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Tipo, dois anos atrás...

Eu sou Clara Pereira Mello. Filha de Altair e Márcia. Irmã de Cláudio. Às vezes tenho que me lembrar de dizer o meu nome em voz alta para não esquecer quem eu sou. Quem eu fui.

Quando tudo começou, eu estudava no Instituto Estadual de Educação - IEE. Era apenas uma garota normal, vivendo uma vida normal. Estava no último ano do Ensino Médio, preparando-me para o Vestibular e o ENEM.

Meu currículo extraclasse incluía dança e ginástica artística – e eu era muito boa! Tanto que entrei pra equipe de atletismo da escola. Nós ganhamos algumas medalhas. Só que o treino era puxado. Eu fiquei sobrecarregada e estressada. Resolvi dar um tempo disso tudo pra me concentrar nos estudos. Faltavam poucos meses para o provão, e eu não me sentia preparada o suficiente.

Caramba! Eu era feliz e não sabia!

Morava com minha família, na ilha. Florianópolis era a capital de Santa Catarina. Portanto, sede administrativa do Estado – onde ficava a maioria das repartições públicas e, consequentemente, dos servidores públicos. Como não poderia deixar de ser, meus pais eram funcionários públicos estaduais; papai, lotado na Administração; mamãe, na Educação.

Cláudio, dois anos mais velho que eu, comportava-se mais como pai do que irmão. Às vezes ele era um pé no saco! Controlando as amizades, bem como minhas saídas de casa. Só tive paz quando começou a frequentar a faculdade, em Joinville, e arrumou uma namoradinha por lá.

Com Cláudio fora de cena, minha vida social finalmente decolou. Então, eu arranjei um namorado. O Michel. Quer dizer, não era bem namorado... Era meu ficante. Eu gostava dele e me gabava pras minhas amigas, falando do meu gatinho, e que logo a gente ia ficar pra valer.

Eu pretendia perder a virgindade com ele, depois do vestibular, é claro.

Minhas amigas me zoavam porque ainda não tínhamos transado, mas tirando a cobrança, eu achava mesmo que estava na hora. Até já tinha planejado quando, onde e como. Porque eu era assim, precisava controlar os acontecimentos, planejar cada passo. Pirava na batatinha, se alguma coisa imprevisível aparecesse na minha frente.

Qual poderia ser a maior catástrofe que poderia acontecer a uma pessoa controladora, organizada, centrada e, por que não, previsível como eu? Um cara do tipo: Cheguei! Jonas Matioli foi uma dessas coisas imprevisíveis que aparecem na vida de uma garota e viram tudo de cabeça pra baixo. Logo, durante algum tempo, ele conseguiu me fazer pirar legal.

Repeti diversas vezes para mim mesma que Jonas era passado. Eu tinha que superar! E a melhor forma era seguir em frente com o Michel. Mas, a verdade é que eu estava me sentindo culpada por estar usando um para esquecer o outro. Michel não merecia isso. Era querido, fofo e me fazia sentir mimada e protegida. Confortável. O Jonas, ao contrário, tirava o meu chão.

Procurei ignorar a voz da consciência, por que orgulho é fogo! A dor da humilhação era bem mais difícil de tolerar do que a culpa. A humilhação que Jonas direta ou indiretamente me fez passar.

Você deve estar se perguntando que humilhação teria sido essa. Pois é... Volta a fita: eu tenho um passado.

*****************

Fiz o Fundamental e o primeiro ano do Ensino Médio no Colégio Catarinense. Jonas Matioli era veterano lá; estava no último ano.

Como defini-lo em poucas palavras? Garoto rico, entediado, viajado, intrigante, arrogante e popular... Muito popular. Soube que ele fez uma tatuagem interessante numa de suas viagens. Algumas garotas alegavam tê-la visto bem de perto... Dizia: Chemin et de choix. Pesquisei no Google, e descobri que significa algo do tipo: "Caminhos e escolhas". Ele tinha um supercarro, daqueles muito caros e possantes. Tudo nele exalava poder, mistério, e perigo... Se não bastasse isso, parecia interessado em mim. Com uma legião de garotas correndo atrás dele, e Jonas olhou justo para mim.

Oooohhhhhhhh!

Certa vez, ele me convidou para uma de suas festas, na mansão da família. Os pais estavam viajando... Fiquei superempolgada.

No final das contas, deu tudo errado. Ele tentou me beijar a força. Estava bêbado, chapado... Ou sei lá o quê. Ele não insistiu, mas eu fiquei assustada. Enquanto a festa estava rolando, eu me tranquei num dos quartos, liguei para o Cláudio, e implorei para que fosse me buscar.

O mano foi legal. Prometeu não contar nada aos nossos pais, mas me proibiu de aceitar novos convites para esse tipo de festa. Claro que eu concordei rapidinho, pois estava morta de vergonha.

No colégio, Jonas me lançou olhares rancorosos e, depois, passou a me evitar. Era como se eu não existisse pra ele. Não sei se foi por ter ficado óbvio que eu ainda era virgem; se foi pela vergonha de ter sido flagrado bêbado; se foi orgulho ferido por ter sido rejeitado... O fato é que ele se afastou de mim. E a maneira como passou a me ignorar fez muitos grupinhos se voltarem contra mim. Virei chacota na boca do povo.

Viu o que eu disse? Humilhação total.

*************

Meus pais fizeram tipo uma reunião familiar para explicar que não tinham mais dinheiro para bancar os meus estudos no Catarinense. Eu seria transferida para o instituto – considerado a melhor instituição educacional pública do estado. Foi um baque para mim. Afinal de contas, eu tinha amigos, e todo um estilo de vida...

Fui obrigada a me adaptar assim, da noite para o dia. Além disso, eu estava deixando para trás aquele garoto lindo, metido a bad boy... Não queria ficar tão longe dele assim... Só um pouquinho...

