due - limiti
Kim Taehyung
A vida, eu decidi, é uma partitura em que alguém insiste em trocar o compasso a cada dois minutos. São 7h14 da manhã, e eu estou de joelhos no chão do corredor, negociando com uma criança de quatro anos que olha para um tênis roxo como se ele fosse o seu maior inimigo. Yumi encara o sapato como se fosse um artefato alienígena, e eu, o grande filósofo das manhãs caóticas, pergunto-me se Platão já teve que lidar com algo assim antes de escrever sobre A República.
— Yumi-yah — digo, segurando o tênis número 23 como uma bandeira de rendição —, você prefere ir de meias para a escola? Porque eu juro por Deus que eu não me importo.
Ela balança a cabeça, séria, e aponta para a mochila da Bluey pendurada na cadeira. Dentro dela, além do estojo com lápis que ela quase nunca usa, está o abafador de ruídos — nosso escudo contra o mundo. Yumi odeia lugares barulhentos, e eu, o hipócrita que ensina música para crianças, entendo-a perfeitamente. O mundo é barulhento. E dissonante.
No caminho para a escola, enquanto estava segurando a sua mão como se fosse um pássaro prestes a voar, penso nos meus próprios limites. Sou professor de música, sim, mas também sou um mestre em disfarçar crises existenciais com acordes maiores. Enquanto Yumi caminha devagar, coletando pedras do chão e guardando-as no bolso do meu casaco (uma coleção geológica que já inclui 73 exemplares), lembro-me da mãe dela. Ela amava Chopin. Tocava Nocturne Op. 9 no piano do apartamento minúsculo onde dividimos por pouco tempo, antes dela decidir que a maternidade era uma ópera trágica demais para seu gosto. Yumi herdou o ouvido dela. E o meu desespero.
A escola é um prédio baixo, pintado com cores que tentam compensar a falta de orçamento. Minha sala fica no final do corredor, entre a sala de arte — que cheira a tinta guache lavável e caos criativo — e o banheiro — onde, eu suspeito, metade das minhas partituras desaparecem. Yumi se agarra à minha perna quando entramos, mas eu já estou em modo Professor Kim, a versão de mim que sorri, acena e finge que dorme mais de quatro horas por noite.
— Hoje vamos falar de Mozart! — anuncio para a turma de crianças de cinco anos que me encara com olhos sonolentos. Um menino na primeira fileira pergunta se Mozart era um dinossauro. Quase, eu respondo mentalmente.
Enquanto as crianças batem palmas descompassadas ao som de Eine kleine Nachtmusik, eu observo Yumi na sala de frente a minha, a com a porta aberta, através do vidro fosco. Ela está sentada no cantinho da leitura, abraçando o abafador como se fosse um ursinho de pelúcia. A professora dela, a Sra. Ji, tenta convencê-la a experimentar um biscoito de arroz. Boa sorte, eu penso, conhecendo demais aquele olhar teimoso. Yumi só come o que cabe em seu mapa mental de segurança: cores neutras, texturas previsíveis, sabores que não ousem surpreendê-la.
Minha aula segue. Explico que Mozart compunha antes de saber amarrar os sapatos, e as crianças riem, imaginando um bebê de peruca branca tocando harpa. Eu não conto a elas que Mozart morreu pobre e doente, porque a infância é a última fronteira onde a verdade ainda pode ser editada.
É quando a supervisora, a Sra. Park, entra na sala com Yumi no colo. Meu coração para. Yumi está chorando — não o choro estridente das birras, mas o silencioso, que faz seu rosto ficar vermelho e suas mãos se contorcerem como asas quebradas.
— Ela tentou morder a professora — sussurra a Sra. Park, como se estivesse relatando um assassinato.
Seguro Yumi contra meu peito, seu choro abafado pela minha camisa. Cheira a banana madura e lápis de cera. O que aconteceu?, pergunto-me, enquanto acaricio seu cabelo embaraçado. A Sra. Ji aparece na porta, segurando um quebra-cabeça com peças faltando.
— Ela não quis usar o avental novo — explica, mostrando um pedaço de tecido estampado com coelhinhos. Yumi odeia texturas novas. Eu sabia disso.
— Coelhinhos são democráticos demais para o seu gosto — murmuro, sarcástico, mas minha voz falha no final. Yumi enterra o rosto no meu pescoço, e eu sinto o peso de todas as escolhas erradas que trouxeram ela até aqui: minha insistência em mantê-la na mesma escola em que eu trabalho, minha teimosia em acreditar que eu dou conta de tudo sozinho, minha incapacidade de ser Chopin e pai.
A Sra. Park sugere que eu a leve para casa. Em vez disso, sento no chão da sala de música, Yumi no meu colo, e começo a tocar Clair de Lune no piano velho. Não é Mozart, não é Chopin — é Debussy, uma música que a mãe dela odiava. "Soa como chuva em um dia de sol", ela dizia. Yumi para de chorar aos poucos, a sua respiração se acalmando no ritmo das notas.
Quando a última vibração do piano se dissolve no ar, ela aponta para as teclas.
— Appa — sussurra.
— Sim, querida?
— ...Banana.
Sorrio, porque é assim que sobrevivemos: um acorde de cada vez, uma banana de cada vez.
Enquanto caminhamos até a cantina, carregando nosso fruto amarelo e amassado, percebo a Sra. Park observando-nos de longe. Deve estar pensando que sou um pai incompetente, um professor medíocre, um fracasso ambulante. Mas hoje, por enquanto, Yumi está comendo.
E, como diria Nietzsche: "Sem música, a vida seria um erro"
Ainda bem que temos Debussy.
