Swing da Cor
"Não, não, não.
Não me abandone
Não me desespere
Porque eu não posso
Ficar sem você!"
Aquela maldita música soava novamente pela cidade e invadia os ouvidos da delegada Taise Freitas, como se tivesse sido lançada há dois dias e não há mais de duas décadas.
A delegada olhava para o corpo daquele jovem, todo perfurado, sobre a maca de alumínio do Instituto Médico Legal de Salvador. Junto às perfurações havia um corte grande abaixo do peito. O corpo já fora limpo superficialmente, por isso notava-se sua profundidade.
— Não pode ser coincidência! — disse, em voz alta, mas queria ter apenas pensado.
— Oi? — perguntou, um legista que fazia umas anotações.
— Pensando alto, doutor. São quantas perfurações, já tem esse dado? Eu preciso ver como está por dentro também, vai demorar muito para abrir?
— Não, estou terminando aqui, e já abro — avisou, terminando sua anotação e acenando para o assistente, que estava afastado digitando algo no computador.
— São vinte e cinco perfurações, doutora! — garantiu o médico.
O homem pegou uma caneta e demarcou a região a ser cortada no tórax; com o bisturi liberou a pele e depois pegou uma serra com a qual cortou os ossos das costelas para ter acesso ao interior do corpo do jovem morto, e como Taise suspeitava, seu coração não estava ali.
De cenho franzido, o médico olhou para a delegada, que suspirou e pegou luvas. Enfiou a mão para procurar algo a mais, mas notou que haviam retirado apenas o coração.
— Era disso que estava falando, doutora?
— Sim. Há vinte e cinco anos eu fiz minha tese sobre um serial killer que nunca foi pego. Todos os anos, nesta mesma época, sete cantores de axé são assassinados... desta mesma forma, com estas características. Minha tese foi aceita porque investiguei, mas ninguém acreditava que se tratava de um assassino em série.
— Ano passado recebi algo do tipo, mas não era cantora de axé, eu me lembro bem...
— Era compositora, doutor. Acho que para o assassino não importa muito o cantor em si, mas a música.
Ficou mais um tempo observando e depois saiu, deixando recomendações ao médico, pois era o primeiro dia oficial de carnaval na capital baiana.
Taise era uma negra altiva, imponente, que quando colocava uma ideia na cabeça ia até o fim, porém, quando se formou e começou a trabalhar como delegada, viu que havia algumas limitações. Mesmo com todas aquelas evidências, os primeiros assassinatos de cantores de axé de Salvador tiveram seus processos arquivados.
Na época, aquelas mortes chamaram sua atenção, aquilo não podia ser coincidência, 15 mortos, e todos eles, cantores de axé ou envolvidos com o estilo musical.
Lembrou-se de quando aquele assunto chamou sua atenção pela primeira vez, estava finalizando seu doutorado e precisava de uma boa tese para defender.
"Não, não, não.
Não me abandone
Não me desespere
Porque eu não posso
Ficar sem você!"
— Estão assassinando os cantores de axé em Salvador! — disse uma moça na rua; ela queria chamar a atenção de quem passava. — Cadê as autoridades que não veem isso, quantos mais precisarão ser mortos para essa atrocidade ser investigada?
Taise ficou intrigada com aquilo e resolveu investigar, como não tinha autonomia para fazer uma inquirição legal, fez sozinha e descobriu a ligação com os demais crimes e notou que aquela mulher tinha razão.
Entre estudar, fazer doutorado e prestar concurso para o cargo de delegada, Taise investigou mais a fundo e ficou atenta aos carnavais da capital baiana.
E todo ano era a mesma coisa, um cantor de axé morto para cada dia de carnaval. E quando ela começou a sentir falta do coração nos corpos, passou a ter certeza da série de assassinatos.
— Por que não matam em outras ocasiões? Como micaretas, baiano escuta axé em casa. Isso não faz o menor sentido — disse seu superior, que não acreditava muito na ideia de haver um assassino em série na Bahia.
— Porque ele mata quem está ligado à produção do estilo — Taise disse, mas não acreditava muito em sua teoria. — Só pode ser.
— A senhorita está tentando abrir uma investigação desse porte com base em suposições?
— Ok, isso é uma teoria, mas não podemos esperar a próxima chacina, no próximo carnaval, para ter certeza disso — disse, categórica, e saiu furiosa quando teve o pedido negado.
Ao sair foi à procura da mulher que falava sobre o assunto na rua, mostrou seu distintivo e a chamou para uma conversa, levando-a a uma lanchonete.
— Desculpe, eu não queria fazer nada de...
— Não precisa se desculpar de nada, garota. Só quero informações sobre os assassinatos dos cantores de axé. Não é um interrogatório, é algo informal. O que sabe sobre isso? Tenho tentado conseguir apoio para iniciar uma investigação, mas está difícil sem algo concreto.
— Eu só notei que no carnaval sempre morrem alguns... — disse, reticente. — A manchete é sempre a mesma — fez um gesto com as mãos como se mostrasse um cartaz no ar: — "Encontrado corpo de cantor de axé..." eles nem falam mais os nomes das pessoas, só os associam ao fato de serem cantores de axé.
Taise franziu o cenho e passou a observar aquela mulher à sua frente.
— Você não é moradora de rua, o que faz da vida? Por que se interessou por este caso? É jornalista?
