Capítulo 16 - Presente inocente
— Como estou?
A voz de Isaac chamou minha atenção logo que saímos de meu pequeno casebre depois de passarmos algum tempo procurando roupas descentes para disfarçamos nossas identidades.
Avaliei suas vestes comuns de um cidadão qualquer e o chapéu velho que cobria praticamente todos os seus fios negros.
— Definitivamente não está como um príncipe, Alteza. — sorri, ajeitando o sombreiro em minha cabeça e guardando um pequeno saco com algumas moedas de troca e minha safira no bolso do vestido.
— Que lástima! Estava contando com meu charme para conseguirmos informações. — passou uma das mãos teatralmente no rosto e eu apenas ri de seu jeito exagerado.
— Temos de ir ou perderemos o restante do dia. — disse, puxando-o pelo braço gentilmente.
Não demorou muito para que chegássemos a uma das entradas do Porto de Bearg, onde havia o cruzamento com a ladeira de acesso às Cidades Reais, justamente no local em que troquei minhas primeiras palavras com Isaac.
Como de costume, Bearg tinha várias naus e demais barcos atracados com mercadorias ou pessoas chegando em Spéir. A movimentação era sempre excessiva, principalmente na Baía dos Mercadores.
— Aquela é a taberna onde eu, Jaqques e alguns de nossos apoiadores costumamos nos encontrar para planejarmos a futura instalação da Marinha de Spéir. — Isaac apontou para uma das construções rústicas da viela onde passávamos.
Analisei a taberna de cima a baixo e franzi a testa ao reconhecer sua entrada e alguns de seus elementos exteriores.
— Estavam em uma reunião quando eu e Heilee os encontramos aqui? — ri, relembrando do momento em que o príncipe jogou pó de pimenta nos guardas e saímos correndo pela Baía.
— Sim, porém uma certa pirata arteira apareceu e quase estragou nossos planos ao trazer a Guarda Real em seu encalço. — comentou, tentando conter uma gargalhada.
Continuamos andando e conversando mais um pouco até começarmos a colocar nosso plano em prática, tentando não parecermos suspeitos ou revelarmos quem éramos.
Perguntávamos pela mulher que Athos descreveu — usava um capuz, carregava uma cesta de maçãs e parecia doente, apesar da voz jovem —, mas todos até o momento disseram que nunca viram tal figura por ali.
Procuramos por todo o restante da manhã pelas vielas da Baía e nenhuma pista foi encontrada. Quando a fome apertou nossos estômagos, Isaac nos levou a uma boa taberna com uma comida excelente e de lá, retornamos às ruas para nossa missão impossível.
Por mais que eu estivesse determinada, Isaac parecia estar ainda mais que eu, não mostrando qualquer traço de desapontamento ou desesperança em achar uma pessoa que sequer vimos alguma vez na vida.
Eu agradecia por ele estar ao meu lado, mesmo que aquela questão não tivesse uma relação direta com ele. E era por isso que acreditava na bondade de Isaac. Ele não media esforços para fazer justiça por quem quer que fosse.
Por fim, Isaac sugeriu que expandíssemos os locais de busca e caminhamos por mais um tempo até chegarmos a uma parte de Spéir que eu não conhecia: a Vila dos Ofícios, uma das áreas que ficavam próximas às fronteiras do reino e eram pouco comentadas pelas pessoas.
Isaac dizia que ali era onde famosos e habilidosos artesãos, curandeiros, ferreiros, artistas de rua e poetas realizavam seus ofícios à sociedade, incluindo a Família Real. No entanto, era também um local de resistência contra os dogmas cristãos, mesmo que silenciosamente e com intensidade cada vez menor.
Antes de ser a Vila dos Ofícios, aquele local era a Vila dos Druidas, funcionando como um núcleo de repasse de conhecimento, adoração e construção da história das divindades celtas.
Infelizmente, com a conversão forçada do cristianismo por parte dos franceses e ingleses, Spéir foi se tornando um reino cristão quase radical, denominando nossos deuses como pagãos e extinguindo seus seguidores. Como alguns dos pouquíssimos praticantes que sobraram, alguns dos piratas ainda repassavam os costumes celtas entre si.
A Vila tinha a circulação mais aberta que a Baía, mas com toda certeza era menos movimentada. Os ofícios mais nobres ficavam em grandes casas feitas de madeira e pedra, enquanto os menores e mais simples ficavam em pequenas tendas nas vias anunciando seus feitos.
— Como vamos encontrar essa mulher por aqui? Pode ser qualquer uma delas. — mordi os lábios, observando toda e qualquer mulher que carregava cestas ou usava alguma capa.
