Capítulo 10 - Dança escarlate
Três dias haviam se passado desde que eu estava prometida àquele homem detestável.
Após ter a aprovação do rei para aquela ideia estúpida, não tive opções a não ser me manter em silêncio naquele dia.
Felizmente, os casamentos em Spéir dependiam do acordo entre as famílias e, mais uma vez, a rainha Marie, responsável pela minha guarda até que encontrasse minha família, pediu ao seu filho que repensasse sobre suas escolhas.
Entretanto, como imaginei, ele não recuaria, seja lá qual for o seu plano traiçoeiro. No mesmo dia, assim que deixei o salão do trono, Zen Harrington soprou sua ameaça pela primeira vez.
— O que quer? — interrompi meus passos ao vê-lo bloquear meu caminho no corredor dos aposentos de hóspedes do palácio.
Ele apenas deu um sorriso presunçoso de canto.
— Não resista, Saphira. Terá de se casar comigo de uma forma ou de outra. Não se esqueça de que tenho poder suficiente para invadir o depósito de bebidas que você chama de casa, caso não se comporte. — aproximou-se, passando uma das mãos sobre as mechas que emolduravam meu rosto.
Imediatamente, empurrei-a com força dali. A raiva cintilava em meus olhos pelo seu atrevimento.
— Não me casarei com você. — fitei-o, irredutível. — Pois digo-lhe que se arrependerá, caso faça algo com minha família. Passar bem, príncipe Zen.
Desviei de seu corpo no corredor e caminhei rapidamente rumo aos meus aposentos, mas ainda a tempo de escutar sua risada nasalada.
Desde então, mal tenho comparecido ao desjejum e demais atividades que envolviam a presença da Família Real. Apenas saía de meu quarto para continuar as lições da tutora Liséli.
Com exceção de Heilee, Mabel e Fiore, eu não conversava com ninguém, nem mesmo a rainha ou o príncipe Isaac, que havia sumido depois que me instalei no palácio.
De frente para a grande penteadeira, eu observava as joias vermelhas e douradas que decoravam meu pescoço, orelhas e cabelo soltos com duas pequenas tranças laterais que se encontravam atrás.
O vestido, desta vez, ao contrário das outras, era extremamente detalhado e chamativo. O pano vermelho caía elegantemente sobre a saia cheia e rodada. Digno de uma princesa.
Todavia, não queria ser uma.
Vermelho.
Eu agora detestava vermelho.
Aquela cor intensa e astuciosa anunciava ninguém menos que Zen Erwin Harrigton, o homem que eu deveria, supostamente, agradar em cortejos. Fui praticamente obrigada a usá-la em qualquer evento público da Família Real.
Sim, uma ridícula tradição do reino de Spéir que rotulava jovens mulheres aos seus respectivos futuros maridos. Éramos nada mais que objetos reluzentes, sobretudo, na Família Real.
— Saphira! Como estou para o grande baile de hoje?
Heilee adentrou meu quarto junto a Mabel e Fiore. Em seus lábios, um sorriso alegre estampava sua ansiedade para hoje à noite.
Levantei-me da cadeira da penteadeira e lhe dei uma boa olhada, sorrindo em seguida.
Seu vestido era um pouco mais simples que o meu, mas tão belo quanto. A cor rosé, conforme as tradições, combinavam com o vermelho intenso do meu. Usava poucas joias nada elaboradas e o cabelo armado como o meu.
Ainda me perguntava como Heilee não era uma princesa.
— Está perfeita. — as esmeraldas em seus olhos brilharam para mim, ao passo que seu sorriso se alargou mais.
— Deixe-me ajudá-la a calçar seus sapatos. — ela veio em minha direção, mas a impedi.
— Heilee, você nunca será minha criada ou algo próximo disso. Dama de companhia é apenas um rótulo em Ardaigh. Você é minha irmã, não esqueça.
Um sorriso tímido se formou em seus lábios e ela assentiu.
— É claro que sei disso. — tornou a brincar. — Mabel e Fiore, por favor, ajudem-na.
— Sim, senhorita. — Disseram em uníssono.
Agradeci a elas e tornei a me sentar e observar meu reflexo no espelho da penteadeira. O que eu faria daqui em diante?
— Saphira, está bem? — Heilee me olhou pelo espelho, preocupada.