Eu sempre desconfiei que o lance da grana foi um pretexto bem engendrado para me afastar do Jonas. Nunca consegui provar, mas... Eu estava certa de que Cláudio tinha traído a minha confiança, e contado aos nossos pais o que aconteceu naquela festa. Meu relacionamento com ele esfriou vários graus centígrados.

Depois da minha mudança de escola, eu soube pelo Face que Jonas ficou chateado com a minha saída. Postou uma foto com cara de sentido, os braços cruzados sobre o peito, todo gatinho (tigrinho, rsrsrsrs!). E uma frase citando o meu nome embaixo: "Sentindo sua falta, Clara".

Não sei se estava sendo debochado, ou não... Só sei que na semana seguinte ele já estava saindo com a Mayara – Miss Primavera – considerada a garota mais bonita do Catarinense. Ela era da mesma idade que ele, portanto, mais velha do que eu. Infinitamente mais experiente... Minhas amigas me diziam que a Mayara sabia deixar um garoto de quatro, uivando pra lua.

Então... Que fizessem bom proveito um do outro.

Foi, então, que conheci Michel.

************

-Filho da... – Saí chutando pedrinhas, pelo portão principal do IEE.

-Ei, ei, ei, garota! – Lara, minha melhor amiga, correu para me alcançar. – Calma!

Eu parei apenas para dizer: - Cê viu a prova maluca que o professor fez?

-Se vi? – Ela bufou.

-Foi pra ferrar com a gente! – Voltei a andar, arrumando a mochila sobre o ombro. Lancei pragas contra o professor. Todo o meu arsenal de vodu mental.

-Você é a CDF da turma. Não pode ter se saído tão mal assim... – Ela comentou, alegremente.

Franzi as sobrancelhas. Nunca achei que ser chamada de CDF fosse um elogio.

Alguém bufou atrás de nós. Olhei por cima do ombro e vi a esquisita da Joyce revirando os olhos. Ela estava ouvindo a nossa conversa, claro. Voltei a prestar atenção em Lara.

-A gente se vê no ginásio, às sete da noite – ela disse.

Toquei no seu ombro e empurrei de leve.

-Vai lá, Lara Croft! – Eu costumava chamá-la assim, quando ela me chamava de CDF. Desta vez foi Lara quem franziu o cenho. Acelerei o passo com uma risadinha.

-Acho que ele vai estar lá – Lara falou alto, fingindo sair de fininho.

-Ei, volta aqui! – Esbarrei sem querer na Joyce, que reclamou. Eu me desviei dela com um "Quem manda invadir o meu espaço pessoal". Agarrei a Lara pela blusa e a puxei de volta.

-Sem violência! – ela ergueu as mãos, em sinal de rendição. - Olha que eu chamo o Conselho Tutelar.

-Nhê, nhê, nhê, eu também sou de menor.

-Mas seus pais não são.

-Deixa de conversa fiada. Pode contar o que você sabe.

-Campeonato de karatê. – Ela tirou um papel da mochila e jogou em mim. – Você não presta atenção aos eventos da escola, né?

-Só quando eu estou envolvida neles – respondi distraidamente, enquanto examinava o papel.

-Acorda, Clara! - Lara começou a caminhar de ré, na direção oposta. - Ele é o campeão do Colégio Catarinense. Esqueceu? Vai enfrentar o campeão do IEE, hoje, valendo a medalha estadual.

Fiquei parada na calçada, em estado de puro abobamento. Quer dizer que Jonas Matioli estaria lá, no ginásio do IEE, enquanto eu estivesse treinando para a apresentação de dança? Eu e Jonas no mesmo ginásio? Droga.

Como se tivesse sintonizado minha frequência mental, o celular vibrou. Olhei pra tela e adivinha...? Uma mensagem via face, do Jonas. Meu coração quase saltou pela boca. Fiquei sem ação. Devia responder? Afinal, eu estava com o Michel. Não era justo. Eu não podia, tipo assim... trair o garoto.

Mandei uma mensagem pra Lara me socorrer. Ela respondeu de imediato, insistindo que "ficar" não implica em compromisso, portanto, tecnicamente, não é traição. Mesmo assim, eu não me sentia legal com isso...

Conflitos existenciais e românticos à parte... Quando dei por mim, estava diante do semáforo, esperando fechar. Eu tinha caminhado um bom pedaço. Demorei um tantinho para notar que estava acontecendo alguma coisa na rua, mais à frente. O alvoroço me fez crer que foi um acidente de trânsito.

Bem, bastavam três coisas para congestionar a ilha: uma "floresta" de semáforos mal sincronizados; chuva; e, óbvio, acidentes de trânsito. Mesmo que fosse um acidentezinho de bosta, todo mundo diminuía a velocidade pra olhar e tirar foto. Daí, estava feita a confusão. O trânsito horroroso de Floripa engavetava com uma facilidade impressionante.

Só que não foi acidente o motivo do tumulto. Eu vi! Uma criatura enorme e escura saltou sobre um dos carros e afundou o capô. Tinha os dentes arreganhados. Rasgou a porta do lado do motorista como se fosse feita de papel, não de metal. Com as orelhas pontudas viradas para trás, e os olhos estranhamente desbotados, apontou o focinho para dentro do veículo e arrancou um homem de trás do volante. Ele gritou e esperneou... A "coisa" rapidamente começou a abrir a sua barriga ali mesmo, com garras e dentes afiados. O sangue dele jorrou para todos os lados.

Obviamente, muitas pessoas viram o mesmo que eu. Pelo amor de Deus! Estávamos em plena Avenida Mauro Ramos! Final de tarde, ou seja, horário de pico. Qual é? Claro que todo mundo viu! Só que ninguém se mexeu.

Ninguém fez nada.

Mais tarde, eu veria a situação de maneira diferente. Menos indignada. A aparição da criatura foi demais para processar, ou aceitar. O pessoal embarcou numa vibe de negação, acho eu. Só pode ser.