— Bem, não percamos as esperanças ainda. Se a mulher descrita era jovem, mas parecia doente, certamente algum dos curandeiros daqui deve tê-la visto. — seus olhos calmos encontraram os meus e um sorriso insistia em aparecer em seus lábios, mesmo que alguns traços do cansaço já o afetassem.
Assenti em confirmação e o segui pela Vila. Entramos em muitas das casas em que havia curandeiros, mas nenhum deles havia visto a mulher desconhecida passar em seu local de ofício.
Soltei um suspiro frustrado. Eu sabia que seria difícil, mas não impossível. Eu prometi a Athos que o tiraria da prisão e limparia seu nome, mas a cada minuto que passo neste lugar, menos segurança tenho de que possa cumprir com minhas palavras.
— Boa tarde, meu senhor. Em que posso auxiliá-lo? — uma voz me chama atenção, tirando-me de todo o meu devaneio e meus olhos vão diretamente para seu emissor.
Um homem de cabelos e barba grisalhos nos recepciona gentilmente, alternando seu olhar entre mim e o príncipe.
— Boa tarde, caríssimo. Eu e minha esposa temos procurado por uma mulher. — Isaac o cumprimentou, indo direto ao ponto. — Ela é jovem, mas está doente. Por acaso não a viu? Ela é minha cunhada e a perdemos de vista a algum tempo.
— Oh, sinto muito pelo ocorrido, meus senhores. — ofereceu-nos um sorriso condolente. — Atendo muitas jovens diariamente, mas creio que não vi nenhuma com essas características.
— Tem certeza, senhor? Ela carregava uma cesta de maçãs que havíamos comprado para sua voz e utilizava uma capa para mantê-la aquecida. — completei, não precisando forçar o desespero já enraizado em mim através da minha voz.
O homem franziu as sobrancelhas e alisou a barba, negando. No entanto, minhas expectativas aumentaram logo que ele ergueu suas sobrancelhas, parecendo se lembrar de algo.
— Lembro-me de uma jovem senhorita passando pela rua de meu ofício há pouco mais de uma semana, mas ela adentrou aquele local em frente ao meu. — explicou, apontando para a casa fechada do outro lado da via.
— A quem pertence aquela oficina? — Isaac perguntou, confuso.
— A um renomado e habilidoso artesão, não tenho muita amizade com ele. Dizem que ele costuma frequentar a Alameda e o Porto de Bearg para entregar encomendas, mas não o vejo há alguns dias, quando ele fechou seu ganha-pão. — deu de ombros.
Artesão... artesão!
Como pude ser tão tola ao deixar uma informação importante passar diante de meus olhos?
Lembro-me bem de quando o rei convocou minha presença na sala do trono e expôs o mapa que, supostamente, Athos roubou. Tenho certeza de que o ouvi dizer que o havia encomendado com um dos artesãos mais requisitados de Bearg.
Assim que agradecemos ao curandeiro e saímos da oficina, pude sentir a esperança fluir pelas minhas veias novamente ao me lembrar de um detalhe como aquele. Certamente o tal artesão poderia nos dizer sobre a mulher e sua relação com o mapa.
— Vamos, Alteza, precisamos procurá-lo por Bearg ou pela Alameda. Não podemos perder tempo. — puxei Isaac pela mão, andando rápida e desesperadamente pelas ruas da Vila, mas ele logo me parou.
— Saphira, está no final da tarde. Temo que não chegaremos em nenhum dos dois locais em um bom horário. Não é melhor deixarmos para amanhã? — seus olhos azuis me fitavam hesitantes.
— Eu não posso esperar, Alteza. Athos está apodrecendo na prisão de Ardaigh. Ele precisa de mim mais do nunca. — neguei, prestes a soltar sua mão, mas ele tornou a segurar a minha, apertando-a carinhosamente e fazendo meu coração saltar.
— Compreendo. Eu vou com você. — sorriu após um pequeno suspiro. — Bearg ou Alameda?
— Qual está mais perto?
— Alameda.
— Então seguiremos para lá. — sorri de volta.
Tornamos a caminhar pela Vila agora de braços dados. Isaac parecia distraído com os ofícios, enquanto eu parecia uma boneca de madeira rígida. Sentia que meu coração estava prestes a explodir e meu corpo paralisar de repente, mas mal eu sabia que isso estava sendo apenas uma amostra do que aconteceria ainda.
— Acho que você está muito tensa, Saphira. Venha, vamos ver uma coisa. — Isaac abriu um sorriso e apontou para uma das pequenas tendas, puxando-me pela mão.
Era um ofício de flores e hortaliças. O que ele queria ver por ali?
