Capítulo 24 - Desejo por escolhas
Gente, estou vindo aqui no início do capítulo para dizer que ele tem relatos de cenas muito sensíveis. Sugiro que quem não gosta de ler ou possuí o emocional mais suscetível, pule este capítulo ou comece a leitura a partir do primeiro corte de cena (os dois losangos pretos), pois pode conter gatilhos.
Eu estava presa outra vez, mas desta, certamente não sairia. Talvez nem mesmo a sorte estaria a meu favor.
Uma semana se passou desde o baile de cumprimento e o envenenamento não tão misterioso do rei. Para mim, era claro como a água do mar que Zen e as Sullivan haviam preparado uma armadilha.
Nesse tempo, fiquei detida até que Van John retornasse às suas atividades e desse início à convocação de um julgamento — que certamente fora manipulado por ele próprio e pelos famigerados conselhos dados por seu segundo filho.
— Majestade, eu posso tentar realizar um reconhecimento do veneno pirata. — pedi mais uma vez, ajoelhada forçadamente por guardas, enquanto estava de frente para o rei. — Talvez eu o conheça e consiga informações sobre um antídoto ou algo que retarde o efeito...
— CALÚNIA! — Bradou para os quatro cantos do salão e se levantou do trono. — Você é o único indivíduo dentro dessa Corte que armaria contra mim! Primeiro com o mapa e sua criada e, agora, o veneno! Sempre soube que Marie Anne estava errada ao deixá-la se infiltrar em meu palácio...
Meus olhos recaíram imediatamente para um Zen que continha um sorriso de divertimento bem sutil em seus lábios. No momento, não conseguia sequer medir o quanto a raiva se apoderava de mim a cada vez que eu tornava a observá-lo.
— Decreto Saphira como culpada por tentativa de assassinato da autoridade máxima do reino de Spéir, condenando-a à prisão por tempo indeterminado! — Van John apontou para mim, furioso. — Levem esta bruxa daqui!
Os guardas me levantaram bruscamente, puxando-me pela sobra da corda que prendia meus pulsos e me levando para a prisão no subsolo do palácio.
Desde então, passaram-se alguns dias até que ouvi alguns rumores vindos de guardas que o médico real classificou o veneno como nocivo a longo prazo, o que fazia o rei estar correndo risco pela possível grande quantidade ingerida.
No entanto, parece que ainda não se sabe acerca de algum antídoto ou em que circunstâncias Van John tomou o veneno. Somente os residentes do palácio sabem do tratamento e de suas reais condições.
O único fato concreto é que alguém o envenenou não só para me atingir. O rei corria perigo e a minha revolta era saber que o possível traidor estava debaixo do nariz dele, mas seria incapaz de vê-lo.
Enquanto toda essa barbaridade rolava por debaixo das tapeçarias luxuosas do palácio, estive aqui, presa injustamente e sendo torturada desde o dia em que fui declarada como culpada, quando, inclusive, tomaram a safira de mim.
Meu corpo continha muitos cortes e feridas mal cicatrizadas, além da dor descomunal que sentia em todos os locais arroxeados e inchados. Meus cabelos estavam imundos e embolados. As roupas frágeis e incômodas que substituíram o vestido exuberante estavam rasgadas e sujas.
A comida era um luxo por aqui. Tudo o que eu recebia eram restos de ossos dos pratos e farinhas da cozinha real os quais eu tinha de retirar as migalhas para não ficar sem comer algo. Às vezes, dava sorte em comer um pequeno pedaço de pão mofado quando os ratos não o infectavam.
A alimentação era a parte certamente menos desagradável e agoniante. Infelizmente, todas noites eu tinha de escutar as mulheres das celas ao lado sendo estupradas e abusadas pelos guardas ou carrascos.
A cada vez que eu escutava seus gritos de lamúria e dor, meu coração se partia por elas serem forçadas àquilo repetitivamente, sem sequer poder se defender ou ter o direito de justiça pelo que estão fazendo com seus corpos e mentes.