— Estou. Devo estar um pouco ansiosa. — tentei convencê-la com um sorriso, mudando instantaneamente de assunto. — Encontrei alguém inesperado no palácio há alguns dias atrás.
— Mesmo? Quem?
— Ian, o rapaz da flauta albina que apareceu no Rumz.
Sua expressão se transformou em uma surpresa. Os olhos verdes me fitavam com curiosidade.
— O que ele fazia aqui?
— Ian, na verdade, é o terceiro príncipe de Spéir, Liam Harrington.
— Pelos mares! Que abusado! Enganou-nos bem debaixo de nossos narizes! — Heilee gritou, incrédula. — Farei questão de lhe dar uma lição se cruzarmos no baile esta noite. — Franziu a sobrancelha em desgosto.
Ri de sua reação exagerada. O que ela mais repudiava eram mentiras e enganações.
— Perdoe-me pela intromissão, Lady Saphira, mas o terceiro príncipe, com certeza, não o fez por mal. — Mabel disse assim que terminou os últimos ajustes em meu vestido.
— Mabel, não diga isso! — Fiore a repreendeu. — Perdoe-me, Lady Saphira. Mabel tem uma pequena afeição pelo terceiro príncipe.
— Fiore!
Eu e Heilee apenas rimos das duas e ouvimos suas histórias no palácio até que chegasse a hora de descermos para o baile.
✦✦
Um frio se instalou em minha barriga assim que pude ver a multidão de nobres no salão de entrada principal.
Homens e mulheres estavam trajados elegantemente enquanto conversavam com animação entre uma taça de vinho e outra. A comida era farta e a música calma e suave preenchia todo o salão.
— Vamos? — Heilee disse, chamando minha atenção ao estender a mão para mim.
Assenti prontamente e segurei em sua mão para me equilibrar nos sapatos de pequenos saltos que eu usava. Só espero não tropeçar e cair nessa escada.
— Lady Saphira e sua dama de companhia, Heilee! — O homem nos anunciou logo que chegamos ao altar do salão.
Alguns dos presentes nos observaram com certa curiosidade. Certamente não me conheciam, mas aquele maldito vestido vermelho os renderiam boas conversas pelo reino.
Cumprimentei alguns nobres de Spéir e outros de outras terras próximas por algum tempo, dando-lhes a atenção necessária dentro de todas às lições aprendidas dolorosamente com a tutora Liséli.
Senti-me salva logo que o príncipe infante nos avistou, vindo em nossa direção. Enfim alguém que conheço!
— Lady Saphira e senhorita Heilee, meus cumprimentos. — reverenciou-nos com um sorriso.
— Vossa Alteza. — eepetimos o gesto em uníssono.
— Estão gostando do baile? — perguntou sem pretensões. Seus olhos sequer passavam por Heilee, bastante confortável e alheia à conversa.
Uau, eles eram bem à frente do tempo.
— Sim, porém meu desejo maior é estar em um bom sono. — eu disse, dando de ombros. Ele apenas concordou com a cabeça, rindo. Bom, fui honesta.
— Garanto que caso fique, o anúncio do rei e da rainha fará o baile se tornar mais agradável. — riu mais uma vez, observando de canto de olho todos os convidados no salão. — O que mais agradam aos nobres são as disputas e especulações sobre a Corte Real.
— O que quer dizer? — franzi as sobrancelhas, confusa.
— Aguarde e verá. — disse, enigmático.
— Peço-lhes licença. Preciso resolver algo. — Heilee disse, preparando-se para se distanciar de nós. Segurei sua mão, sem entender.
— Aonde vai?
— Não demoro, prometo. — deu-me um sorriso mínimo e soltou a mão da minha, caminhando com certa urgência pelo salão principal.
— Com licença, Lady Saphira. — Jaqques Klemaant me reverenciou outra vez, saindo dali tão rápido quanto chegou.
Quando, por fim, avistei de relance os cabelos castanhos de Liam Harrington, pude entender as palavras de Heilee.
Apostaria o Rumz que a aventura romântica de tirar o fôlego que ela tanto sonhou começaria naquele instante.
Apenas sorri diante de meus pensamentos e tornei a dar voltas pelo salão para me distrair. Porém, aquele momento de ondas calmas durou pouco assim que vi a Família Real e a grã-duquesa Sullivan reunidas no altar, próximo à escada.
Ao ouvir o som dos trompetes, todos se aproximaram dali em silêncio. Enfim o rei e a rainha anunciariam o que havia de importante naquela noite.