Acabei não indo ao ensaio de dança, naquela noite. Por isso, não assisti a luta de Jonas. Se eu soubesse que estaria perdendo a minha última chance de vê-lo com vida, eu teria ido. Ao invés disso, fui direto pra casa. Estava apavorada.

Contei aos meus pais o que aconteceu, mas eles acharam que eu estava inventando estórias malucas para não ir à escola. Que eu queria forçá-los a me rematricular no Catarinense. Não era verdade... Embora não deixasse de ser uma ideia interessante.

Passei a noite e a madrugada ligada nas notícias da TV, e da internet. Dos telejornais chegaram notícias de desaparecimentos misteriosos ao anoitecer. Em geral, depois de acidentes de trânsito sem vítimas nem corpos. Isso batia com o que eu tinha visto. O cara que a criatura estripou na minha frente... Ela o arrastou para algum lugar. Só não consegui ver onde. Corria tão rápido que ficava difícil acompanhar seus movimentos.

Sobre o episódio da Mauro Ramos, o telejornal local atribuiu o engarrafamento a um acidente sem maiores consequências. Mostraram o carro com o capô achatado sendo guinchado para fora da pista. Segundo o apresentador, o proprietário não foi encontrado para explicar por que abandonou o veículo no local do acidente.

O carro foi apreendido pelo DETRAN.

Cara! Eu não conseguia acreditar que ninguém mais viu o que eu vi, que ninguém estava falando a respeito nas redes sociais. Chequei o meu celular. Várias mensagens acumularam-se na caixa postal. Michel queria combinar um cinema. Lara perguntou por que eu furei com o grupo, no ensaio. Jonas também me escreveu. Um texto curto e surpreendente: Sei que vacilei, mas a gente precisa conversar...

Não respondi nenhuma delas. Fiquei trancada no meu quarto, gelada de pavor, olhando pela janela. Qualquer sombra que se mexesse, lá fora, me dava calafrios. Depois de dois dias enfurnada em casa, sentindo-me aterrorizada e doente, minha mãe deu um basta; invadiu o meu quarto e, depois de fazer um sermão sobre o quanto era feio inventar estórias para fugir das aulas, blá, blá, blá, anunciou que eu tinha duas escolhas: vestir o uniforme e sair numa boa, ou ser rebocada de pijamas e pantufas.

A segunda opção – ser rebocada de pijamas e pantufas na frente dos meus colegas – não era legal. Sabendo que, uma vez feita a ameaça, ela SEMPRE cumpria... Pulei da cama, vesti o uniforme, e fui correndo encontrá-la na garagem.

O motor do carro já estava ligado.

-Muito bem, minha filha – disse ela, dando tapinhas na minha perna. – Tomou a decisão certa - em seguida, engatou a marcha à ré.

-Você é uma orientadora educacional! Como é que pode? Seus métodos pedagógicos são, no mínimo, das cavernas – resmunguei. – Está querendo me traumatizar, é? Não vai conseguir.

Mamãe nem se abalou.

-Ah, que bom. Assim, você me poupa o dinheiro da sua terapia. Os doggies agradecem, porque eu seria obrigada a tirar da reserva destinada ao Petshop.

-Fico tão feliz por ter contribuído com a estética canina desta casa – respondi sarcástica, enquanto o carro ingressava no trânsito.

"Doggies" era a maneira carinhosa que a mamãe usava para se referir aos nossos seis cãezinhos e um canzarrão – um pastor capa preta chamado Duque. Acho que o certo seria chamá-lo de dogão, mas, enfim... Os pequenos - Ricky Martin, Bella, Cuca, Tatu, Toquinho (e a nova aquisição, Milla), mamãe simplesmente os adorava, e muitas vezes os tratava melhor que o marido e os filhos.

Quer dizer, não era bem assim, mas... Quase! Devo confessar que todos nós éramos loucos por eles.

Eu ajudava a cuidar dos doggies... Dos coelhos do meu pai. E dos cães e gatos dos vizinhos... E dos animais de rua... E dos cães-guias maltratados... E dos animais perdidos... Atropelados... Pois é. Não conseguia me conter, vendo tanto negligência por aí. Era "o meu jeito" proteger e acudir os bichos que eu via passando dificuldades. Foi assim que acabei arrumando a nova aquisição, Milla – uma Paulistinha misturada com alguma coisa. Gracinha de cadela! Esperta. Arteira. Meiga. Encontrei-a revirando o lixo perto da escola. Não preciso dizer que faltei à aula, naquele dia.

Meus pais não me repreenderam, porque pensavam como eu. Eles eram maravilhosos!

-Estamos chegando – mamãe avisou. – Está com os deveres escolares em dia?

Fiz uma careta. Esse tipo de pergunta, pra mim, era um insulto. -Vou repetir o ano – respondi. Ela me encarou tão séria que eu tive de acrescentar: - Até parece, né, mãe? Não me conhece?

-Não sei, não. Minha filha jamais inventaria monstros comedores de gente. – Ela estreitou os olhos. – Quem é você!

Bufei, revirando os olhos. -Não tem graça - eu disse.

Quando o carro fez a curva da escola, olhei para trás. Um gesto automático. Não era incomum dar de cara com um dos doggies esparramados em cima do meu casaco, ou da mochila. Eu já tinha até me acostumado a sair com a roupa cheia de pelos. Dessa vez, quem estava ali era o Toquinho. Tive que enxotá-lo para poder pegar as minhas coisas. Ele não me deu muita bola, só abriu um olho, virou a bunda e voltou a dormir.

Despedi-me de mamãe com um aceno e saltei no meio-fio. De repente, eu me dei conta de que estava perto do local onde avistei a criatura, pela primeira vez. Respirei fundo, tentando me acalmar e olhei fixamente para o letreiro do instituto. Ao meu redor, os alunos passavam como o rio passa por uma pedra – todos alheios ao meu estado de espírito, apertando-se na mesma direção, o portão principal.

Calma, Clara! É só um dia como outro qualquer... Lugar de bicho-papão é dentro do armário.