Eu sofria junto com elas e a única coisa que poderia fazer era pedir aos deuses que as levassem de uma vez para que não morressem um pouco a cada noite.
Agradeci a Liam ao saber que ele deu uma ordem interna indiscutível e inquebrável para que não tocassem em mim ou seriam enforcados. No entanto, a humilhação não poderia ser vigiada a todo momento.
A grande maioria deles cumpriam em não tocar em mim, mas acariciavam seus membros grosseiramente enquanto eu era torturada por instrumentos horripilantes ou quando eu conseguia alguns minutos de sono.
Ao vê-los se divertindo com aquilo, o vômito subia quente e ardido pela minha garganta, por vezes sujando meus cabelos ou o restante das roupas esfarrapadas. Eram nesses momentos em que a dor física não era nada comparada a emocional.
Durante esse um mês vivendo o inferno como nunca vivi, sequer vi ou soube notícias de Heilee, Bridget, Fiore e tampouco de Isaac. Tudo o que eu sabia pelas conversas entre os guardas era que o casamento se aproximava cada vez mais e só esperava que ele estivesse bem.
Abracei minhas pernas e me encolhi no canto da cela, enquanto acompanhava com os olhos cansados os ratos que comiam farelos da minha comida e logo se iam para longe.
Naquele momento, as correntes grossas e pesadas que prendiam meus pés já não importavam; a dor física marcada em meu corpo já não importava; nada mais importava, pois eu desejava não existir a cada segundo que se passava dali até a eternidade.
✦✦
Os ventos fortes e cortantes passavam com rapidez pelo convés e pelas velas que ainda estavam sendo recolhidas pelos homens, reforçando o pânico que se disseminava entre nós ali embaixo.
As ondas terrivelmente agitadas batiam contra o casco, balançando o navio para um rumo irreconhecível e contribuindo para que a água inundasse cada vez mais a superfície amadeirada.
Os outros homens corriam em desordem pelo desespero em retirar com baldes o volume líquido que se acumulava ali, antes que todos nós afundássemos.
As crianças choravam sem compreender o que estava ocorrendo e as mães juntavam as mãos, clamando por misericórdia e salvação ao seu deus.
Tudo girava ao redor da garotinha e ela era incapaz de gritar ou fazer qualquer coisa que não fosse apertar a pedra brilhante em seu bolso.
Quando tudo escureceu, agonizei-me ao senti-la se afogar na água salgada. Quanto mais ela tentava respirar, mais líquido entrava por sua boca e narina. Quanto mais ela tentava emergir, mais ela se afogava em um ciclo que não tinha fim.
No momento em que ela desistiu e parou de lutar, pois não tinha mais forças, um fino tilintar ressoou debaixo d'água e ela abriu seus olhos, procurando de onde vinha.
A pedra azul em seu bolso brilhava cada vez mais forte conforme o barulho aumentava, tornando tudo escuro outra vez.
Despertei assustada, sentindo meu coração bater fortemente contra o meu peito e a respiração descompassada. Olhei ao meu redor e conclui que estava na cela do palácio. Apenas tive o mesmo pesadelo outra vez, outra milionésima vez.
Assim que consegui me acalmar, um tilintar ressoou novamente e eu pisquei, tentando saber se estava em sono profundo ainda. No entanto, dois guardas apareceram no meu campo de visão e um deles continha um molho de chaves em mãos.
— O rei quer vê-la. — disse ao abrir a cela enquanto o outro entrava e destrancava a fechadura da corrente em meus pés.
Fui empurrada e levada escadas acima bruscamente pelos guardas, mas eu me sentia tão fraca e machucada que sequer era capaz de dizer alguma coisa.
No momento em que alcançamos os corredores do palácio, a claridade da luz me fez esconder meus olhos por algum tempo e quando tornei a enxergar melhor, já estávamos próximos do salão de entrada principal, onde toda aquela confusão havia começado.
