impulso de me dar um beliscão para verificar se eu estava em um sonho, diga-se de passagem, deveras sem sentido.
— Esta é a safira real da França. — A princesa pegou a pedra em mãos. — Todo bebê real é presenteado com a mais polida delas pelo rei da França.
— No momento em que a rainha Harrington nos notificou por uma carta, o rei nos ordenou verificar pessoalmente as provas e retornar com a princesa para a França. — O príncipe completou.
Pois bem. Não era um sonho e, pelos deuses, queriam me levar para outro mundo!
Nesse exato momento, Van John parecia tão absorto quanto eu para entender toda aquela confusão de uma só vez. Vendo o estado do marido, a rainha tomou as rédeas da situação com um sorriso orgulhoso nos lábios.
— Sejam muito bem-vindos a Spéir, Altezas. Creio que necessitam de um diálogo em particular com a, até então, Lady Saphira. Permitam-me auxiliá-los.
Com a palavra final, Marie Anne Harrington se levantou do trono e encerrou a audiência, fazendo um sinal para que os guardas me levantassem e outro ordenando a alguns criados que nos acompanhassem até a sala de chá.
Durante o trajeto, tudo o que se passou no salão do trono se repetiu diversas e diversas vezes em minha cabeça, principalmente o nome da princesa de Valois e a última fala da rainha.
Florence de Valois, Quinta Princesa da França.
Com a, até então, Lady Saphira.
Deuses, o que está acontecendo?!
Quando, enfim, voltei a mim, estávamos na sala de chá da rainha.
— Vossa Majestade pediu que ficassem à vontade, ninguém os interromperá. Caso necessitem, basta chamar uma de nós. — Uma de suas criadas sorriu minimamente, despindo-se com uma reverência.
De repente, aquele cômodo pareceu pequeno demais. Eu não me sentia hostilizada por nenhum deles, mas a confusão me dividia entre o medo da verdade e a noção de que havia um engano quanto a eu ser uma princesa.
Sentei-me em uma cadeira enquanto os outros dois se sentaram de frente para mim.
— Permita-nos apresentar corretamente. — a princesa começou com um sorriso. — Sou a princesa Léanne e este é o príncipe Simon. Somos irmãos e membros da Dinastia de Valois.
— Sou Saphira. — disse naturalmente, mas franzi as sobrancelhas, um pouco confusa sobre como eu deveria me apresentar a eles. — Ou Florence, eu penso...
Ambos riram graciosamente de mim, deixando-me um pouco mais leve na presença deles.
Agora, mais de perto, pude perceber que eles têm mais traços em comum do que eu poderia imaginar, como os olhos verdes marcantes.
— Apresente-se como quiser, Saphira, não vamos obrigá-la a aceitar tudo isso de uma só vez. — Léanne disse gentilmente. — Pergunte o que tiver interesse em saber.
— Bem, disseram que sou uma princesa de Valois. — revezei o olhar entre eles, um pouco retraída ainda. — Isso quer dizer que somos irmãos?
— Sim, embora tenhamos apenas o mesmo pai. — Simon respondeu, entusiasmado.
— Você é uma filha ilegítima da família de Valois, mas isso nunca impediu o rei da França de amá-la desde quando era apenas uma criança. — A princesa explicou. — Logo que completou um ano, ele a reconheceu como princesa e lhe deu títulos, o que certamente não rendeu bons olhares na Corte.
— Desde criança? Eu nasci e fui criada na Corte? — perguntei, tentando imaginar por qual motivo meus pais não me quiseram mais.
— Não sabemos toda a história, pois éramos crianças também, mas o que se sabe é que você foi estregue ao rei com apenas alguns dias de vida e viveu na corte até os seus três anos. — Simon apertou os lábios em lamento. — Após um de seus aniversários, você sumiu misteriosamente do palácio, deixando o rei aflito.
— Papai tem lhe procurado por mais de treze anos, Saphira... — os olhos verdes de Léanne pairaram sobre mim, melancólicos.
Pela primeira vez desde aquelas poucas horas que se passaram, minha mente começou a aceitar a ideia de que aquilo pudesse ser verdade. No entanto, eu apenas desejava saber como desapareci do palácio francês e como vim parar em Spéir. Aquilo parecia coincidência demais para não ser intencional.
— E sobre a minha mãe? — tornei a perguntar, esperançosa em saber quem ela era, mas o sentimento se apagou gradualmente quando vi meus supostos irmãos se entreolharem.
— O único que sabe sobre ela é o rei, sinto muito. — Simon suspirou, parecendo desapontado por não poder me ajudar.
— No entanto, ele quer conhecê-la e lhe dizer tudo pessoalmente. Por isso, viemos lhe buscar. — Léanne desviou do assunto sutilmente, abrindo um sorriso.