A sirene soou: primeiro sinal de advertência para os alunos estarem dentro da sala de aula. Mamãe jogou um beijo para mim e partiu rapidamente, antes que o semáforo abrisse. Girei nos calcanhares e comecei a correr.

Já no pátio da escola, fui saudada pela turma, que se reuniu embaixo da nossa árvore preferida - a garapuvu. Minhas colegas de dança vieram me questionar o motivo do meu sumiço. Eu gaguejei a mentira que vim ensaiando desde que saí de casa: comi alguma coisa que me fez mal. Enjoo, tonteira. Fiquei em casa vendo TV.

Lara ficou só me olhando, de longe. Nem veio me cumprimentar. Respirei fundo e caminhei na direção dela.

- Você não respondeu às mensagens – ela foi logo dizendo, quando me aproximei. – Desembucha, vai! O que foi que aconteceu?

Parei e coloquei a mochila no chão, ganhando tempo. A sirene soou a segunda vez. Um berrante de estourar os tímpanos, mas que me deu alguns segundos preciosos para que eu tomasse uma decisão. Respirei fundo e repeti o mesmo blá-blá-blá. Não tive coragem de me abrir com ela. Se meus próprios pais não acreditaram, claro que ninguém mais acreditaria.

Vi na cara dela que a mentira não colou.

- O Jonas perguntou por você antes e depois da luta, se é que te interessa saber... – Dito isso, Lara se afastou sem olhar pra trás.

Droga. Eu estava me sentindo péssima por ter que mentir pra minha melhor amiga. E estava me sentindo péssima por estar evitando o Jonas. Mas, o que é que eu podia dizer? Aí, Lara, Jonas! Desculpa não retornar antes, mas é que eu estava me cagando de medo de uma coisa que eu vi comendo um ser humano, no meio da Avenida Mauro Ramos.

Daí para me internarem no hospício mais próximo... Pois é.

Dois minutos haviam se passado desde o segundo sinal. A multidão espremeu-se no corredor em direção às salas de aula. No meio do caminho, escapei para o banheiro feminino mais próximo. Achei que estivesse sozinha, até Joyce aparecer na entrada. Olhei através do espelho e a flagrei me encarando de um jeito esquisito. O que me levou a imaginar se estava me seguindo.

Lá fora, os corredores esvaziaram. A barulheira diminuiu consideravelmente, até só ouvirmos algumas portas batendo com os retardatários desesperados para não levar falta (o que normalmente acontecia com quem não respeitava a sirene).

Eu não estava preocupada, pois tinha um passe velho e usado, que o inspetor de ala se esqueceu de carimbar. Mancada dele, sorte a minha. A Joyce, por outro lado, parecia preocupada com outra coisa. Ela foi na direção das baias e se abaixou em frente de cada porta.

-Não tem ninguém aqui, Joyce – eu falei, sem esconder minha curiosidade. Aquela era a garota com a qual eu menos simpatizava da nossa turma. A gente mal se falava. Nem ela, nem eu fazíamos questão. Por isso, achei estranho ela ficar, sabe como é... "Por perto".

-Ok. – Ela se levantou e deu um giro, como se estivesse disfarçando alguma coisa.

-Vai, fala logo o que você quer comigo – virei pra ela, ajeitando a alça da mochila pesada.

-Eu? Não quero nada. Só...

Baixei os olhos e vi que suas mãos estavam tremendo. Pra valer. De repente, me ocorreu que ela esteve lá, comigo, quando...

-Você também viu!

Joyce não fingiu que não entendeu sobre o que eu estava falando. Apenas assentiu com a cabeça.

-Você contou pra alguém? – Ela perguntou sem esperar resposta. – Melhor não contar, melhor ficar na sua.

-Não adianta contar – eu respondi, lembrando-me da reação dos meus pais. – Ninguém acredita.

Nós duas concordamos que não deveríamos tocar no assunto outra vez. Ela sabia o mesmo que eu e vice-versa. Fim de papo.

Joyce ajeitou a franja negra no espelho; depois foi para a saída.

- E o que a gente faz? – Perguntei, num impulso. Ela me olhou sem compreender. – A Televisão tem noticiado um surto de desaparecimentos, mas ninguém fala daquela... Daquela coisa que matou o motorista.

Joyce deu de ombros, parecendo indiferente.

-Não sei quanto a você... Mas eu já tomei minhas providências – respondeu. Vamos combinar que a resposta foi sinistra. Tipo assim, de mafiosa mesmo. Bem, ela tinha cara de punk misturada com mafiosa. Não sei explicar. Fiz uma careta.

Ela saiu tão rápido que a pergunta morreu na minha garganta: Que providências?

Aquela foi a última vez que qualquer um de nós viu a Joyce na escola. Ela se mandou. Partiu. Deu no pé. Picou a mula. Fugiu. Ninguém entendeu o motivo - nem os professores, nem a turma. Mas eu, sim. O que eu não saquei na hora é que a Joyce estava pensando muito à frente do que qualquer um de nós.

Ela percebeu que o mundo estava prestes a se acabar.

**********

Alguns dias se passaram. Eu estava quase me esquecendo da Joyce e do que a gente supostamente viu. Cheguei à conclusão de que foi um acontecimento isolado. Deve existir alguns animais superdesenvolvidos vivendo nos esgotos – ratazanas bem gordas, um pouquinho semelhantes a gárgulas... Alguma subespécie que nem a Prof. Krautz conhecia...

Deliberadamente racionalizei, neguei, sublimei... Aliás, como todo mundo parecia estar fazendo... Só que não foi a melhor solução. No final da semana seguinte, aconteceu de novo.

E, dessa vez, todo mundo foi forçado a reconhecer a existência dos monstros.

O ataque não foi isolado. Não apareceu só uma... ratazana gorda desfilando pela rua. Apareceram quatro. Elas saltaram sobre os carros que circulavam a rótula do CIC, e atacaram os motoristas com garras e bocas cheias de dentes.

