19. A Artimanha Final: UPLOAD
– Como você conseguiu convencer a Sidney? – perguntou Kaio, um pouco distante de mim.
Estávamos em uma das alas que a Catástrofe estava usando como base. A Porta dos Céus, não era nada que o seu nome sugeria, pois tratava-se de uma estrutura grande, arquitetada de forma circular para ser um local espaçoso, porém indiferente dos que já havia visto em outro lugar daquele mundo. No entanto, a forma como aquele lugar foi construído lembrava muito a de um estádio de futebol, ou de um grande coliseu. Além disso, o que destaca-se nessa quase perfeita réplica, era o fato de haver muitos níveis em torno de sua estrutura, na qual se estendia até o subsolo, local onde a Catástrofe estava alojada e o nosso objetivo atual.
Após eliminar com um corte energizado uma das criaturas sombrias feitas pela Catástrofe onde guardavam a ala onde estávamos, respondi a Kaio, orgulhoso:
– A fiz lembrar de algo importante. Apenas isso.
– Que tipo de coisa? Ah, já sei, você não vai me contar.
Fiz não com a cabeça, e ele desistiu fácil, focando no trabalho em que fomos encarregados: eliminar o máximo que conseguimos das criaturas, enquanto prosseguimos até a origem.
Achei que seria difícil falar sobre o assunto mencionado por Kaio. Uma lembrança tão sentimental como aquela, a do dia em que ouvi o seu nome da Lydia pela primeira vez, era algo que guardava comigo a sete chaves. Foi essa mesma lembrança que compartilhei com sua amiga, Sidney. Ela se importava com Lydia tanto quanto eu, e fazê-la se apegar a esse sentimento tão precioso, a fez ascender com o maior entusiasmo para essa nova luta.
Em outro aspecto, não éramos só nós quatro na frente daquele ataque, a equipe era maior.
Na verdade, o nosso grupo em si consistia essencialmente pela força inteira da galera que reunimos. Mas, depois que tivemos o primeiro contato com as defesas da Porta dos Céus, muitos ficaram para trás para que outros seguissem em frente, até que sobrou apenas eu e o Kaio, os únicos que possuíam uma residência e força bruta relevante comparado aos que ficaram para trás.
Edward, por sua vez, não era tão bom com ataques de curta distância, como sempre foi nos games. Então serviu como um excelente suporte contra os monstros resistentes junto do exército de Darak, que efetuava ações que exploravam sua força em um perfeito trabalho em equipe. Ele ficou para trás, confiando suas esperanças em nós.
Algo semelhante aconteceu com Sidney, onde, no andar anterior, fomos surpreendidos por uma horda de criaturas aladas; as mesmas desempenharam golpes ligeiros e em equipe, e por um tempo, isso deu muito trabalho. Por sorte, a velocidade em que Sidney se esquivava dos ataques dos seres, enquanto nos protegia com sua imensa destreza com seu arco, resultou para que apenas dois de nós seguíssemos o caminho. Lógico que antes de avançarmos, a vi fazer uma de duas expressões frias para mim, só que, daquela vez, algo novo estava presente em sua feição. “Seria aquela sua maneira de demonstrar confiança em mim?”
***
Depois que finalmente adentramos o penúltimo andar, um espaço que era utilizado para que os casulos daqueles monstros eclodirem, sentimos um alívio em razão ao plano em que traçamos. Não queria dizer que era a confirmação de que vencemos a luta como um todo, mas era um grande avanço. E por isso, era satisfatório.
Minhas roupas e pele estavam manchadas pelo sangue das criaturas. O líquido era mais espesso que o nosso, além de ter uma cor única, um rosa neon. Vi Kaio parar para se limpar também, já que ele era o que mais estava coberto pelos fluidos das criaturas. Ele, extremamente calmo, sentou-se em uma das cascas dos casulos, e começou a fazer aquilo. Não o interrompi, não quis ser impaciente, afinal, precisávamos daquela pausa. Estávamos na calmaria, mas e o próximo andar? Quem garantia que fosse mais pior do que qualquer outro que passamos? Por hora, tínhamos que recuperar o máximo de energia possível, pois a verdadeira batalha ainda estava por vir, eu sentia isso.
