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"Nós podemos ser heróis, apenas por um dia"
| HEROES, Peter Gabriel |
Ellie
Eu pensei que beberíamos na casa dela, mas fomos direto para um barzinho parcialmente vazio quase na saída de Calhoun. Eu não reclamei, afinal estava curiosa para saber o que a noite me proporcionaria. Eu não estava me exigindo novas experiências que ficassem na memória por muito tempo? Sentia uma áurea de aventura naquele bar meio abafado, mas não estava com medo das consequências.
Sentamos em uma mesa vazia. Eu peguei o cardápio meio grudento graças à uma substância suspeita e passei as páginas plastificadas na tentativa de encontrar algo saboroso. Em geral, passava o Ano Novo com meus amigos, mas há dias não recebia nenhuma mensagem deles. Exceto pelo garoto que conheci e beijei na balada, ninguém se demonstrara interessado em me convidar para uma festança. Acomodar-me naquele bar na presença de alguém não seria estranho se a amiga em questão não fosse uma mulher com a qual, estranhamente, aproximei-me demais nos últimos dias.
— Eu nem perguntei se você tinha algo marcado para hoje — Srta. Ewing disse. Ela colocou um braço estendido na cadeira de madeira. A decoração era bem rústica e interessante, mas a música que saía da jukebox não combinava nadinha com o lugar. — Eu não estou lhe prendendo em casa!
— Não está? — pisquei. Eu estava brincando, claro, mas uma leve confusão passou pelos olhos dela. Precisei rir para mostrar que tudo estava bem. — Você disse que não quer se despedir de mim.
Ela apoiou os braços sobre a mesa, colidindo as pulseiras e causando um barulhinho já familiar para meus ouvidos. Eu não me movi, apesar de ela ter ficado perigosamente próxima naquela posição.
— Sabe quando você está lendo um livro e o autor apresenta todos os elementos nos quais você precisa manter atenção, mas apenas no final as coisas fazem sentido? — ela perguntou e eu assenti. — Partindo dessa ideia, você só vai entender minhas palavras no final de tudo.
— Para mim, o "final de tudo" é a morte — apertei os olhos, pensativa. Eu estava um pouco distraída nisso, mas tomei cuidado de não encostar o cardápio em mais regiões da minha pele.
— Nem tudo precisa morrer para ter chegado ao fim — Srta. Ewing afirmou. — Você pode chegar no "final de tudo" de algo, mas ainda ter outras linhas para percorrer e completar.
— Então vou entendê-la apenas quando chegar no final dessa linha? — apontei para ela e depois para mim. Ela concordou, sorrindo. — Quanto mistério.
— Ah, não é. Você não precisa me investigar — ela fez sinal para o garçom comparecer à nossa mesa. — As coisas apenas se movem nessa mistura chamada vida. As respostas vão chegar sem que você perceba.
— Isso não é meio contraditório? Minha tia dizia que não devemos esperar sentados — falei o que me parecia o óbvio.
Srta. Ewing me mirou com uma quantidade moderada de deslumbramento, mas não disse nada em resposta. Ela só sorriu e piscou, aguardando para que finalmente fizéssemos o pedido das comidas. Eu estava confusa, mas não queria me ocupar em compreender o raciocínio dela. Pedi uma porção de batatas fritas e cervejas, porque os preços cabiam no meu bolso e a fome gritava dentro de mim. Eu não deixaria que ela pagasse a refeição, porque, embora pobre e desolada, meu orgulho era duríssimo. Ela acrescentou algumas salsichas extras e whisky com limão.
— Agora teremos de esperar — ela retirou alguns guardanapos da caixinha e limpou a mesa pacientemente. Encarou-me em divertimento. — Esperar sentadas.
— É a única coisa que faço ultimamente — admiti.
Ela trancou as sobrancelhas.
— Claro que não! Você até ajuda no jantar — brincou.
— Não tenho outra alternativa — ri baixinho. Depois de descartar os guardanapos, a médica deitou o rosto em ambas mãos, os cotovelos na mesa que balançava e a cabeça levemente torta para me olhar melhor. Ela parecia uma criancinha interessada em uma peça de teatro infantil. — Eu gosto de cozinhar.
— Você cozinha bem.
Eu era ótima em receber elogios. Raramente ficava envergonhada, porque já havia me acostumado com as palavras simpáticas das pessoas, sobretudo nas aulas que lecionava. Mas minhas bochechas estavam quentes, sendo que ela não havia dito nada muito extraordinário. Se fosse outra pessoa, provavelmente nenhuma reação estranha explodiria do meu corpo.