Tudo parecia normal por ali, exceto pelos criados que saíam e entravam de corredor em corredor com enfeites azuis, vermelhos, dourados e brancos em mãos.
O casamento estava próximo.
Os guardas continuaram a me levar para o costumeiro corredor que levava ao salão do trono e eu quase quis rir por estar passando naquele corredor, talvez, pela centésima vez.
Assim que a pesada porta de duas folhas se abriu, não precisei dar mais do que dois passos para ter todos eles em minha visão.
O rei estava acomodado no trono imponentemente, semelhante ao impassível médico real, apesar de estar visivelmente pálido. Ao contrário deles, a rainha já possuía uma expressão de melancolia e culpa em seu rosto.
Ao lado do pai estava Zen Harrington com seu sorriso sutilmente maléfico no rosto. E não tão diferente dele, a grã-duquesa estava a poucos passos de mim, permitindo-me ver sua satisfação mesmo estando de perfil em uma pose altiva.
A raiva circulava gradualmente em mim ao olhá-los. Eu estava pagando por um crime que não era meu enquanto os culpados se deleitavam da minha aparência, da minha dor.
— Parece-me que quatro semanas e alguns dias lhe fizeram bem, pirata. Afinal, o gato comeu sua língua afiada. — o rei comentou, irônico, e quase abri minha boca para mostrar a língua que eu ainda tinha. — Sem mais rodeios. Quero que seja breve. — Tossiu levemente.
O médico real assentiu ao rei e se virou para mim.
— Como é de seu inteiro conhecimento, Vossa Majestade está em recuperação, que pela graça dos Céus, tem progredido. No entanto, não foi possível identificar o veneno e por muito menos sintetizá-lo em um antídoto. Por isso, precisamos da fonte de onde ele veio.
— Estão me dizendo que querem que eu lhes diga o veneno que eu, supostamente, usei? — minha voz saiu em um sussurro, mas não me contive em deixá-la sarcástica. — Eu nem mesmo sei a procedência deste material.
— Não é o que foi afirmado quando encontramos os resquícios. — Ergueu uma sobrancelha, desafiador. — O veneno foi confirmado como estrangeiro e, por esse o motivo, Vossa Majestade e seu conselho ordenam que vá ao Litoral dos Piratas identificá-lo, além de nos trazer o antídoto.
— E se eu recusar ou não conseguir nenhuma das coisas que desejam?
Van John inspirou fundo, apertando os dedos no braço do grande trono.
— É uma ordem. — Bufou em desgosto. — Como a causadora do meu envenenamento, caso não consiga o antídoto, será executada de imediato. Tem sorte pela Lei das Rosas vigorar.
— E quanto tempo eu tenho? — dei de ombros. Qualquer um dos resultados me mataria de toda forma.
— Até três dias. Vossa Majestade precisa estar devidamente recuperado para o matrimônio e coroação dos futuros governantes de Spéir — o médico real disse, surpreendendo-me. — O Terceiro Príncipe e seus guardas farão sua vigia para que não use o material indevidamente contra a nobreza e os demais súditos.
— Não se esqueça de que suas criadas estão em minhas mãos. Se falhar, executarei todas. — Completou o rei, dando a sessão como encerrada.
Os guardas tornaram a me levantar, levando-me para fora do salão do trono, onde, bem ao fundo do corredor, eu via três das cinco pessoas que mais precisava naquele momento.
— SAPHIRA! — Heilee gritou ao me ver e veio correndo em minha direção.
Quando, enfim, ela me envolveu em seus braços, um nó se formou em minha garganta e não era por eles me apertarem por cima das feridas. O sentimento de calor humano se juntou ao da saudade e da segurança, fazendo-me me sentir confortável e esperançosa depois de mais de um mês naquele buraco escuro e horripilante.
Tão logo senti os braços de Bridget fazendo o mesmo e fechei os olhos, agradecendo aos deuses por guardá-las em minha ausência. Eu era mesmo uma sortuda por tê-las em meu caminho.