— Nobilíssimos milords e miladies, Vossa Majestade vos recebe no Palácio de Ardaigh com imenso prazer esta noite para lhes anunciar o motivo desta grande festividade junto à sua ilustre convidada, Elga Victoria de Mellini Sullivan, a Grã-duquesa de Lancaster. — um dos mensageiros disse e todos aplaudiram rapidamente, tornando a fazer silêncio para esperar as palavras do rei.
— Boa noite, milords e miladies. Inicialmente, agradeço-lhes a presença em meu palácio essa noite. — Van John Harrington deu um passo à frente com um sorriso contido. — Hoje, neste grande baile, anuncio-vos o noivado de meu primogênito, o Príncipe Herdeiro Isaac Niëven Harrington, com a notável Princesa de Lancaster*, Suzan Catherine Sullivan.
Assim como todos, eu batia palmas. Muitas palmas.
No entanto, que era para ser uma alegria indescritível em meu coração — como era no dos convidados — não veio.
No lugar dela, uma indiferença fez com que eu batesse palmas como os outros, mas bem no fundo, sentia um desconforto por estar presenciando aquilo.
O que eu esperava, afinal? Que o príncipe fosse meu melhor amigo e me contasse todos os seus planos para o futuro, inclusive seu noivado que, certamente, foi planejado antes que nos conhecêssemos?
Não se engane, Saphira.
— Portanto, em comemoração à futura união entre o Reino de Spéir e o Império Britânico, convoco os noivos à sua primeira dança! — o rei disse e o salão voltou a se preencher com palmas.
Na escada, o príncipe descia junto a Lady Sullivan, guiando-a pela mão. Eu estaria mentindo caso não dissesse que ele estava sublime. Seus cabelos negros estavam perfeitamente alinhados, ainda contendo seu espírito rebelde por alguns fios que insistiam em cair pelo seu rosto.
A cor azul tão costumeira em suas vestimentas parecia se destacar ainda mais pelos detalhes finos e dourados em toda a extensão de seu casaco e do manto afixado nas ombreiras.
A Lady Sullivan chamava a atenção da mesma forma em um belíssimo vestido tão cheio quanto o meu. Os detalhes dourados em meio ao azul combinavam com a roupa do príncipe.
Seus cabelos castanhos caíam feito uma cascata em seus ombros e costas, estando bem adornado de joias finas.
Ao chegarem ao altar, ambos reverenciaram os convidados, descendo para o espaço do salão que fora aberto em uma roda para a primeira dança deles.
Por um instante, meu olhar encontrou o grande oceano indecifrável que ele carregava em seus olhos, mas assim que o som puro da flauta albina de Liam Harrington soou pelo ambiente, ele desfez o contato.
Os noivos se cumprimentaram e logo começaram a valsar em meio aos presentes.
O sorriso era explícito nos lábios de Lady Sullivan, indicando o quão feliz ela estava naquele momento. Seus olhos brilhavam enquanto se fixavam em Isaac.
Ele, no entanto, parecia distante, mas um sorriso semelhante despontava em sua boca.
Perfeitos.
Era isso que ambos eram enquanto balançavam de um lado para o outro, sem perder o contato dos olhos.
Príncipe e princesa. Rei e rainha.
Era isso que eles eram e seriam para toda a eternidade em um futuro próximo.
Só percebi que a dança havia terminado quando as palmas preencheram todo o salão e o mensageiro do rei anunciou:
— Encerrada a primeira dança, os noivos vos convidam a dançar e desfrutar de seu grande baile pelas próximas horas!
No mesmo instante, alguns casais se juntaram para dançar, enquanto outros convidados se dissiparam pelo salão.
Eu não queria permanecer ali mais. Já não me sentia bem desde o início da noite.
Logo que dei às costas aos casais que valsavam próximos ao altar, uma mão estendida entrou em meu campo de visão.
— Minha futura princesa concede-me a hora de uma dança? — o segundo príncipe me observava em um divertimento contido.
Quase lhe proferi palavras inadequadas. O desgosto começava a se formar em meu rosto. É evidente que não o aceitaria.
Continuei o observando friamente, mas logo um burburinho de curiosos começou a se formar ao nosso redor.
Malditos pomposos!
Forcei um sorriso em sua direção e aceitei seu convite, juntando uma de nossas mãos e apoiando a outra em seu ombro. Fazia questão de manter a distância correta entre corpos estipulados pelos estúpidos padrões da corte em uma dança.