— Minha tia me ensinou — contei.
— E o piano? Quem a ensinou? — perguntou. Ela se curvou um pouco mais sobre a mesa e concentrou-se em todos os pontos do meu rosto, porque seus olhos, outrora estáticos, naquele instante passeavam sem cessar em cada área mínima. — Delilah tocou maravilhosamente bem, mas não derrubei nenhuma lágrima. E olha que sou uma mãe bem coruja. Eu não chorei, porque a canção era feliz, não? Mas você sim. Obviamente o piano tem um significado muito maior para você.
— Tem — concordei. Eu não sabia muito o que dizer, porque tinha medo de acordar minhas lembranças novamente. Acomodei-me o melhor que podia naquele assento duro. — Eu aprendi algumas coisas básicas com minha mãe, mas não lembro dos detalhes. Eu só sei que... — Sorri involuntariamente. Algumas nuvens passavam na frente da minha cabeça. — Ela me trazia uma revistinha nova todos os dias depois do trabalho. Alguns acordes e partituras que, na época, pareciam uma fórmula complicada de matemática. Mas peguei gosto e nunca desisti. Usei as revistas como minhas apostilas.
— Ela devia sentir muito orgulho — Srta. Ewing disse. Sem permissão, as lágrimas ameaçaram a cair dos meus olhos, mas sequei cada gota antes de desmanchar-me na frente da mulher.
— Ela era uma excelente pessoa. Excelente mãe. Ausente, porque o trabalho a tirava de mim, mas não havia muito o que podíamos fazer. Meu pai ainda tentava manter tudo em ordem, porque ele era o único que ficava em casa. Ele "consertava tudo" — fiz as aspas com os dedos, relembrando. A minha tentativa de manter o passado para trás não estava dando muito certo. — Eu acreditava firmemente nisso, porque ele era um homem multitarefas. Acho que nunca precisamos chamar um encanador ou eletricista em casa.
— Eu gostaria de ser multitarefa também, ou contratar uma pessoa talentosa em todos os níveis, porque assim não precisaria chamar tantas pessoas para funções diferentes — Srta. Ewing admitiu, fazendo-me rir.
— Acho que ele não se daria bem trabalhando lá — contei. Ela sorriu, mas demonstrou que estava perdida. — Ele se mantinha bem longe de pessoas ricas como...
— Como eu? — ela cortou. Eu ri de novo, mas ela não estava nada surpresa. Na realidade, um sorriso trapaceiro surgia. — Eu sei bem. E não estão erradas. Eu mesma evito de ficar perto de outras pessoas assim. Acho que elas fazem parte de uma seita, sabe? Eu não estou brincando! Olhe só minha mãe. Ela esqueceu de passar um pacote de caráter no seu cartão ilimitado.
— Meu Deus! — eu gargalhei. Mais lágrimas surgiam, dessa vez por conta do riso desenfreado. — Isso é muito errado. Desculpe, mas não consigo parar.
Ela fez um gesto displicente e entrou na risada junto comigo.
— Você tem toda a história bonita sobre sua família, embora dramática e possivelmente trágica. Mas a minha mãe... — apoiou uma mão na testa. — Eu não estou mentindo quando digo que não tenho tantas boas narrativas para contar.
— Você é a prova viva que não precisamos ter bons exemplos de pais para se tornar um — falei, limpando as beiradas dos meus olhos. — Eu nunca vi crianças tão educadas quanto os seus filhos.
— Você não teve a sorte de pegar uma fase ruim deles — Srta. Ewing contou, mas seus olhinhos brilhavam vaidade. — Sim, mas eles são muito bonzinhos. Dash, por outro lado, arrasa minhas estruturas em nome de três. Como pode?
— Ele é adolescente — comentei. Eu gostava mesmo de Dash e o defenderia até o ano que vem, ironicamente falando. O garçom colocou nossos pedidos na nossa mesa e retirou-se em um piscar de olhos. Eu e Srta. Ewing nos preparávamos para comer. — Todo mundo fica complicado na adolescência.
— São idades estranhas, não? — Srta. Ewing riu também. — Eu era péssima na adolescência.
— Sério? — fingi que já não desconfiava. Considerando que sua mãe era uma tristeza, não esperava que fosse criar bem uma criança.
— Péssima na aparência — confidenciou.