O consultório de Evelyn Lee cheirava a bergamota e papel velho. Eu me sentei na poltrona de couro desgastado, as minhas mãos apertando os joelhos como se fossem fugir se eu as soltasse. Não era o meu território. Preferia as salas de aula, onde eu ditava o ritmo, ou meu apartamento, onde as partituras desorganizadas eram a única lei. Ali, porém, era um palco sem partitura, e Evelyn, a plateia que eu não sabia como decifrar.
— Obrigada por vir, Taehyung-ssi — ela disse, sentando-se na cadeira oposta com um caderno no colo. Seu sorriso era suave, mas seus olhos — aqueles olhos que desapareciam quando ela sorria, como se estivessem guardando segredos — me observavam com uma intensidade que me fez ajustar a gola da camisa.
— Não é todo dia que uma terapeuta me convence a deixar Yumi com a avó — respondi, tentando disfarçar o desconforto com sarcasmo. — Principalmente quando a avó acha que macarrão com ketchup é um alimento adequado para uma criança com seletividade alimentar.
Evelyn riu, um som baixo e quente, e anotou algo no caderno. Ela está me analisando agora?, pensei, imaginando se ela desenhava rabiscos freudianos ou lista de compras.
— Não se preocupe, não sou fã de interpretar sonhos com cobras — ela disse, como se lesse meus pensamentos. — Prefiro ouvir. Como tem sido para você, Taehyung-ssi, ser pai e professor ao mesmo tempo, e tão jovem?
A pergunta me pegou desprevenido. Esperava perguntas sobre Yumi, sua alimentação, seu autismo. Não sobre mim.
— É como tocar um concerto de piano com luvas de boxe — respondi, os dedos tamborilando no braço da poltrona. — Você sabe a teoria, mas a prática... a prática é uma sequência de erros gloriosos.
Ela inclinou a cabeça, interessada.
— Erros gloriosos?
— Sim. Como quando a Yumi tinha dois anos e decidiu que o vaso sanitário era um aquário. Ou quando tentei ensinar crianças de cinco anos a diferença entre Beethoven e Baby Shark. — Fiz uma pausa, encarando o quadro na parede atrás dela — uma pintura abstrata que parecia um borrão de sentimentos. — Acho que eu fracassei nas duas lições.
Evelyn não corrigiu meu uso da palavra "fracasso". Em vez disso, perguntou:
— E quando foi a última vez que alguém perguntou como você está?
O relógio na parede tique-taqueou por três segundos inteiros. Eu contei.
— Yumi me pergunta todos os dias — menti, olhando para as mãos. Na verdade, Yumi não perguntava. Ela tocava o meu rosto quando me via cansado, ou encostava a cabeça no meu ombro. Era a sua forma de perguntar.
Evelyn sorriu, como se soubesse da mentira, e mudou de assunto:
— Você mencionou que lê sobre psicologia. O que te interessa no tema?
Encostei-me na poltrona, lembrando das pilhas de livros em meu quarto — Jung, Vygotsky, até mesmo um guia de terapia cognitivo-comportamental que eu comprara numa promoção.
— Acho fascinante como vocês tentam categorizar a mente humana — disse, o sarcasmo voltando como uma armadura. — Como se a loucura pudesse ser organizada em capítulos. Freud diria que minha fixação por música clássica é um desejo reprimido de voltar ao útero, não?
Ela riu novamente, desta vez com uma gargalhada que fez seus olhos desaparecerem completamente. Era... cativante.
— Freud também dizia que charutos são símbolos fálicos — respondeu, erguendo uma caneta. — Mas eu prefiro acreditar que um charuto é só um charuto. E que um pai que lê Freud para entender a filha... é só um pai extremamente dedicado.
A frase me atingiu como uma nota sustentada no piano. Fiquei em silêncio, observando-a folhear o caderno com calma. Ela não pressionava, não julgava. Apenas existia ali, como um acorde menor que você não percebe até ele mudar a música toda.
— Por que você escolheu isso? — perguntei, mudando o foco para ela. — Psicologia infantil. Deve ser... meio ingrato.
Ela parou de escrever e olhou para a janela, onde a luz da tarde desenhava sombras no chão.
— Quando eu era adolescente — começou, voz suave —, eu odiava o meu próprio corpo. Odiava o jeito que as pessoas me olhavam, como se eu fosse um problema a ser resolvido. Um dia, conheci uma terapeuta que me fez entender que meu corpo não era o inimigo. — Ela voltou a olhar para mim, os olhos amendoados brilhando. — Queria ser essa pessoa para alguém.
A confissão me surpreendeu. Esperava uma resposta genérica sobre "ajudar o próximo", não uma história que ecoava as minhas próprias cicatrizes.
— E funciona? — perguntei, mais para mim do que para ela.
— Nem sempre — ela admitiu. — Mas às vezes... às vezes uma criança pega sua mão durante uma sessão, ou um pai percebe que não está sozinho. E isso basta.
O relógio marcou o fim da sessão. Eu me levantei, sentindo o peso daquela hora de exposição como se tivesse corrido uma maratona. Evelyn entregou-me um cartão com o seu número.
— Para emergências — disse. — Ou para conversas sobre Freud após a meia-noite.
Saí do consultório com passos mais leves do que entrei. No metrô, a caminho de buscar Yumi, eu repassei cada palavra. Ela não tentara consertar-me, nem dar lições. Apenas ouvira. E, de alguma forma, aquilo doía mais do que qualquer julgamento.
Ao ver Yumi correndo em minha direção na casa da avó, com uma banana na mão e um sorriso raro, entendi o que Evelyn quis dizer com "isso basta".
Talvez, pensei, enquanto segurava minha filha no colo, alguns erros gloriosos valham a pena.
Afinal, até Chopin tinha dias desafinados.
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