O ataque finalmente virou destaque na televisão. Os noticiários mostraram filmagens caseiras feitas com o celular. Os bichos estavam em todos os canais, o tempo todo... A mídia apelidou os predadores de Cucas, como no folclore popular. Como no Sítio do Pica-Pau Amarelo. Eu fiquei ofendida. Não achava nada parecido com a minha adorada personagem de infância. Vai ver o pessoal associou por causa das escamas e da cauda pontuda.

Com um pedido de desculpas impresso em seus olhares consternados, meus pais reconheceram que eu tinha lhes dito a verdade. De repente, eram eles que não queriam que eu fosse mais à escola. O remorso deles era o de menos, agora. O problema estava lá fora... Na noite.

Ao serem questionadas pela mídia e pela população, as Polícias Militar e Civil não souberam o que dizer exceto que estavam investigando os fatos. O prefeito não se pronunciou. O governador muito menos. Depois de inúmeras reuniões e entraves burocráticos, a Defesa Civil liberou uma Nota oficial recomendando à população que se mantivesse calma e obedecesse ao toque de recolher. Equipes multidisciplinares tentariam apreender e/ou neutralizar as criaturas.

Equipes multidisciplinares? O que isso queria dizer? Que eles pretendiam convocar um domador de leões, um veterinário, e um caçador? Que diabos de equipe multidisciplinar nossos governantes poderiam criar? Além disso, se a gente mal via a Polícia e a Guarda Municipal na rua pra caçar bandido, que dirá caçar bichos grotescos e ágeis como demônios.

Demônios. Aí, está... Talvez, eles devessem incorporar um exorcista a tal equipe multidisciplinar.

Caramba! Estavam lidando com a situação como se fosse uma espécie de praga. Do tipo que basta usar "esquemas" padrões para contê-la. Mas até tentarem fazer alguma coisa... Qualquer coisa... Muita gente acabaria sendo comida.

A imprensa cobrava informações e resultados, e o Governador do Estado só sabia dizer que estavam "apurando a situação". Ele pediu liberação de recursos federais para proteger a boa gente catarinense. Recursos que não veríamos serem aplicados, para variar...

Um repórter finalmente perdeu a paciência e perguntou. "Mas, Senhor Governador... A população clama por ações objetivas e imediatas". Ao que o Governador respondeu: "Entendemos o anseio do povo, e medidas estão sendo tomadas. A Defesa Civil está a postos". Está a postos para quê? Para um deslizamento de terra? Um tornado? Uma enxurrada? O problema não era de efeito climático. Havia criaturas bizarras, poderosas, inteligentes, e violentas, devorando as pessoas ao anoitecer.

Desta vez, não adiantava usarem o velho método de ignorar para não ter que resolver, como normalmente acontece quando se trata dos problemas da população. O "discurso bonito" de nada serviria, nesse caso. Porque mais cedo ou mais tarde, os políticos também seriam comidos.

Então, de repente, os bichos sumiram. Como por encanto. Os especialistas trazidos pela TV não souberam explicar. Mas os políticos respiraram aliviados, pois assim, não precisavam mais tomar nenhuma providência. O toque de recolher foi retirado pela Defesa Civil. Os baladeiros de plantão comemoraram, óbvio. A vida havia voltado ao normal. Oba! Deixa prá lá. Pra quê tomar providências? Pra quê investir na prevenção se somos campeões em correr atrás do prejuízo, de perguntar e questionar só depois que a tragédia acontece?

Então, veio o ataque em massa. Um bando de dez a doze. O dia "D" das Cucas. O massacre fora deflagrado ao anoitecer de uma sexta-feira, tão logo o sol desapareceu no horizonte.

Meio segundo antes do caos se instalar, eu estava sentada diante da minha carteira, assistindo à última aula do dia, e da semana - Matemática. A turma acompanhava os ponteiros do relógio, completamente alheia ao que se passava lá fora; ao fato de que aquela era a última aula de nossas vidas. A sirene berrou e a "manada" saiu numa velocidade impressionante pelo corredor. Alguém deu uma gargalhada. Alguém soltou um grito insultuoso. A galera estava pronta para curtir. Claro, porque era sexta-feira.

Duas sextas-feiras do mês, Cláudio vinha passar os finais de semana com a gente. E lá estava ele me esperando na saída da escola. Parei um instante, lembrando-me dos velhos tempos de controle do meu irmão mais velho. Pois é, essa era a minha sexta de sorte!

Entrei no carro, olhei pra fora. Estava escurecendo, reparei, sem conseguir evitar um calafrio. Como as pessoas conseguiam colocar o pé na rua depois do que aconteceu? Tudo o que eu queria era chegar logo em casa...

- Nossa! Oi pra você também, maninha! – Cláudio ironizou.

Dei de ombros. Com um olhar de esguelha, captei sua postura tensa, os olhos cansados. Ele parecia ressabiado com alguma coisa a mais, e não era eu.

- Olha, não precisava vir me pegar. – Dei de ombros outra vez. – Eu posso ir pra casa de busão.

-Ah, lá vem o discurso de mártir... – ele deu uma risadinha sem humor.

Arregalei os olhos. Uau... Ele estava irritado, mesmo. Comecei a pensar no porquê de Cláudio se dar ao trabalho de vir me buscar – pois, evidentemente, estava aborrecido. Será que foi para não me deixar "solta" numa sexta à noite? Acho que eu desconfiava do motivo. Ele tinha receio de que eu voltasse a me encontrar com Jonas. Deve ter ficado sabendo do campeonato de karatê, no instituto. Deve ter ficado sabendo que Jonas venceu o campeonato. Portanto, ele juntou dois mais dois...

Cláudio acreditava, em sua imaginação galopante, que os hormônios de uma garota adolescente estão em constante ebulição, portanto, são incontroláveis. Que minha geração era feita de selvagens: quando libertos da coleira, jogam-se às orgias. E, ainda, sempre podemos surpreender os adultos com uma gravidez precoce e indesejável.