— Ok... — usei da pausa para sinalizar que não acreditava tanto assim. — Você parece que já nasceu bonita.
— O quê? — ela deixou a risada gostosa ecoar. — Eu tenho alguns anos a mais que você. Isso tudo — Ela apontou para o rosto e depois para o corpo ao todo. — é resultado de algumas magias da medicina.
Eu mastigava as batatinhas com gosto enquanto usava da cerveja para ajudá-las a descer. Eu estava faminta, mas muito feliz que podia ocupar minha boca com gordura. Depois de alguns goles no álcool já sentia o famoso formigamento no estômago, o que indicava que minha lucidez estava sendo devorada — eu o bebia por fora e ele, por dentro.
Srta. Ewing era bonita de verdade, mas não porque se rendera a algumas plásticas. Ela não era esticada ou algo assim, mostrando que seu cirurgião fizera um trabalho minucioso e preciso. Mas, sem levar em consideração o que ela havia feito posteriormente, acreditava mesmo que nascera sob uma harmonização catatônica. Obviamente a beleza era relativa, mas a aparência de Elisabeth Ewing definitivamente me agradava. Se eu tivesse um tipo de pessoa para me atrair — isso eu considerava ainda mais abstrato, porque meus gostos eram muito sazonais e eu descobria novas atrações sem que me desse conta —, ela estaria no topo da lista.
Ela tinha certo cuidado comigo, e, embora eu houvesse adquirido muita independência nos últimos anos, gostava da sensação de acolhimento. Ela não me deixava fazer muitas coisas em casa, mesmo que eu não me importasse com as tarefas. Talvez ela tivesse medo que eu ficasse desconfortável em um lugar desconhecido. No dia anterior, por exemplo, quando comprara doces para os filhos comerem na viagem, também me trouxera um tablete de chocolate para me agradar. Só faltara colocar em cima do meu travesseiro para que a atitude se tornasse ainda mais fofa — e literalmente melosa.
Pensei que teria mais contato com ela, afinal estava em sua residência. Mas ela me deixava livre e cumprimentava-me com gentileza sempre que me via perambulando. Ela trabalhava bastante mesmo naquele período (as pessoas tendiam a quebrar-se inteiras no final do ano e precisavam de médicos dedicados como ela), de modo que falávamos só o essencial nos minutos que tínhamos juntas. Ela nunca perguntava para quais bandas me enfiava quando ela estava fora, dando-me certa privacidade. Eu queria um bate-papo assim, confesso, mas apreciava o seu zelo.
Eu não precisava de uma pessoa que vivia apenas para me satisfazer com quinhentos mimos e provas de carinho, pedindo até mesmo para respirar no meu lugar. Nada de grude, nada disso. Eu só precisava de alguém que, assim como Srta. Ewing estava fazendo, mostrasse que se importava com pequenas atitudes. E o seu simples estava dando matéria ao complexo.
— Eu não percebi nenhuma "magia" — falei, torcendo para que a minha divagação não houvesse sido muito evidente. Ela mastigava devagar. — Depois me passe o número do seu médico.
Eu não falava sério, porque odiava a ideia de alguém me cortando. Eu não conseguia sequer pensar em sangue sem que minha pressão caísse. Evitava até mesmo passar em consultas mais complicadas, porque tinha aflição do ambiente hospitalar.
— Você não precisa — ela empurrou o corpo gorducho de whisky. Provavelmente estava me desafiando a beber. — Metade sua e metade minha.
Limpei os dedos gordurosos secretamente na minha calça. Ela não estava vendo a minha sujeira, então não tinha problema. Peguei o copo e encarei o líquido que se remexia dentro. Às vezes tomava algumas coisas naquele nível em baladas ou festas, mas preferia ficar nas minhas cervejas, que já faziam um ótimo trabalho em trazer uma ressaca violenta.
Mas fiz como o pedido e virei goela abaixo alguns dedos da bebida ardente. Empurrei o restante de volta, porque queria vê-la engolir. Eu lutava contra o gosto forte, mas vencia a batalha; não cederia tão fácil.
— Ah, é? Não preciso de cirurgia plástica? — debochei. Ótimo. Agora uma coragem audaciosa estava viva. — Por quê?
— Três perguntas? — ela admirou-se. Virou o copo e nenhum vestígio de dor interna passou pelo seu rosto bem moldado. — Você só tem vinte anos.
— Vinte e seis — corrigi. Eu queria parecer mais velha, claro. — Depois dos dezoito, não tem idade para começar. Ou parar.