— Pelos mares, o que fizeram com você? — Heilee se afastou junto com Bridget, analisando-me dos pés à cabeça.
Abaixei os olhos por um momento e dei um pequeno sorriso fraco, tornando a levantá-los quando percebi a presença de Liam.
— Obrigado por cuidar delas por mim.
— Agradeça à minha mãe também. — Ele sorriu. — Ela tomou a responsabilidade de supervisão delas para que ninguém as maltratasse. Assim como nós, a rainha não acredita que você tenha envenenado o rei.
— E a propósito, ela tomou posse de sua safira. — Bridget disse, arrancando um suspiro aliviado de mim.
— O que houve no salão? — Heilee tornou a perguntar, bastante preocupada. — Van John te libertou?
— Longe disso. Ele quer que eu vá até o Litoral e lhe traga um antídoto. — neguei e olhei na direção de Liam. — E você foi escalado para isso.
— Sim, fui eu quem pedi. — Admitiu. — Todos do palácio pensam que sou neutro em relação a você e por isso autorizaram minha ida.
Suspirei, desanimada. Tudo parecia não ter sentido mais.
— Acho que esse é o meu fim. — comentei, mais para mim do que para eles. — Mesmo que eu consiga o antídoto, o rei não vai investigar sobre o envenenamento. Eu continuarei presa e consequentemente morrei, sendo diretamente pelas mãos dele ou não.
Heilee franziu as sobrancelhas em confusão e meneou a cabeça, recusando-se a aceitar o que eu havia dito.
— Saphira, você não pode morrer e nem ceder a eles! — segurou-me pelos ombros. Seu olhar me avaliava indignada, mas com certa esperança. — Você é uma pirata, uma mulher e uma civil que luta pelos seus direitos! Não pode deixar que a usem como usaram Athos ou a Coroa continuará matando inocentes!
— Eu não sei se tenho mais forças para lutar, Heilee... — fechei os olhos, sentindo-me incapaz. — É complicado se manter forte o tempo todo.
— Nós também não sabemos até quando vamos nos manter, mas tudo o que nos resta é continuar lutando! — intensificou o aperto em meu ombro, obrigando-me a olhá-la. — Eu lutei por você, Bridget lutou por você, Fiore, Liam, a rainha... Saphira, Isaac lutou por você. Todos nós lutamos por você da mesma forma que sempre lutou por nós!
Um aperto fisgou o meu peito ao ouvir o nome dele e Liam prontamente respondeu, parecendo ler minha mente.
— Meu irmão foi detido em seu quarto pelo rei após tentar defender sua liberdade. — Apertou os lábios em lamento. — Isaac ficará trancafiado até que o dia do matrimônio chegue, ou seja, em torno de três dias.
— É o tempo que nos foi dado para conseguir o antídoto... — refleti, tomando proporção da situação.
O rei queria que Isaac se casasse de toda forma, provavelmente imaginando que ele poderia resistir ao casamento por mim. Deuses...
— Saphira, — Heilee tornou a me chamar. — está na hora de lutar por si mesma e pelo seu amor por Isaac. Você precisa ser agora a guerreira que sempre foi, independentemente da circunstância. O futuro dele e o seu dependem disso.
Fechei os olhos, engolindo em seco. Heilee tinha razão. Eu não quero um "felizes para sempre" como Zen alegou dizer.
Eu quero liberdade e igualdade de escolhas.
Eu quero realizar um grande sonho para Spéir e seus cidadãos que tanto podem, mas pouco têm.
Eu quero que meu futuro seja meu e não deles.
E foi ali mesmo que eu prometi que daria a minha vida por meus amigos, por meu povo e por quem eu amava. Tudo o que me restava era eles e jamais estaria disposta a deixar sem mundo sabendo que eles estavam precisando de mim.
Assenti em confirmação, ganhando o incentivo dos três e, dali mesmo, Liam juntou seus guardas com a amostra de veneno em posse e partimos em uma carruagem rumo ao Litoral dos Piratas.
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