Assim que senti seu toque em minha cintura, um sentimento de repulsa se espalhou pelo meu corpo. Minha vontade era esbofeteá-lo por ter a ousadia de encostar em mim.
— Pensei que fosse recusar meu singelo convite perante aos convidados. — aproximou o rosto do meu para que somente eu escutasse o veneno que escorria em suas palavras. Um sorriso irônico surgia lentamente em seus lábios.
— E de fato o faria, caso não influenciasse em meu título de lady. — confrontei-o no mesmo tom. — Não que eu me importe com esse rótulo, mas seria deveras deselegante se dissessem pelo reino que o estimado príncipe Zen Harrington foi recusado por uma dama órfã, certo?
Seu sorriso se transformou em uma gargalhada contida e traiçoeira.
— Posso ver que minha futura princesa compreende bem os passos desta dança.
E era de certo que ele não se referia à valsa que dançávamos agora. Tudo se tratava de um jogo perigoso dentro da Família Real e eu esperava conseguir lidar com ele da melhor forma possível.
Continuamos dançando em um silêncio remoto por longos e intermináveis minutos. A música parecia não acabar nunca.
Aqueles malditos olhos azuis se cravaram em mim, enquanto eu observava, sem esforço, as pessoas que dançavam ao fundo dele. Para quem via, parecíamos enfeitiçados um pelo outro.
E foi exatamente em uma dessas observações que pude vê-lo. As esferas azuis como o mar pararam em mim e em seu irmão, mas sequer podia imaginar o que ele estava pensando ao nos ver.
Assim que a música se encerrou, realizei uma reverência ao segundo príncipe enquanto via Isaac virando as costas e sumindo novamente por entre os convidados.
Metade de mim queria segui-lo até encontrá-lo ao passo que outra não queria vê-lo nem pintado em um quadro.
Apenas deixei que meu orgulho falasse por mim naquele momento. Eu apenas queria me concentrar em descobrir quem eu era, além de proteger minha família e o Litoral dos Piratas. Não precisava e muito menos queria correr atrás de um homem.
Saí imediatamente do salão, sem sequer saber aonde Zen teria ido após a dança.
Logo que senti o ar frio da noite adentrando meu interior e abraçando toda a extensão minha pele, soltei um suspiro longo.
Caminhei por entre as pedras do caminho cercado por flores até chegar ao coreto, no jardim de rosas vermelhas que fora feito em homenagem à princesa Marine Klemaant.
Fiquei observando as ondas do mar ao longe lá embaixo e o vento que balançava as rosas. E por um momento, pude enxergar uma bela jovem de cabelos loiros brilhantes e vestido branco dançando entre elas.
Seu rosto parecia sofrer enquanto se feria com os espinhos, tornando seu vestido vermelho.
Ela parecia sofrer naquele mar escarlate que sugava toda a sua alegria e felicidade, exatamente igual a mim.
✦✦
Algum tempo antes que o baile se encerrasse, subi para os meus aposentos. Estava cansada demais para seguir as lições de etiqueta e me despedir de toda aquela gente que eu mal conhecia.
O palácio agora estava imerso em um silêncio completo e eu não tinha ideia de quanto tempo se passou exatamente. Apenas podia concluir que o baile de fato se encerrara.
No momento, a luz da lua que entrava pela vidraça da sacada do meu quarto era a minha única companhia. Não sentia sono algum e sequer sabia o motivo para aquilo.
Meus cabelos ondulados estavam espalhados pela colcha que cobria metade do meu corpo desajeitado na cama e meus olhos vagavam por qualquer canto do cômodo.
Seria pedir demais às criaturinhas do sono para virem me visitar logo?
Soltei um suspiro e me virei para a beirada da cama, passando a mão por debaixo do meu travesseiro para pegar a minha safira. Alisei a superfície da pedra com o polegar, vendo a claridade da luz da lua acentuar sua forma e cor.
— Ao menos com você não estou tão perdida... — sussurrei para a safira, pensando sobre um futuro incerto e obscuro.
De repente, um barulho estalou vindo da direção da sacada, assustando-me. Contive um grito e saí da cama instantaneamente ao ver uma sombra de relance lá fora.
*Referência ao título que a Rainha Inglesa atribuiu à Suzan pelos seus feitos no ducado de Lancaster.
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