— Os viciados em cirurgias dizem isso — riu-se sozinha. Ela colocava mais batatinhas na boca. — Eu comecei bem depois.
— Certo — ri também, porque duvidava dela. Agora a cerveja descia com mais facilidade, mas eu temia o que podia vir em seguida. — Ainda há tempo de viciar.
— Ainda há tempo para tudo — Srta. Ewing assegurou.
Eu e a médica-rica-poderosa-belíssima-com-poucas-plásticas passamos bastante tempo conversando aleatoriedades. Aos poucos, a mulher se despia da elegância previamente moldada, do calculismo, do olhar analítico. Ela relaxava e liberava-se de todas as tensões, permitindo-se que pernoitássemos sem nenhuma implicação.
Alguns copos foram enchidos e esvaziados na mesma velocidade. Outras duas porções de batatas fritas com salsichas foram pedidas, porque um buraco negro existia dentro de nós duas. Em conjunto, podíamos acabar com o estoque do humilde bar, que, sem que víssemos, esvaziara-se até que restasse apenas nós duas sentadas ao fundo.
O riso era solto e a preocupação, se existira outrora, naquele instante já não tinha tanta importância. Eu não esperava que fosse me enfiar em qualquer estabelecimento na companhia de Elisabeth, mas estava curtindo muito o desenrolar.
— Por que aqui? Por que um bar? — quis saber em uma parte do nosso falatório.
— Eu gosto de ficar bêbada. E você? — ela balançou os ombros, rindo.
— Eu não — acompanhei-a. Ela intensificou a risada. — Eu perco meu controle!
— Não, não, não! Isso tudo é mental. É psicológico — ela esbarrou com a perna no meu joelho, mas pareceu não notar.
— Você é médica! Não devia dizer isso nem mesmo brincando — gargalhei como quem acabava de ouvir a piada de encerramento de um Stand Up.
— Eu sou uma sommelier!
Eu sentia as paredes dos meus órgãos se contorcerem com tanto esforço que eu estava fazendo para rir. Havia uma grande probabilidade de nada daquilo ter graça, afinal já estávamos em um estado bem avançado da embriaguez. Eu só esperava que nossa ceninha não fosse a pior que o dono do bar já presenciara em seus anos ali.
— Ok, eu preciso fazer xixi agora — anunciei. Eu tentei levantar, mas alguma força maligna denominada whisky com cerveja me derrubara de volta. Eu estava realmente tonta — É o universo me punindo por não dizer "urinar".
Elisabeth tomava fôlego também. A risada morria, mas o divertimento estava em crescença constante.
— Fique um pouquinho sentada. Você está bem — sorriu, amistosa. Ela bateu sua perna de novo na minha, mas dessa vez fiz questão de mostrar que estava percebendo sua falta de equilíbrio mesmo sentada.
Ela sentiu meu toque debaixo da mesa. Eu só tinha colidido de leve a minha panturrilha em sua perna, então eu não esperava um contato mais consistente da parte dela. Ela escorregou uma mão para meu joelho e subiu delicadamente para minha coxa, tomando espaço. Eu, por reflexo, agachei meus olhos. A mesa bloqueava boa parte da minha visão, mas consegui ver o movimento involuntário de seus dedos sobre o meu jeans. Eu estava prestes a vomitar e usaria o álcool como desculpa, porque não admitiria o choque de desejo explícito.
Bem que ela podia subir só mais um pouquinho...
— Você está mais firme? — Elisabeth sussurrou. Por que ela estava me hipnotizando?
Não, pensei.
— Sim.
Ela puxou a mão de volta, permitindo que o meu sangue fosse bombeado em ritmo normal. Eu não queria que ela se afastasse, mas estava feliz que eu não houvesse soltado a comida da noite em cima dela.
— Vou te levar ao banheiro para que não se perca por aí — Elisabeth decidiu.
Eu ri pela décima vez. Atirei meu corpo para frente, impulsionado-o a andar na direção dela. Torcia para não perder o foco, porque tudo ao redor se banhava em algum feitiço desconhecido. Eu estava achando cada pedacinho do bar mais interessante, mas tinha certeza que era por culpa da bebedeira. Elisabeth me deixou usá-la como suporte, embora ela também estivesse tontinha. Fomos meio cambaleantes para o banheiro não muito longe da nossa mesa.
— Vou retocar a maquiagem — ela anunciou. Posicionou-se na frente do enorme espelho acima da pia e procurou pelos materiais dentro da bolsinha de colo.