Sentei ao seu lado, e logo senti de imediato a rigidez da estrutura, era mais duro que uma rocha. Com a Excalibur sobre minhas coxas, buscava usar as mãos para uma limpeza superficial (uma ação meia-boca, já que nada que eu fizesse a danificava). O poder que emanava da Relíquia era místico e desempenhava funções que eu não era capaz de compreender. Só me sobrava a observar, enquanto suas ondas douradas zelavam o seu brilho, quase ofuscante, de sua lâmina prateada.
– Quem diria que aquele carinha, que resmungava muito sobre não ter magia a pouco tempo atrás, teria em mãos a arma mais poderosa. Eu disse que era uma questão de tempo, não disse? – Kaio iniciou uma conversa.
– Não me lembro que foi desse jeito… – Me fiz de lerdo.
– Ah, com certeza foi. Você chorava feito um bebê deitado no meu ombro, resmungando “Eu quero ter um poder legal”, “Eu sou muito fraquinho, quero ser forte que nem você!” – Ele relembrava, enquanto forçava a voz para deixar mais parecida com a minha, o que só o fez ficar mais engraçado.
Não aguentei e dei uma risada baixa, aposto que esse era seu objetivo.
– Escuta – Apesar do clima agradável que ele criou, algo enroscado na minha mente pedia por uma direção contrária naquela conversa. – Você acha que depois de reunir aquela galera toda pra essa luta, conseguimos superar o pessoal que foi escolhido antes da gente? Eu sei que nosso foco é a Lydia, mas, eu não sei… Tenho minhas dúvidas sobre o nosso papel, o de eliminar a coisa por trás disso.
Kaio então interrompeu o que fazia com sua arma, que também estava suja de sangue das criaturas, e respondeu após expirar.
– Sinceramente, eu não faço a mínima ideia. – Ele olhou para um canto diferente daquele andar repleto de resíduos das criaturas, e suspirou. – Mas quer saber? Isso não importa.
– Do que você tá falando? Claro que importa! É o nosso propósito, a razão para termos vindo para esse lugar! – Vi aquela expressão de desdém surgir em seu rosto, e então perguntei: – Você ainda quer ir pra casa, certo?
Mesmo tendo um pouco de noção sobre o moreno, a incerteza que surgia em seu olhar naquele instante era indecifrável. Meu amigo nunca agiu daquela forma, e isso era distante do que me lembrava nos últimos momentos que o vi no nosso mundo. Contudo, após alguns segundos em silêncio observando-o, decifrei o que ele queria me dizer com sua posição neutra, beirando uma resposta negativa do que lhe perguntei.
Foi então que ele finalmente confirmou:
– Eu não quero voltar, Henry. – sua voz quase inexistente saiu como um sussurro, pois ele estava apreensivo.
Não fiquei tão surpreso no final das contas, esperava pela aquela declaração. Afinal, já tivemos essa mesma conversa a um tempo atrás, lá na tribo em que ele foi encontrado. Pelo visto, sua posição permanecia a mesma.
– Mas mesmo não tendo o mesmo propósito que você, – continuou. – eu farei o possível para que todos possam sair daqui, mesmo que custe a minha vida.
– Por que você não vem conosco? Sabe muito bem que nossa força, como equipe, só encontrou equilíbrio quando você entrou. Precisamos de você, cara!
Ele negou com a cabeça. Isso me fez ficar incomodado, o que ocasionou uma abordagem diferente. Me levantei, fiquei em sua frente e gritei:
– Para de idiotice! – Agora, sua atenção estava toda em mim. – O que acha que sua família vai pensar quando você não voltar com a gente? Sua irmã, pensa nela!