— Perdoem-me, mas eu não posso ir com vocês, Altezas. — apressei-me em dizer, surpreendendo-os. — Pelo menos não por agora. Preciso estar presente no casamento do príncipe herdeiro de Spéir e, assim que a cerimônia terminar, irei sem resistências.
Eles sorriram, aparentemente me compreendendo e eu agradeci pela reação positiva.
— Nós também viemos assistir ao casamento, não se preocupe. — a princesa segurou minhas mãos gentilmente ao se levantar.
— Estamos imensamente felizes por poder conhecê-la, Saphira. — Simon se aproximou, beijando o dorso de minha mão fraternalmente e deixando a pedra azul sobre a minha palma. — Não hesite em nos pedir ajuda para qualquer coisa que necessitar, irmãzinha.
Sorri pelo gesto e meu coração se aqueceu ao saber que eu vinha sim de algum lugar e que, felizmente, nesse lugar, as pessoas me amavam e se preocupavam comigo.
— Tenho apenas uma última pergunta por ora. — disse, chamando a atenção dos dois. — Eu sou a mais nova?
— Não, você é a oitava de onze irmãos, incluindo a nós, irmãzinha. — Léanne respondeu adotando o que parecia meu mais novo apelido agora.
Fiquei por mais algum tempo na sala de chá da rainha presenciando as trocas de farpas e brincadeira entre os irmãos e sorri, sentindo-me parte de algo consanguíneo pela primeira vez.
✦✦
— Não, agradeça-o por mim. — dei mais um sorriso forçado e fechei a porta suspirando.
Desde que os de Valois chegaram e revelaram que sou a princesa Florence, o palácio inteiro já espalhou a notícia, rendendo-me uma atenção desnecessária da Corte.
Malditos falsos detestáveis!
Perdi a conta de quando criados vieram até os meus aposentos levando presentes e regalias de pessoas que eu nem mesmo conhecia e que, há poucos dias atrás, estavam jogando pedras em mim. Dispensei todos eles.
— Santo rum, isso é extraordinário! — Heilee gritou, erguendo as mãos para cima como uma sonhadora. — Quem diria que a bela speriana sem nome era na verdade a princesa perdida da França, Florence de Valois! Isso daria um belo livro de romance!
— E como daria... — Bridget se empolgou, fantasiando como Heilee. — Imagine a mocinha órfã que descobre ser princesa e que, por isso, poderá se casar com o príncipe, o amor de sua vida!
As três gritaram extasiadas, fazendo-me cobrir os ouvidos por tantos suspiros apaixonados.
— Bem, acho que já chega. — bati palmas, chamando a atenção delas para mim. — Mesmo que eu seja essa tal princesa, eu ainda estou amarrada a um homem sem escrúpulos que precisa pagar pelo que fez. Não esqueçam o motivo de estarmos reunidas aqui.
— Mas creio que, como uma princesa importante, pode pedir ao rei da França para anular seu casamento com Zen. — Bridget sugeriu, surpreendendo-me por eu ainda não ter pensado naquela possibilidade.
— Certamente farei isso em breve. No entanto, agora que estou temporariamente livre pelo título de princesa, preciso aproveitar a chance para investigar o envenenamento do rei, conseguir minha inocência e derrubar seja qual for os objetivos de Zen e Elga Sullivan.
Todas concordaram, tornando a se concentrarem em tentar descobrir como o rei foi envenenado e com qual finalidade, uma a vez que o trono seria de Isaac.
Começamos pensando e discutindo sobre tudo o que Zen e as Sullivan fizeram conosco até o momento e, à medida que fomos lembrando dos acontecimentos, gravamos em uma folha de papel para termos uma visão ampla sobre a relação entre eles.
Montamos uma ordem cronológica de cada evento planejado por eles: as ameaças para que eu aceitasse o matrimônio, as manipulações e abusos, a encomenda do mapa, a prisão de Athos e todas as demais injustiças incumbidas a mim, a Isaac e todos ao nosso redor.
As horas foram se passando e nada daquilo parecia estar relacionado ao envenenamento.
Uma dor estava chegando leve, mas gradualmente aumentando em minha cabeça, ecoando por ela. Percebi que Heilee, Bridget e Fiore estavam com os olhos pesados e semblantes desanimados, assim como eu.
Quando tomei a decisão de sugerir um descanso, Heilee se debruçou sobre a cômoda da penteadeira, derrubando o vaso com água e algumas rosas murchas que já haviam sido colhidas por mim há um tempo.
— Malditas rosas... — ela disse com voz arrastada enquanto a água escorria pela madeira.
Deuses, é isso!
