OS FILHOS DA TERRA - CAP2
"...Estou na rodovia para o inferno
Na rodovia para o inferno
Rodovia para o inferno
Estou na rodovia para o inferno..."
- Highway To Hell -
AC/DC
Sandro libertou uma das mãos do volante e pressionou a tecla que ligava o toca fitas. Sintonizou uma estação. Aumentou o volume até que reconheceu "Sonífera Ilha" dos Titãs. Tamborilou os dedos no volante. Adiante continuava a constância do Milharal em ambas as margens da 724, como se dirigisse em círculos. A monotonia do percurso foi tanta que Sandro resolveu parar e esticar as pernas para afastar o sono.
Escorregou o carro para o acostamento, deixou em ponto morto e desligou o motor. Manteve o rádio ligado. Colocou o rosto para fora da janela. Fechou os olhos. Inspirou o ar quente por um tempo. Até o cheiro rançoso de fertilizante o engasgar.
Sandro tossiu como um asmático.
Palavrões brotaram de seus lábios.
Desceu do carro.
Deu as costas para o carro e caminhou pelo acostamento. Olhou para os dois sentidos da rodovia e se indagou a quanto tempo não via outro veículo. Nenhuma máquina agrícola. Não viu agricultores ou qualquer outra pessoa além do frentista (relembrar dele trouxe um gosto amargo direto do estômago).
Soltou um grito a plenos pulmões em direção ao céu. Chegou a ver pontos pretos brotarem em seus olhos e faltar-lhe o fôlego.
Parou.
Curvou o corpo, as mãos sobre os joelhos.
Inspirou e expirou devagar.
Voltou a andar.
Desviou o percurso para o milharal e ficou abismado com a plantação. A palha sem nenhum fungo, a terra úmida mesmo sob o sol quente, os talos volumosos e maiores do que um homem adulto. Fileiras simétricas despontavam rumo ao céu onde ave alguma era vista sobrevoando. Sem animais, insetos e gente. Tudo pronto para a colheita. O milharal permanecia intocável em toda sua glória.
Por outro lado, não havia ali o mínimo de brisa. Nada além de terra e milho numa extensão interminável naquela rodovia isolada do mundo real.
- Lugar estranho - sussurrou pra si mesmo.
O viajante penetrou no milharal e escolheu um lugar entre a quarta e a quinta fileira (Ou seriam a sétima e a oitava?). Abriu o zíper do jeans e começou a esvaziar a bexiga.
Inclinou o corpo para trás; os ossos das costas estalaram e uma pontada de dor percorreu a espinha. As mãos seguravam o membro enquanto o viajante semiflexionava os joelhos. Balançou o corpo para os lados, depois pra frente e pra trás. Sorriu.
Tinha os olhos lacrados enquanto a urina respingava sobre a palha e logo escorria pelas espigas encharcando os talos. O som do líquido morno ecoava e se misturava aos gemidos da plantação.
"Apenas o sacrifício mantém o fogo longe do Milharal!".
Sandro ainda sorria quando a frase irrompeu na mente dele como um grito estridente. Recuou alguns passos com o susto. Molhou o tênis e parte da calça. Teve que olhar em volta para ter certeza de que ainda estava sozinho.
Fechou o zíper e girou sobre os calcanhares.
Atravessou as fileiras apressado, o coração batia sem governo.
A premonição de algo ruim impelia a fuga repentina.
No caminho de volta ouviu algo e hesitou.
A sensação de estar sendo observado surgiu em meio a passos sobre a palha seca, logo atrás dele. Não, talvez mais além e em várias direções.
Sandro recomeçou a caminhar.
Em segundos evoluiu para um trote e antes que percebesse começou a correr.
Emergiu do milharal num salto desengonçado sem fazer ideia de como havia se afastado tanto.
Já se aproximava do carro quando uma voz fria rompeu o silêncio:
- Peguem o pecador!
O viajante chegou aos tropeções e não se atreveu a procurar o dono da voz.
Sandro esbarrou na porta e tomou uma pontada de dor no quadril quando a atingiu. Pulou para o banco, a mão saltou para a chave e os dedos atropelaram uns aos outros. O rádio continuava a entupir o ambiente com música, porém não abafou o chiado que Sandro deu quando não escutou o ronco do motor.
Investigou o horizonte e viu que uma silhueta surgiu na beira da estrada e se aproximava.
-Vamos! Vamos! - berrava para o carro.
Girou a chave.
Inércia.
Fechou os olhos e os manteve assim como se pra negar que o inimigo avançava.
Girou a chave outra vez.
O motor sustentou o rugido por um tempo e morreu.
Sandro abriu os olhos a tempo de ver o vulto empunhar algo que brilhava. O caminhar do vulto era lento, mas existiam outros vultos camuflados pela plantação.
Sandro tentou dar a partida.
Fracassou.
Então o ribombar de trovões percorreu a rodovia numa explosão seca.
Os vidros (do parabrisas traseiro e do lado do carona) estouraram. Lançaram pequenos diamantes que resvalaram no rosto e mãos de Sandro.
Os tiros erraram o alvo por pouco e Sandro gritou ensandecido - numa coincidência infeliz - ao mesmo tempo em que Freddy Mercury soltava a voz no rádio.
O motorista usou o punho para calar a música. Voltou a olhar adiante e viu que o inimigo havia diminuído a velocidade. Já os que permaneciam ocultos no milharal (o som das palhas denunciava que andavam entre as fileiras) continuavam lá. Preparando mais tiros, pensou.