Como eu disse, imaginação galopante. Era mais fácil Cláudio engravidar do que a senhorita certinha, aqui.

O silêncio dentro do carro se tornou quase palpável. Estávamos parados num trecho particularmente difícil do trânsito - com ônibus lotados misturados aos carros, em ambos os lados da Avenida Mauro Ramos. Tirei o meu celular da mochila.

- É sério? – Ouvi o meu irmão perguntar.

Levantei a cabeça e o encarei. – É sério o quê?

-Você e o Michel? Vocês dois já... Sabe...

Meu queixo caiu. Levei dois segundos inteiros para responder.

-Não que isso seja da sua conta, mas, não... – falei com relutância. – Ainda não.

Cláudio meneou a cabeça, em silêncio. O semáforo abriu. O carro voltou a se mover. Ele disse, inesperadamente:

- Não se esqueça da camisinha. Nem da pílula.

Arregalei os olhos, não acreditando que estávamos tendo aquela conversa.

- Se o garoto não concordar você pode usar camisinha feminina. – Ele continuou, tamborilando os dedos no volante. - A mamãe já te levou à ginecologista, que eu sei. Portanto, se tiver qualquer dúvida, ela pode marcar uma nova consulta e...

-Ah, corta essa! – Ele finalmente conseguiu me deixar furiosa. - Sei o que faço. Não sou criança.

-Nossa! Estamos sensíveis hoje. – Cláudio resmungou, acrescentando: – Quer dizer que você não está pretendendo viver perigosamente? – Olhei de esguelha, tentando descobrir aonde aquela conversa maluca ia dar. – Nem estaria interessada em saber que o Jonas Matioli foi aceito no Instituto Federal, pertinho de onde você estuda?

Como é que é? Acho que devo ter merecido o Oscar, por absorver o impacto da bomba sem demonstrar.

- Eu o encontrei ontem – ele me lançou um olhar inquisitivo, como se estivesse querendo pegar a minha reação. – Foi por acaso. Eu tinha um lance pra resolver no IFSC, e o Jonas Matioli estava lá. Vai cursar Engenharia Mecatrônica. – Cláudio meneou a cabeça, olhando de volta para o trânsito. – Ele me pareceu entusiasmado.

Fechei a cara, saquei o celular, e entrei em rede com minhas amigas. Era o jeito de dizer que não queria mais papo. Por dentro, a curiosidade estava me matando... Mas eu não daria o braço a torcer.

Cláudio aceitou o meu silêncio numa boa, com uma cara de quem estava se divertindo a valer. O safado. Paramos novamente, dessa vez, na sinaleira de acesso à Avenida Beira-Mar. Foi quando gritos e estrondos, vindos de todos os lados, chegaram até nós.

-Mas que diabo...? – Cláudio murmurou, olhando ao redor, tentando ver alguma coisa. Abriu a janela e colocou a cabeça pra fora.

De repente, vimos carros serem jogados na altura do cruzamento com o Shopping Beira-Mar. Vultos grotescos e caudas se agitavam no ar, não muito longe dali. Cláudio deu ré, mas os veículos estavam engavetados. Acabamos batendo no carro de trás.

- Ei! – o motorista do outro carro saltou, furioso.

Sem olhar para ele, Cláudio abriu a porta e me ordenou, num sussurro: - Saia!

Eu não pensei em desobedecer. O celular e os cadernos caíram no chão do carro.

-Ei, cara! – O motorista berrou. - Olha só o que você fez no meu para-choque!

Cláudio deu a volta e me agarrou pela mão. Senti o vento sul gelado esvoaçando os meus cabelos, enquanto nós contornávamos os carros parados.

- Ei, cara! Aonde pensa que vai? – o motorista estava gritando para nós. - Volta aqui! Eu vou chamar a polícia.

De repente, Cláudio parou. Quase me choquei contra as suas costas antes de entender porque ele tinha parado tão subitamente. Olhei por sobre o seu ombro. Um carro de transporte de valores estava atravessado no meio da pista. Ao redor dele, duas criaturas enormes andavam em círculos, prestes a atacar. Como leões cercando a gazela indefesa.

O segurança estava de pé, junto à porta do blindado. Descarregou a escopeta contra as Cucas. Uma delas correu em sua direção; os tiros faziam apenas com que ela recuasse um pouco, mas sem interromper o "galope". A Cuca só parou quando ficou frente a frente com ele. Os olhos opacos fixos. A boca cheia de dentes aberta. O sujeito horrorizado continuou apertando o gatilho, sem perceber que sua arma não tinha mais balas. A coisa se ergueu nas patas traseiras e deu o bote. Arrancou o segurança de perto do veículo e começou a comê-lo. Os gritos do homem me paralisaram no lugar.

A outra Cuca balançou o blindado usando a bunda enorme. Só então reparei que havia mais um segurança dentro do carro blindado. Ele tentou fechar a porta do veículo, mas não foi rápido o suficiente. A criatura enfiou a cabeçorra lá dentro e o puxou para fora, para depois parti-lo ao meio com os dentes pontiagudos. Jorrou sangue para todo lado.

O pandemônio estava feito. Os gritos de pânico ao redor fizeram minha cabeça latejar, como se fossem adagas atravessando os meus ouvidos. As pessoas se chocavam entre si e contra os veículos, na tentativa de escapar. Os bichos saíram caçando os carros que estavam dando ré. Abocanharam os pedestres. Saltaram sobre postes de luz. Engoliram pessoas inteiras. Muitas delas estripadas à vista de todos – antes de serem arrastadas para dentro de buracos sombrios e inimagináveis. Bocas de lobo, galerias pluviais, fossas. Sabe-se lá aonde mais.

As armas da polícia pareceram brinquedos ridículos diante daquelas coisas enormes - meio reptilianas e meio roedoras - que se locomoviam rápido demais. As couraças escuras, com escamas pontudas se estendiam do topo das cabeças retangulares às caudas ágeis como chicotes. Vi aquelas caudas partirem pessoas ao meio, em um único golpe.