Enquanto Fiore e Bridget limpavam a bagunça e se preocupavam em salvar o papel com tantas horas de pensamento gastos, peguei o rosto de Heilee entre as minhas mãos e gritei:
— Você é um tanto genial, mulher! — apertei suas bochechas, eufórica.
— Isso eu já sabia. — empurrou minhas mãos com um olhar convencido. — Mas afinal, o que quer dizer com isso?
— Antes de ser detida e presa, eu via o rei com bastante frequência no jardim das rosas e, coincidentemente ou não, as Sullivan sempre estavam por lá em horários parecidos.
— Acha que elas podem ter envenenado o rei no jardim? Como? — Bridget pergunta, captando o raciocínio.
— É provável que sim. — sorri, pegando uma rosa murcha em mãos. — Qual seria o lugar mais seguro e discreto para envenenar um homem poderoso, mas frágil pela morte de alguém muito querido?
Elas arregalaram os olhos em surpresa, compreendendo aonde eu queria chegar.
— Um dia antes do baile, eu vi Van John no jardim. — expliquei. — Ele colheu uma rosa e a beijou. Talvez essa possa ser a forma como ele ingeriu o veneno, o que é um plano deveras inteligente.
— Mas como provará que a grã-duquesa o envenenou? — Fiore perguntou, confusa.
— Quando fomos visitar a Mama, ela nos disse que o veneno é de origem inglesa, exatamente de onde Elga Sullivan veio. — Bridget respondeu por mim e eu concordei. — Como um ex-integrante da nobreza, sei a vaidade e discrição de todas as mulheres da classe. Ardilosa como é, ela provavelmente esconde truques em locais impensáveis, como caixinhas de pasta embelezadora.
— Mas que motivo ela teria para envenená-lo? — Heilee apoiou o queixo na mão, remoendo. — Sabemos que ela e Zen querem tirar Saphira de cena por saber de todas as falcatruas que eles nos fizeram, mas será que chegariam tão longe dessa forma?
Mordi os lábios ponderando sobre contar o sujo segredo de Zen e Lady Suzan. Na minha cabeça, aquilo era a única pista de que poderia justificar todas as ameaças e armações para mim, além do único motivo que o fariam arriscar para terem seus objetivos cumpridos.
— Há um bom tempo atrás, quando decidi aceitar a proposta de Zen para não arriscar a vida da minha família, presenciei, sem querer, uma conversa deveras íntima entre ele e Suzan. — comecei devagar, relembrando os fatos. — Ela havia perguntado se ele tinha conseguido o mapa, o mesmo que foi utilizado para a armadilha de Athos.
— Santo rum! — Heilee sussurrou, incrédula. — Eles estavam... juntos?
Assenti rapidamente, várias vezes. Heilee cobriu a boca com uma mão, surpreendendo-se ainda mais.
— Por que nunca disse a Isaac? — Bridget me olhou, confusa.
— Na época, eu pensava que ele poderia gostar dela e, como eu nunca poderia sonhar em tê-lo, não queria destruir o casamento e deixá-lo desapontado. Além do mais, mesmo que ele soubesse, o rei nunca acreditaria em mim, pois a junção deles envolve questões políticas entre Spéir e o Império Britânico.
As três concordaram, compreendendo meu ponto de vista. Agradeci por aquilo, mesmo sabendo que tive diversas chance para dizer a Isaac.
— Bem, — Bridget pigarrou, voltando ao que realmente interessava. — se o mapa do qual Zen e Suzan conversaram é o mesmo que o mapa que condenou Athos, acho que temos de checá-lo.
— Sim, penso que o mapa pode conter o verdadeiro objetivo deles, já que tanto o príncipe como as Sullivan o querem. — cruzei os braços, refletindo. — No entanto, o mapa está com Isaac e, no momento, ele está inacessível...
— Está com Liam. — Heilee disse e eu ergui uma das sobrancelhas. — Antes de Isaac ser oficialmente trancafiado pelo rei, ele deixou o mapa com o irmão mais novo para caso de urgência.
Sorri por dentro, enchendo meu peito de orgulho de Isaac. O homem sempre fora esperto e isso eu não podia negar.
— Bem, precisamos verificar duas coisas antes do anoitecer: o jardim das rosas e o mapa. — levantei-me, enumerando nossos objetivos em meus dedos. — Sugiro que Heilee e Fiore vão até Liam. Depois, eu e Bridget as encontraremos na sala de música do palácio para cruzarmos as informações sem chamar muita atenção.
Todas assentiram em confirmação ao nosso plano e logo saímos pela porta de meus aposentos para colocá-lo em prática.
Separamo-nos antes de descermos a escada cascata e quando eu e Bridget, enfim, chegamos ao jardim, certificamos de que não havia ninguém suspeito por perto.