— Boa tarde, meu senhor! O que levará hoje? — uma jovem nos atendeu, fixando seu olhar encantado em Isaac. Rolei os olhos discretamente.
— Quero aquele ramalhete de flores vermelhas, por favor. — sorriu para ela gentilmente, fazendo-a suspirar. Rolei os olhos outra vez, travando meu maxilar.
A jovem pegou o mais bonito e embalou a base dos cabinhos espinhosos. Um sorriso bobo dançava em seus lábios e aquilo estava me irritando mais do que deveria.
— Aqui estão, meu senhor! — sua voz soou estupidamente alegre, enquanto ela entregava os ramos para Isaac.
Por que raios eu estou me importando tanto com isso? Ela nem mesmo sabe quem ele é. E além do mais, todas ficam encantadas por Isaac, mesmo que saibam que o príncipe herdeiro de Spéir possui uma noiva. Não é como se fosse a primeira vez que presencio algo assim.
— Saphira — parei de encarar a jovem quando ouvi seu chamado e me virei para ele. —, são para você.
Meu olhar imediatamente deixou o seu e recaiu sobre as flores estendidas em minha direção.
Não poderia ser.
Ele está me presenteando com rosas vermelhas.
Santo rum...
Perdi a fala por um momento, sentindo apenas uma quentura em minhas bochechas. Meu coração havia disparado e meu corpo resolveu acompanhá-lo desta vez.
Os olhos de curiosos de Isaac me avaliavam e aquilo só serviu para me deixar mais nervosa.
Maldição! Eu precisava mais do que nunca de uma boa desculpa para não aceitar aquelas flores. Não posso deixar que ele se aproxime tanto.
— E-eu não posso aceitá-las. — por fim, consegui dizer, sem coragem para encará-lo.
— Mas são rosas vermelhas. Sei que as adora. — disse tranquilamente, como se fosse um mero presente.
Deuses! Por que homens são tão estúpidos? Eles sequer sabem o significado das coisas!
— Se não gostou das flores, podemos trocá-las. — sorriu, entregando o ramalhete à jovem. — Pode trocá-las por...
— Não! — quase gritei, tomando as rosas das mãos de Isaac. — Quer dizer, eu... eu posso pagar por elas. Não precisa gastar com sua melhor amiga. — dei-lhe um sorriso amarelo, retirando o saco de moedas de troca do bolso do vestido. Bela desculpa, Saphira!
— De modo algum! Eu quero presenteá-la. — o príncipe franziu as sobrancelhas, ofendido, e fechou o saco de moedas em minhas mãos.
— Pois acho que você pode encontrar algo melhor pelo caminho, então deixe-me apenas pagar por elas. — rebati em um tom um pouco alto, atraindo olhares alheios e tentei puxar o saco de volta para mim.
— Saphira, apenas seja cortês e aceite meu singelo presente! — tornou a puxar o saco de minhas mãos. Deuses! Que homem mais teimoso!
— Sinto muito, mas minha honra não me permite! — puxei de volta.
— Saphira! — puxou para si outra vez.
As pessoas nos olhavam como se fossemos dois animais, mas eu estava ocupada demais travando uma batalha de olhares com Isaac para me importar com a minha conduta nada recatada. Que a tutora Liséli e suas lições se lascassem!
— Desista, Saphira. Eu sempre ganho. — disse em um tom de voz contido. Seu olhar era firme e autoritário.
— Então cumprimente a vez em que perderá. — falei entredentes, sorrindo convictamente como ele sempre fazia comigo.
— Desculpe-me, senhora, mas se não vai querer as flores, eu aceito! — uma voz fina e apaixonada soou atrás de nós.
Ao ouvi-la, tanto eu como o príncipe desfizemos nossa guerra por alguns segundos, e encaramos a jovem do outro lado do pequeno balcão de madeira. Um sorriso de ponta a ponta estava escancarado em seus lábios e, por um momento, eu quis matá-la.
— Senhorita, acredito que... — comecei por perder a paciência, dirigindo-lhe a palavra cautelosamente, mas parei o meu belo discurso assim que senti o meu saco de moedas escapar de minhas mãos.
Olhei para Isaac nada satisfeita, mas logo percebi a figura de um homem correndo com o saco em mãos por cima de seus ombros. No mesmo instante, arregalei os olhos, sentindo um misto de raiva e pânico me tomarem.
— EI! — gritei para o ladrão e, imediatamente, joguei o ramalhete nas mãos da jovem, correndo atrás dele com Isaac chamando por mim em meu encalço.
Felizmente, vi o exato momento em que o espertinho virou em uma rua à esquerda da que estávamos e apertei o passo, seguindo-o a todo vapor.