Sandro agarrou a chave no último fio de esperança e a girou.
Gritou quando o motor ronronou por alguns segundos e mudou para um rosnado. Bateu a porta, acionou a embreagem, libertou o freio de mão e apertou o volante com as duas mãos. Atacou o acelerador ao mesmo tempo em que os trovões voltaram. Um dos disparos atingiu o capô e uma fumaça branca começou a alçar vôo de lá.
O viajante não desisitiu.
Trocou a marcha e deixou que o Fiat devorasse o chão sob seus pneus.
O carro saltou do acostamento para o asfalto e avançou como um torpedo. Devorou a distância entre Sandro e o atirador numa explosão de fúria metálica.
Outro disparo veio e o pneu dianteiro estourou.
Sandro apertou o volante até os nós dos dedos ficarem brancos como giz. Esticou o corpo para trás afundando-o no banco e enfiou o pé no freio.
Tentou desviar da mulher e poupar aquela barriga enorme sob o vestido (aquela gestação já completava quantos meses?) e quem sabe não ser culpado por mais duas mortes.
Mas não houve tempo hábil.
O carro deslizou na pista.
O corpo gordo rodou pelo capô e atravessou de costas o parabrisa. Ficou entalada com as gostas dilaceradas.
As mãos inchadas da ruiva tentavam se fixar no ar, talvez até alcançar o rosto do motorista com aquelas unhas pontiagudas.
Para o horror de Sandro a mulher gritava. De dor ou fúria. Ou ambos. Os cabelos vermelhos dançavam e tocavam a barriga banhada por cacos de vidro.
Os pneus travaram e o veículo partiu para o acostamento.
Invadiu o milharal.
O caminho entre as fileiras abria ao passo em que Sandro avançava.
As espigas arranhavam as laterais do carro e o som do encontro delas com o metal soava como metralhadoras.
O fiat percorreu alguns metros antes de encontrar algo robusto, no meio da plantação. Era a carcaça de um trator. O metal corrompido pela ferrugem e os pneus grossos serviram como freio.
O carro bateu de raspão, mas na colisão, Sandro afundou o rosto no volante e rompeu os lábios. A mulher foi lançada para frente num arco ascendente.
Caiu logo adiante. Estava imóvel.
Sandro limpou o sangue da boca com o dorso da mão e olhou por cima do ombro. Viu o rasgo que fez no milharal; a camada de folhas secas e espigas que forravam o caminho percorrido pelo carro desgovernado.
Ficou zonzo quando foi varrido por uma onda de dores. A pulsação vibrava dentro dos ouvidos, a respiração zumbia entrecortada pelos pulmões exaustos. O suor molhava a testa e descia até os olhos que faziam arder.
Saiu do carro e o bafo calourento do ar lhe destrinchou o rosto.
Desviou da porta e viu a mancha escarlate que escorria sobre o capô amassado. Viu que havia pedaços de couro cabeludo na lataria; filetes de sangue escorriam dela como lágrimas. Inclinou o corpo para o lado e deu a volta com a palma da mão tapando a boca.
De relance observou um rasgo no banco do carona, próximo à altura do pescoço e mais adiante outro, na do motorista.
Como numa mensagem subliminar, o cérebro de Sandro recebeu o recado enviado pelos olhos. Ele inclinou o pescoço num ângulo estranho e viu o sangue nascido do ferimento a bala.
A visão oscilou com a constatação.
A dor no ombro se tornou aguda. A umidade que descia da base do pescoço já deslizava por trás do antebraço e fluía pelas pontas dos dedos. Sandro fraquejou e caiu; o peito de encontro ao chão, a boca aspirou terra e folhas. O corpo explodiu em dor. Ficou deitado por um tempo. Respirar fazia o ferimento queimar.
Rastejou. A barriga lambia o chão úmido e acumulava sujeira sob a camisa empapada de sangue e suor.
O viajante usou os cotovelos e depois as mãos como alavanca para içar parte do corpo, pra só após um esforço hercúleo conseguir engatinhar. Com outro impulso ficou de pé.
Cambaleou.
O mundo girava como um carrossel desgovernado.
Os pés arrastavam terra e milho.
Pesavam como chumbo.
Tentou se afastar o máximo que pôde dos gritos que se aproximavam. Pensou na fração de segundo entre ele e a mulher grávida. Lembrou do volume sob o vestido dela e tentou expulsar em vão a imagem daquela gestação.
As pernas cederam ao cansaço e os joelhos dobraram.
Sandro caiu, as mãos apararam o peso do corpo e tocaram a terra úmida do milharal; ali o chão agia como areia movediça. Engoliu o braço do viajante até o cotovelo.
Sandro berrou. O odor que subia do solo não era mais de fertilizante. Era puro sangue. O cheiro acobreado embrulhava o estômago com o ardor repulsivo de morte.
O motorista fechou os olhos e desejou nunca ter saído de casa. Balançava a cabeça para os lados, a garganta seca de tanto gritar agora produzia o gosto de ferrugem.
E então, Sandro abriu os olhos. Estava caído, mas com os braços livre do chão. Devia ter tido alguma crise de ansiedade. Ou talvez...
Quando a ilusão se desfez e Sandro caiu em si, já havia alguém de pé diante dele.
CONTINUA...
TOTAL DE PALAVRAS: 1731
TABELA: VERÃO
PALAVRA/TEMA: SONO
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