Eu entrei na única cabine disponível no banheiro e segurei-me firme nas paredes para não encostar no vaso sanitário. Seria muito mais eficiente se fosse um vaso no solo como na China, porque só precisaria me agachar e tudo seria mais simples. No entanto, eu tinha de fazer o maior dos malabarismos para não encostar o meu traseiro em algo nada higiênico.
Assim que sai e fui lavar minhas mãos, outra crise de riso se apossou do meu corpo. Eu olhava direto para o espelho e via a imagem de Elisabeth com o batom borrado. Ela ainda tentava consertar, mas apenas se sujava mais. Molhei minhas mãos e a puxei delicadamente.
— Deixe-me ajudar — pedi. Ela acatou a ideia e ficou parada, olhos presos em mim.
Eu passei os dedos pela borda da sua boca levemente carnuda. Eu não pretendia machucá-la, mesmo que precisasse esfregar a área com certo vigor. O vermelho se tornava rosado, mas não estava querendo sair totalmente. Enfiei minha mão debaixo da água para tirar o excesso de cor e subi para continuar com minha tarefa. Observei seus lábios se esticando conforme meus dedos passavam perto, mas retornando para o mesmo lugar em seguida.
Elisabeth levou as próprias mãos para se apoiar nos meus braços. Eu havia subido ligeiramente nas pontas dos pés, porém conseguia me manter na mesma região. Ela, por outro lado, parecia meio vacilante perto de mim. Eu não podia deixá-la me desequilibrar, mas bem provável que acabaríamos caindo uma por cima da outra, exatamente há alguns dias. Eu mergulhei em suas orbes cheias de malícia — pelo menos era o estava parecendo — e tentei identificar os pontos do castanho dela. Ele possuía uma tonalidade muito irreal para minha cabeça ébria.
Eu não devia borrar mais o seu batom, mas meu polegar foi levado pelo lábio inferior. Escorreguei de propósito e senti o volume molhado que podia muito bem pulsar para mim. Claro que ela tinha algum poder, uma fada contemporânea, uma bruxa, uma vampira pronta para morder meu pescoço. Eu simplesmente não conseguia — e não queria — me afastar.
— Está melhor? — ela murmurou. Já não ríamos mais, pois havíamos dado caminho para outra sensação.
— Sim — comentei, minha palma descansando em seu queixo. Eu não tinha arrumado nada. Na verdade, seu batom estava bem mais claro depois que arrisquei consertá-lo.
Ela trouxe minhas mãos para baixo ao perceber que não me moveria tão cedo. Eu desci meus braços em câmera lenta, pois não queria sair daquela posição. Mantínhamos o olhar na outra, acarretando em uma calma absoluta, em um sabor afrodisíaco. Ela subiu o canto dos lábios para sorrir de um jeitinho muito especial.
— Já vai dar meia noite — Elisabeth suspirou.
Teleportei-me para alguns anos atrás. Ali, dentro daquele banheiro, não sobrava nenhuma Eleonora Baudelaire careta de vinte e seis anos. Eu tinha no máximo uns dezenove, recém admitida na faculdade, cheia de esperanças para um futuro promissor. Agarrei o pulso de Elisabeth e corri cheia de agitação para fora do banheiro, porque a noite não devia acabar tão prematuramente.
Ela fez questão de pagar pelos pedidos. Eu ainda coloquei sorrateiramente algumas notas em seu bolso, mas ela percebeu e devolveu cada centavo, alegando que eu era a convidada e não precisava fazer aquilo. Se eu não estivesse me embolando tanto nas palavras, teria negado mais um pouco, mas acabei cedendo logo.
Chovia forte. Excelente final de noite. Eu e ela precisávamos aguardar um táxi, porque não tínhamos condições de voltar para casa dirigindo. Meu celular era o único com bateria, de tal modo que só eu poderia chamar o carro. Eu passaria a corrida em meu cartão, porque precisava pagar algo para nós duas para ficar com a consciência tranquila.
— Eu acho que você colocou o endereço errado — Elisabeth alertou. Ela olhava por cima dos meus ombros enquanto eu tentava decifrar meu próprio celular.
— Será? — fiquei me perguntando. Olhei para o número do estabelecimento que estávamos agorinha, mas ele não coincidia com a localização da tela do meu celular. — É, coloquei.