Enquanto fingíamos passear pelo jardim, aproximamo-nos sutilmente de onde eu vi Van John pela última vez.
Surpreendi-me ao ver uma placa memorial com o nome de Marine Klemaant e seu ano de morte entre as rosas. Em cima da pedra, havia algumas flores murchas, provavelmente deixadas ali pelo rei.
Com a cobertura de Bridget, agachei-me no intuito de vasculhar mais sobre a pequena área e finalmente encontrei o que teorizamos.
Passei os dedos sobre a placa e algumas rosas próximas, confirmando o veneno quando ele grudou em minha pele. Era o pó de mesma cor e textura que o médico real encontrou nas vestes do rei e que Mama nos deu como amostra.
Elga Sullivan estava envenenando o rei de Spéir através da maior fraqueza dele.
Olhei para Bridget e ergui as mãos mostrando-lhe a evidência.
— Temos de encontrá-los, falta apenas uma peça para o quebra-cabeça se encaixar.
✦✦
Depois de passarmos por entre criados com enfeites de casamento em mãos e guardas preparando cavalos na parte externa da entrada principal do palácio, subimos as escadas o mais rápido que podíamos e dobramos o corredor dos cômodos de arte.
Conforme combinamos, Heilee, Fiore e Liam estavam à nossa espera.
Logo que passamos pela porta, Fiore a fechou, deixando-nos a sós para tratar de um assunto delicado.
— Liam, creio que Heilee tenha lhe contato tudo até aqui. — chamei-o, sentando-me no banco do piano e ele assentiu. — Eu e Bridget encontramos o veneno nas rosas e na placa memorial da princesa Klemaant, indicando que, muito provavelmente, a grã-duquesa envenenou o rei.
— Temos péssimas notícias também. — Heilee comentou com um sorriso nada agradável.
Tornei a olhar para Liam e ele suspirou, apertando o papel amarelado em suas mãos.
— Isaac havia deixado o mapa comigo, mas eu não tinha visto seu conteúdo por falta de interesse. — disse, estendendo o rolo na minha direção.
O ar pareceu se apertar em meus pulmões assim que o abri. Inúmeras possibilidades vieram em minha cabeça, mas apenas uma dava-me calafrios.
— É o mapa do palácio, mais especificadamente das rotas de fuga para caso ocorra alguma emergência e a Família Real tenha de escapar. Somente o rei e sua guarda pessoal tem acesso a tais informações. — ele explicou.
— Ou seja... — sussurrei, temendo a resposta que viria a seguir.
— Zen pretende invadir o palácio para matar o rei e tomar o trono com a ajuda da grã-duquesa.
Deuses... eles vão... eles querem...
Isaac corre perigo.
— Isaac! — quase gritei, sentindo o pânico me tomar ao conectar os pontos. — Eles vão matá-lo também! Temos de impedir!
— O que quer dizer? Matar como? — Heilee perguntou, tão preocupada como o restante.
— Está completamente evidente! — peguei o mapa, girando-o na direção deles. — Eles querem o mapa para matar Van John e Isaac, o herdeiro do trono. E é provável que o façam amanhã, no dia do matrimônio real, quando todos estarão entretidos e reunidos para a união dos novos governantes de Spéir.
Logo que compreenderam a gravidade da situação, arregalaram os olhos, descrentes. Tudo esteve bem planejado bem debaixo de nossos narizes.
— Temos de agir rápido. Faltam apenas horas para o casamento. — Liam concordou, mexendo os olhos impacientes.
— Mas de que forma? — Bridget indagou em um desespero aparente.
— Eu tenho um plano, mas precisaremos de um pássaro mensageiro. Nunca chegaríamos ao Litoral a tempo. — apertei os lábios, pensativa.
— Pretende pedir ajuda ao meu pai? — Heilee perguntou e eu assenti.
— Zen certamente usará os guardas de sua posse e não sabemos o que esperar das Sullivan. Necessitamos do nosso próprio exército, que jamais deixaria o reino cair nas mãos do Segundo Príncipe. — falei, convicta. — Lutaremos ao lado dos piratas de Hawkins, das meninas de Mama e de todos os cidadãos de Spéir que quiserem se juntar a nós.
— Certo. — Liam se levantou, apoiando-nos. — Mandarei um pássaro com uma carta explicando a situação e um pedido para que o pai de Mabel compartilhe uma cópia da matriz do mapa com Hawkins e os demais para traçarmos um plano amanhã.
Todos nós assentimos e tomamos nossas posições, dispostos a trabalharmos pela noite a dentro para que tudo ocorresse conforme planejamos.
O jogo de Zen Harrington e Elga Sullivan acabaria em breve.
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