Cláudio me rebocou para trás de dois carros que colidiram um contra o outro, e me obrigou a abaixar junto dele. Escondi a cabeça em seu peito, abafando um grito. Ficamos ali por pouco tempo.

-Vem! – sussurrou ele.

Eu custei a entender o que meu irmão pretendia. Quando dei por mim, estávamos correndo outra vez. Só que na direção do blindado.

-Quê? – Tentei pará-lo. – Ficou maluco?

Eu escorreguei no sangue, quase caí. Cláudio nem olhou pra trás, sua mão fechada no meu pulso como uma algema. Olhei para baixo, com uma careta de nojo e consternação. Eu estava literalmente patinando sobre vísceras humanas. Tentei arrancar minha mão e fazê-lo parar, mas Cláudio praticamente me arrastou e depois me empurrou pra dentro do carro blindado. Ele entrou a seguir e trancou a porta pelo lado de dentro. Então, me abraçou e me obrigou a ficar abaixada.

Os gritos das pessoas e os guinchos agudos das Cucas ecoaram ao nosso redor por um longo tempo... Até serem substituídos por rosnados breves e sons de... mastigação. Cláudio olhou para mim, eu olhei para ele. De repente, escutamos as criaturas andarem por entre os carros, como se estivessem fazendo uma vistoria apurada; procurando, quem sabe, encontrar uma última refeição escondida. Tipo, uma sobremesa...

Era um jogo de gato e rato. Fechei os olhos com força a cada vez que elas localizavam alguém. Os gritos e os guinchos recomeçavam. Cláudio abafou um palavrão e tapou a minha boca, para que eu não gritasse. Quase me sufocou.

Depois de algum tempo, restou apenas o silêncio. Sem rosnados. Sem gritos. Só o vento sul cortante.

-Prenda a respiração. – Cláudio disse, num tom urgente. Eu obedeci, sem entender, mas sem hesitar. Senti uma das criaturas fungar e roçar a porta do meu lado. Ela passou bem devagar, fungou, saltou na frente do capô, olhou para dentro do vidro estreito do blindado. O vidro era escuro; ela pareceu não conseguir nos enxergar. Além do mais, estávamos abaixados. Petrificados.

Gritos vindos da Mauro Ramos desviaram a atenção dela - e das outras reunidas mais à frente. As Cucas farejaram o ar e depois saíram "galopando" na direção do som. Cláudio esperou sumirem de vista, para ligar o motor do blindado.

-Elas não enxergam muito bem. – Ele comentou baixinho, como se estivesse fazendo uma anotação mental.

Limpei a garganta seca e perguntei: - Para onde estamos indo? - Nossa, era minha, aquela voz esganiçada?

- Casa. – Ele franziu as sobrancelhas, concentrado em evitar os carros espatifados pela rua. - Ligue para os nossos pais!

Eu tateei os bolsos da jaqueta e me lembrei. – Não posso, deixei o celular no carro. – Burra, burra, burra!

-Então pegue o meu – ele estendeu o aparelho.

Não funcionou. O celular simplesmente não completava as chamadas. Acabei desistindo e concentrando a minha atenção no rádio do painel do carro. Procurei sintonizar um canal que estivesse noticiando a situação, até que encontrei. Antes não tivesse encontrado. A voz do radialista soou tão desesperada, que eu me arrepiei toda. Tipo Orson Welles e "A Guerra dos Mundos", de H. G. Wells. Tudo indica que foi um ataque simultâneo. Sincronizado? Deus, não... Não queria nem pensar nessa hipótese porque isso implicava... Não, deixa pra lá.

O ataque começou nas grandes cidades, mas logo se espalhou por toda a parte. De norte a sul, de leste a oeste... As Cucas estavam saindo do subterrâneo, provavelmente, dos esgotos e galerias fluviais. O locutor estava tentando conseguir notícias do resto do país.

-Desligue isso! – Cláudio ordenou, nervoso.

Graças à blindagem do veículo, Cláudio conseguiu fazê-lo avançar empurrando os carros menores para fora do nosso caminho. Não encontramos mais nenhuma Cuca – apenas rastros de sangue e destruição.

Então, fomos pra casa...

*************

Nada parecia fora do lugar. Nada que denunciasse o caos e a carnificina que tomou conta da cidade. O cenário a nossa frente bem poderia ser confundido com o de uma noite de domingo - tudo parado, poucas luzes acesas através das janelas, a rua mortalmente silenciosa...

Acho que a palavra chave era essa: "mortalmente".

Nossa casa ficava no final da rua, quase na esquina, e era uma construção muito bonita, toda rústica, numa mistura harmoniosa de madeira de ipê, pedras e tijolos de demolição. Costumava ser o meu porto seguro, o meu refúgio. Agora, porém, às escuras, com apenas a iluminação indireta dos postes, mais parecia um local mal-assombrado.

Cláudio estacionou do outro lado da rua e desligou o motor. Olhou por um instante para a fachada da casa, e disse:

-Vou entrar sozinho.

-Peraí!

-Sem discussão. Não sei se é seguro. – Ele baixou a cabeça, como quem toma fôlego para mergulhar numa piscina gelada, então murmurou: - Tenho medo do que vou encontrar lá dentro. – Saiu, deu alguns passos e parou. – Tranque pelo lado de dentro.

Observei-o atravessar a rua e tomar o caminho do jardim. Obviamente, eu não pretendia obedecê-lo. É ruim, hein, me deixar pra trás, sabendo que nossos pais podiam estar feridos, ou ameaçados! Saltei do carro e corri atrás dele. Mas, Cláudio já havia desaparecido. A fachada escura da casa parecia dizer: "Decifra-me ou devoro-te", tal qual a esfinge. Contive uma gargalhada histérica. Por um breve momento, fiquei ali, parada, indecisa. Deveria segui-lo?