Elisabeth riu altíssimo, alertando outras áreas do meu corpo. Eu estava fazendo de tudo para não morrer naquele frio, mas só de vê-la tão liberta me esquentava dez mil vezes mais que casacos quentinhos. Ela tomou a liberdade de me arrastar para a direção que o taxista provavelmente passaria. Mas, para isso, tivemos de sair da cobertura. Soltei um grito miúdo só de colocar um pé para fora, porque os pingos da chuva estavam violentos.
— Vamos, Eleonora! O que você está esperando? — a mulher gritou de volta.
Ela estava gostando da chuva, do frio, da gripe que ganharíamos de brinde? Elisabeth me puxou, envolvendo-me pelos ombros. Unidas assim, corremos desenfreadas pelas ruas extremamente solitárias de Calhoun. Eu permaneci com a cabeça baixa para não ter de engolir a chuva, mas não estava tendo muitos resultados positivos. Elisabeth estava bem contente, porque sorria sem parar e apenas recebia a água na cabeça sem nenhuma frescura. Eu tentei me desprender das amarras. Se fosse para ficar doente, então ficaríamos juntas.
— Pra lá! — apontei. Tentava relembrar o caminho que olhamos no meu aparelho, porque não tinha nenhuma condição de tirá-lo do meu bolso e conferir mais uma vez sem que eu o molhasse. — Ali! Acho que pra lá.
— É virando aqui — barrou-me. Eu escorreguei na calçada, mas felizmente não cai. Estava tão eufórica e cheia de adrenalina que nenhum impacto me faria sentir dor. Ela gargalhou. — Vamos.
Corremos mais alguns minutos. As ruas pareciam aumentar de comprimento cada vez que avançávamos mais. Todavia, mesmo sem sentir o compasso da minha respiração e percebendo que todos os meus órgãos falhavam graças ao frio absurdo, resistir com Elisabeth se tornava mais vivido. Eu não perdia o ar, porque, de alguma forma, ela me trazia o oxigênio de volta.
A iluminação se perdia naquela parte da cidade. Achava que devíamos nos preocupar, mas estávamos tão desvencilhadas de medo — de uma forma perigosa — que apenas continuamos pelo caminho. Alongamos os passos na última rua sombria. Eu suspeitava que estávamos perdidas, mas Elisabeth me direcionou sabiamente pelo lugar.
— Ali está o carro — ela avistou.
— Já era tempo! — eu aplaudi, encarando-a com animação. — Sua maquiagem já era.
Ela se pôs na minha frente, mas não parou de andar; movia-se de costas. Eu não a deixaria cair ou bater em algo depois de desvendar o caminho no labirinto de ruas.
— Certeza que continuo bela. Não continuo? — Elisabeth fez pose.
Rindo, distribui uns dois passos a mais na calçada, para enfim segurá-la. Ela voltou a andar normal, mas isso não significava que estávamos livres de algum acidente.
— Lindíssima.
Havia dito em tom debochado, mas só queria mascarar a verdade. Ela estava estonteante. Encharcada e bêbada, sim, mas magnífica. Eu gostaria de saber a fórmula, porque não acreditava que eu estava, no mínimo, bonitinha. A chuva devia ter feito um estrago em mim. Mas ela, contudo, reluzia um encanto ilógico.
O taxista não parecia muito feliz. Já entramos em seu carro pedindo mil perdões adiantados, porque criaríamos um rio no banco traseiro. Ele deu partida cochichando algo que não consegui escutar. Senti um alívio imediato, porque chegaríamos salvas na mansão caso o homem na frente do volante não fosse um maníaco.
Elisabeth tremia de frio. Sem hesitar, aproximei meu tronco do dela, abraçando-a para que pudesse esquentá-la. Ela sorriu em agradecimento, mas gostaria de adivinhar o que mais seus olhos me diziam. Eu só a observei quietinha em meus braços, enroscando-se à procura da brasa que expelia das minhas células.
"Eu não quero esquecer o dia de hoje", pensei. "Por favor, não me deixe esquecer, Deus."
E essas duas? Eu shippo até nunca mais, por favor. Elas na maior tensão sexual que não me aguento em pé. Por que não se pegam logo? Quem escreveu isso?
Finalmente elas entraram em 2020, hein? Estão um pouco atrasadinhas. O que acontecerá na madrugada? No dia seguinte? Eu estou só fingindo que não sei de nada.
Até quinta-feira, amores! Não esqueçam de votar, comentar, recomendar... Vamos levar Souvenir à Lua!
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