Seus olhos não desviavam nem por um instante de mim, eu estava indo bem. Consegui, ao menos, fazer ele desfazer aquele olhar distante de antes, mas não era só isso que eu queria.
– Você não sabe de nada mesmo! Oitenta por cento dos meus problemas envolvem a minha vida dentro daquela farsa de família… Eu, eu não quero ver minha irmã daquele jeito por mim, triste e aflita pelos problemas que os nossos pais deveriam evitar.
Foi só quando ele disse aquilo que tudo fez sentido.
Kaio, como eu suspeitava, era mal visto pela própria família, pelos próprios pais. Eu conhecia pouco sobre isso, sobre o que rolava dentro de seu círculo mais íntimo. Porém, devido às marcas que outrora o via em sua pele em alguns na escola, foi o suficiente para deduzir uma parcela do grande segredo que ele guardava. Portanto, naquele momento, não dava para amenizar a dor que ele já havia passado, mas poderia dar algo diferente para que sua mente pudesse se apegar, e talvez, ele mudasse de idéia e decidisse retornar com a gente.
– Eu te entendo, sério. Por um tempo, preso em um quarto escuro por livre espontânea vontade, pensei que meus problemas iriam sumir, eu só precisava esquecê-los. E sabe o que aconteceu, não sabe?
– Eles não sumiram. – Havia tristeza misturada a decepção em sua voz, e eu conhecia muito bem o gosto amargo daquilo.
– Exatamente. Eles pareciam mais fortes que nunca, como se tivessem evoluído. Foi então que busquei encará-los de frente, e para isso encontrei apoio em locais diferentes dos que estava acostumado. – sorri, e completei: – Foi em vocês, nos meus amigos. E isso foi a coisa mais incrível que fiz!
Kaio desviou o olhar e ficou pensativo. Aparentemente, minhas palavras tocaram onde eu queria tocar.
– Sei que nossa amizade não é tão longa… Já faz quanto tempo desde que começamos a andar juntos? Enfim, quero dizer que pode confiar em mim para conversar sobre tudo, sejam jogos, planos malucos ou… qualquer outra coisa. Estou aqui, sei que o Edward pensa da mesma forma. Eu acredito que podemos superar qualquer coisa, desde que fiquemos juntos. Só não fuja de tudo, tá legal?
Antes que ele dissesse algo a respeito, um rugido emitido de um canto daquela sala nos fez ficar em alerta. Tratava-se de uma criatura gigantesca, repleta de partes de outros seres, era algo ainda mais monstruoso, corrompido pela força sombria da Catástrofe.
– Se liga, fiz uma análise rápida. – declarei após o feito. – Ele tem um pequeno desequilíbrio em sua perna direita. Ele pode ser grande, mas é cheio de pontos cegos. Se trabalharmos juntos, podemos vencê-lo.
– Quanta confiança! – zombou alguém por trás da criatura, que após ultrapassar o limite em que a sombra o cobria, lugar que levava ao andar seguinte, descobrimos de quem tratava-se.
Ficamos impactados com o que víamos, digo por mim mesmo. Era Andreas, não o mesmo Andreas que conheci na tribo de Darak. Ele estava diferente, com uma expressão homicida, e com seu corpo quase tomado completamente pelas raízes malignas da Catástrofe.
– A-Andreas? O que houve com você? - perguntei, tentando assimilar o que via.
Kaio estava mudo, e com o olhar sério, destacado pelas veias de seu pescoço saltando, dava pra ver alguns dos músculos se contraindo, e assim compreendi a tamanha força que aquele seu olhar transmitia: raiva, muita raiva.
– Ah, não diga que não sabe?! – Andreas prosseguiu com sua pose maligna de vilão, enquanto aproximava-se da criatura mutante. No final do percurso, ele olhou para o Kaio e comentou: – Parece que seu amigo sabe bem do que estou falando. Anda, fale comigo, meu irmão de tribo!