Se ele pensa que vai me passar a perna, digo-lhe que está muito enganado!
— DEVOLVA OS MEUS PERTENCES! — continuei gritando, ao vê-lo dobrar outra esquina.
— Eu vou atrás dele! Volte para o ofício de flores! — o príncipe me alcançou e logo me deixou para trás. Por correr mais rápido que eu, ele chegava cada vez mais perto do homem.
Apenas assenti, vendo-o se distanciar de mim, mas continuaria a segui-los de toda forma. Eu não poderia perder aquele saco. Minhas economias estavam ali, minha safira estava ali!
Quando os vi prestes a virarem por outra rua, tentei apressar o passo para alcançá-los e me arrependi amargamente. Soltei um grito de dor ao pisar em uma pedra elevada no caminho e cair no chão pedregoso, ralando os braços e pernas.
— SAPHIRA! — Isaac se virou assim que me escutou e veio correndo até mim.
Meus braços e joelhos ardiam tanto que eu sequer consegui repreender o príncipe por vir atrás de mim e deixar com que o ladrão fugisse com minha safira, minha única chance de saber que eu era.
— Céus... deixe-me ajudá-la. — segurei em suas mãos para me levantar, enquanto algumas pessoas murmuravam entre si ou nos observavam espantadas.
Assim que tentei firmar os pés no chão, uma dor insuportável se espalhou pelo meu tornozelo, fazendo-me quase desabar outra vez, caso Isaac não me segurasse.
Soltei um suspiro de raiva e tentei me firmar novamente para ir atrás daquele homem, mas, novamente, a dor veio com tudo e franzi as sobrancelhas quando ela parecia não querer passar e os demais cortes pareciam pegar fogo.
— O homem... vá atrás dele. — apontei na direção aonde ele havia seguido. Minha voz soou baixa e embargada assim que senti a realidade me atingir com força.
Eu não poderia acreditar que simplesmente perdi a única coisa que me fazia sentir e ser alguém; a única coisa que me motivava a lutar por mim mesma e me enxergar como alguém que poderia deixar de ser ninguém em um futuro próximo.
Isaac me apertou contra si e alisou meus cabelos lentamente, tentando me acalmar. Sentia-me como uma tola ao ignorar seu pedido para que voltássemos amanhã. Fui inocente demais ao pensar que poderíamos resolver o problema facilmente após um longo dia.
— Você estava certo... — suspirei, mordendo os lábios para conter minha frustração.
— Shh... — ele me interrompeu, passando o polegar em meu lábio inferior delicadamente. Apesar de tudo, seu olhar era calmo e reconfortante. — Vamos encontrá-lo, mas no momento, você é a prioridade. Deixe-me ver o seu pé.
Assenti silenciosamente e me afastei de seus braços. Isaac se abaixou e eu me apoiei em um de seus ombros para me manter de pé.
— Seu tornozelo está inchando e isso não é um bom sinal. — ao se levantar, passou uma das mãos pelos cabelos, inquieto. Seus olhos agora refletiam preocupação. — Estamos próximos da Alameda. Vamos para um local seguro e tentarei arranjar-lhe um curandeiro de confiança.
— Sim. — murmurei, concordando.
Quando fiz menção de andar, Isaac me surpreendeu ao passar os braços por debaixo de minhas pernas e costas, carregando-me sem dificuldades.
Em uma situação qualquer, eu reclamaria e o insultaria até que ele me colocasse no chão outra vez, pois eu não era uma pobre jovenzinha frágil. No entanto, a chateação e o cansaço me fizeram perder as energias e repensar em sua atitude nobre.
Isaac era sempre cuidadoso comigo, mesmo que fosse um ogro satírico na maioria das vezes e eu o agradecia por isso. Se não fosse por seu apoio e crença em mim, eu teria sucumbido à vontade de resistir a Zen e suas falcatruas contra mim e minha família.
Passei meus braços ao redor de seu pescoço e me aconcheguei em seus braços. Não queria pensar em mais nada naquele momento, só precisava sentir o seu calor e me acalmar para recomeçar vigorosamente outra vez.
Alguém mais arrisca chutar para aonde eles vão? Hehehehe
Como prometido também, aí está o segundo capítulo bônus para vocês ♥ agradeço demais por todo o apoio! Para as novas leitoras: sejam muito bem-vindas! ♥
Último recadinho aqui só para avisar que se eu demorar um pouco para atualizar é por causa da minha faculdade :( final de semestre é bem estressante, mas logo que acabarem minhas aulas, vou atualizar mais vezes na semana :D (não desistam de mim kkk)
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