Não sei o que me levou a escolher contornar a casa pelo caminho da garagem. Alcancei o quintal e avistei os doggies perto da horta. Pareciam desorientados e apavorados. Duque começou a latir alto assim que me viu – estava preso na varanda interna, arranhando freneticamente a porta de vidro. Fui até ele tentando não fazer barulho; o que se tornou ridiculamente inviável mediante a sinfonia de latidos. Entrei e fechei a porta.

Duque choramingou; só se acalmando quando seu olfato foi atraído em direção aos meus tênis Adidas. Imediatamente, eu me lembrei - com um arrepio de nojo - de que eu tinha patinado sobre vísceras humanas. Neste momento, Milla veio correndo da cozinha. Ficou pulando nas minhas calças feito mola – toin, toin, toin! Peguei-a no colo para acalmar a nós duas.

Eu me virei, sentindo que estava sendo engolida pela escuridão da cozinha. Apertei os olhos num esforço para enxergar. A casa estava quieta demais, vazia demais. Onde estariam mamãe e papai? Onde estaria Cláudio? Um barulho abafado no segundo piso me gelou o sangue. Em seguida, algo se espatifou.

Os cães voltaram a ficar histéricos. Acima da barulheira soou um guincho pavoroso. Isso bastou para que eu "descongelasse". Apanhei às cegas a gaiola de Jarbas e Olin, os coelhos do meu pai, e sinalizei para que os doggies me seguissem.

Do lado de fora, reparei que a garagem estava parcialmente aberta. O carro de mamãe, lá dentro. Girei nos calcanhares e olhei ao redor, procurando um sinal, qualquer coisa que... Foi, então, que avistei uma perna parcialmente oculta pela cerca da horta. Duque voltou a latir. Ignorei-o e caminhei até lá, receando o que estava prestes a ver. No meu íntimo, eu já sabia.

Os pensamentos se dissolveram num turbilhão incoerente, por isso eu não teria como descrever o que eu estava sentindo, naquele exato momento, a não ser pelos efeitos físicos. Comecei a hiperventilar - a respiração rugia em meus ouvidos. Cada passo tornou-se mais difícil que o anterior... E mesmo assim, forcei as pernas a me levarem até lá. Contornei a cerca, trêmula, antecipando o pior. E o pior aconteceu. E o pior foi não encontrar tudo, apenas uma perna dobrada, coberta por farrapos do que um dia foi uma calça legging. Reconheci a calça. O pé feminino ainda calçado com a sapatilha de salto baixo... Reconheci a sapatilha.

Nesse instante, um guincho e um grito humano ecoaram simultâneos. Os cães latiram desesperados. Desviei os olhos da perna estraçalhada na altura do quadril, sentindo-me culpada. Eu devia querer ver. Eu devia sair catando os pedaços de minha mãe pelo terreno. Ao invés disso, agarrei a gaiola, chamei os cães com urgência e corri para longe dali. O Duque me acompanhou, para o meu alívio, e os pequenos nos seguiram em fila indiana. Contornamos a casa, ganhamos a rua, e já estávamos alcançando o carro blindando quando Cláudio apareceu no jardim, correndo como louco.

-Entra! – ele gritava. – Mas que droga, por que você saiu!?! Entra logo e fecha essa porra! Agora!

Eu botei todo mundo pra dentro. Cláudio me atropelou para assumir o volante. Foi aí que avistei a sombra de uma Cuca saindo da nossa casa. Quase me mijei de medo. Só deu tempo de me inclinar por cima da gaiola dos coelhos e puxar a trava da porta. Meio segundo depois, senti o baque na lateral do veículo. A criatura estava batendo a cabeça contra o carro como um touro furioso. A blindagem amassou com um rangido alto. O carro balançou perigosamente de um lado para o outro.

- Ela está tentando nos virar! – Cláudio gritou acima dos latidos frenéticos dos cães.

Ele deu a ré. Os pneus passaram por cima das patas da criatura, que soltou um ganido de dor. Cláudio engatou a marcha e avançou, afundando o pé no acelerador. Olhei pela janela e vi a Cuca mancando. Ela não nos perseguiu. Ficou para trás. Talvez estivesse seriamente machucada.

O blindado fez a curva e nos distanciamos. Eu virei para trás e cai sentada. Pestanejei, ao sentir os meus pulmões queimarem. Só então me dei conta que estive prendendo a respiração o tempo todo. Inspirei fundo e, ofegante, murmurei:

-Mamãe está morta – os cachorros tentaram pular no meu colo. Todos ao mesmo tempo. Quase me derrubaram do banco. Agradei quantas cabeças eu pude, tentando acalmá-los.

Cláudio ajeitou-se no banco, e respondeu: – Eu sei... Papai também.

Levantei a cabeça e busquei os olhos de meu irmão pelo retrovisor. Ele não disse mais nada. Nem eu. Não houve choro. Não houve desespero. Não houve dor. Estávamos anestesiados. A dor só viria muito tempo depois, e com força total.

Naquela noite fatídica, aprendemos da pior maneira possível sobre o Modus Operandi das Cucas. Aprendemos que elas têm algumas fraquezas, são poucas, mas têm. Fraquezas que podem ser uma pequena vantagem na "arte da sobrevivência". Tendo isso em vista, desenvolvemos nossos planos de ação.

Aonde havia corpos de seres humanos visíveis, era porque as criaturas ainda estavam por perto. Caso contrário, não restaria corpo algum. Nem um pedacinho dele. As Cucas basicamente eram guiadas pela violação da Lei Mocbris. Quanto mais as pessoas gritavam, mas atraíam a morte para si. O Modus Operandi era sempre o mesmo: matar, comer, e/ou arrastar os corpos para os ninhos. Assim como nós, elas não perdiam tempo, recolhiam-se pouco antes do amanhecer. Seus olhos desbotados, meio cegos, eram sensíveis demais para suportar a luz do dia.

Por isso, o dia era nosso aliado. Durante o dia nos preparávamos para a noite. E cada noite trazia a incerteza do amanhã.

Isto é, se houvesse um amanhã.

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