O moreno fechou o punho com força. A decepção tomada pela pura raiva que exalava dele me deixava aflito, buscando respostas para aquela situação coberta de pura confusão.
– Seu desgraçado! Por que você fez isso? Por que se resumiu a esse papel desprezível?! Eu confiava em você, o chefe Darak, a tribo inteira! E você… – Ele não conseguiu terminar. Seus olhos estavam marejados, sua voz tomada pela emoção.
Naquele momento, eu queria o confortar, mesmo com simples toque em seu ombro, mas o tumulto que surgia na minha mente me fez ficar imóvel ao seu lado. Queria entender a razão de tudo aquilo.
– Henry, você não vê? Ele nos traiu, Andreas está do lado oposto na nossa luta. – Kaio me explicou com desgosto.
Andreas bateu palmas pra ele com um riso sarcástico.
– Acertou quase tudo, Kaio. Exceto pelo fato que mais alguém está nesse barquinho junto de mim.
– Mais alguém? Quem? – perguntei logo em seguida. A fúria de Kaio estava mexendo comigo, minha vontade era de socar a cara sínica dele.
– Ah, você a conhece muito bem, fez tudo o que ela disse desde o começo feito um cachorrinho. Pensa, pensa bem! Você sabe quem é, não é?
– Não pode ser… A Administradora. – disse Kaio, que após deduzir, me olhou apreensivo.
Andreas, decepcionado, chutou algo em sua frente.
– Ah, qual é! Você estragou a brincadeira. Mas, enfim, devo lhe parabenizar por dar um chute tão certeiro. Como devem saber, a ADM e eu temos história, uma longa história, devo acrescentar. Após muito tempo juntos, refletimos qual seria o nosso propósito neste ciclo tedioso desse mundo. Luta após luta, Escolhidos versos a fúria de um deus sem limites, movido por um desejo primordial de apenas vencer uma guerra sem fim… Então, veio o desejo em comum de usurpar esse poder, criar um propósito maior para que ele não sucumbisse ao mau uso.
– Isso é loucura, Andreas! - esbravejou Kaio. – Você era um Escolhido como nós, um humano. Como pôde se envolver em algo tão baixo?
– Este não é meu nome! – Ele esbravejou com raiva. – Andreas é uma pessoa esquecida daquele mundo falho. Eu fiz de tudo para abandonar tudo que envolvesse essa pessoa, mesmo ainda estando naquele lugar. Mas como pesadelos insistentes, esse eu voltava a me assombrar. Quando vim pra esse mundo, logo após a batalha falha do meu grupo, eu pude abraçar uma nova persona, a ADM me ajudou com isso.
– Mas você ainda é o Andreas, sempre te chamamos assim. – indaguei.
– Sim, é verdade. Esse velho Andreas, para o que sou hoje, já não passa de apenas um nome a ser usado. Sabe, apesar do desapego, foi com ele que enganei todos vocês, idiotas!
– Deixa de papo furado! Me fala, o que planejam fazer? Matar geral, é isso? Tomar o controle do mundo? Aposto que deve ser algo tão previsível quanto qualquer outro plano de vilão genérico! – brinquei com a situação.
– Eita, também não seja tão limitado. – Um sorriso confiante surgiu em seu rosto. – Queremos mais! Muito mais! O seu tão amado mundo, por exemplo, juntos temos grandes planos para ele. Sabe, até demos um nome para essa iniciativa, a chamamos de UPLOAD, a nossa cartada final! Vocês gostaram, nerds? Eu sei que amaram!
“Era isso? Era dessa batalha que todos os meus companheiros tiveram que se sacrificar para que eu pudesse enfrentar? Mas por que eu sentia que foi tudo em vão? Por que o medo e a estranheza daquele novo impasse parecia mais obscuro que qualquer outro? Será que tem haver com o fato de sermos enganados e manipulados por um dos nossos?” Sendo racional, o medo de sermos os perdedores era o verdadeiro mandante de tudo, mas não significa que temos que desistir.
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