— Eu... sou... — Coçou a cabeça e esfregou uma mão na outra. — Sou a Sheila, sou jornalista sim, mas não atuo na área. Só quero justiça — confessou e se levantou, sendo observada pela delegada.
— Não mandei sair, Sheila — enfatizou o nome dado pela mulher, que se virou e encarou a delegada.
— Achei que não fosse um interrogatório.
— Por que está com tanta pressa? Posso levá-la para depor na delegacia, se preferir...
— Com base em que faria isso, delegada? Sou só uma ativista de rua que quer justiça. Se eu soubesse de algo 'concreto' já teria falado, não acha?
Taise concordou com a cabeça, respirou fundo e viu a mulher sair. Sabia que precisava fazer algo, pois Sheila tinha razão, mas algo lhe dizia que aquela mulher mentia em alguma coisa.
— Fiquem de olho nela — ordenou a dois policiais, que descobriram que ela era irmã de um cantor que fora encontrado morto dois anos antes e nunca encontraram o assassino.
— Isso é sério?
— Sim, ela era irmã de um cantor. Já foi presa por vandalismo, quebrou a vitrine de uma loja que estava vendendo CD pirada com as músicas do irmão. Ele compunha também, muitos cantores gravaram músicas dele.
— Resumindo: é problemática, mas está mesmo em busca de justiça, tem um motivo forte pra isso. Tragam-na, preciso conversar com ela, mas aqui, de forma oficial — ordenou e sentou-se em sua cadeira.
Sheila foi levada à delegacia e encarou Taise de forma arrogante.
— Bom dia, senhora Sheila. Podemos conversar sem que você saia correndo?
— Não tenho nada para dizer, delegada. Não sei por que cismou comigo...
— Você chegou à conclusão sobre as mortes como?
— Vejo jornal.
— Sheila, por favor. Para se iniciar uma investigação é preciso algo a mais...
— Eu não sei de nada mesmo, delegada. Perdi o meu irmão há dois anos e nunca teve justiça, só enlouqueci, larguei emprego, larguei tudo para procurar quem o matou e até agora nada.
— Olhe, Sheila, nesses dois anos, foram 14 mortos da mesma forma que ele. Um para cada dia oficial de carnaval.
Sheila marejou os olhos, ainda sentia muito a falta do irmão, e lutaria até o fim para descobrir quem o matou.
— Eu leio jornal, delegada. Estou atenta a tudo. O meu irmão tinha uma carreira de sucesso. Apesar de estar iniciando como cantor e ser pouco conhecido. — Não se conteve e foi às lágrimas. — Você não sabe o que é perder um irmão e vê-lo numa situação daquela. Até hoje a polícia não encontrou quem arrancou o coração dele.
Sheila chorou muito, Taise pegou lenços de papel e entregou à mulher.
— Se acalme, vá. Eu quero encontrar o desgraçado que matou o teu irmão e todos esses cantores que foram encontrados mortos depois.
Depois de conversar com aquela mulher, que se mostrou nervosa demais ao se lembrar do irmão, Taise a liberou e pediu para um policial levá-la em casa. Porém, quando estava indo embora, viu Sheila sentada em um banco de praça, com várias pessoas por perto curtindo o carnaval baiano.
— Sheila?
— Oi...
— Está tudo bem?
— Sim.
Taise respirou fundo e estacionou o carro ali mesmo para poder falar com a ativista de perto.
— Você não foi pra casa e não está se divertindo, o que houve?
— Não tenho pra onde ir, delegada. Agora sou oficialmente uma moradora de rua. Está muito difícil ficar ali sem ninguém mexer comigo. ― Apontou com a cabeça para a multidão.
— O que aconteceu, Sheila?
— O meu pai perdeu a casa e se mandou.
Taise revirou os olhos por se comover e acabou levando a mulher para sua casa. Sheila era a única ligação com o assassino dos cantores, pois era próxima a possível primeira vítima.
Conversaram mais e Taise conseguiu notar que Sheila era apenas uma jovem abalada pela morte precoce do irmão.
— Você bebe? — indagou, pegando uma garrafa de vodca.
Beberam, conversaram, e ao tentar se levantar, Sheila caiu sobre Taise, que riu, mas notou a beleza daquela mulher por trás daquele rosto sofrido em busca de justiça.
Taise umedeceu os lábios e se notou sendo observada pela jornalista, que ofegava levemente. Sheila apoiava as mãos no chão, olhou para a boca da delegada e a beijou, fazendo-a corresponder, cheia de desejo.
Estavam deitadas no chão, sobre um tapete felpudo. Taise sabia que não podia fazer aquilo, mas o desejo não permitiu que ela pensasse direito e despiu aquela mulher ali na sala da sua casa mesmo.
Sheila se livrou das roupas da delegada, que já agia em sua região íntima.
Taise sentiu os dentes da jornalista cravando em seu ombro quando a penetrou com força. Os movimentos com a mão, fizeram a ativista gemer alto, ecoando pela casa e se misturando aos sons de axé que vinham de fora.
Depois daquele dia, elas mantiveram um relacionamento intenso de sexo e brigas frequentes.
— É o tipo de relação que não acaba nunca, mas também não começa nunca, essa porra! — comentou com uma colega.
Naquelas mais de duas décadas, Taise não se aproximou um centímetro do assassino dos cantores de axé. Quando achava que estava perto, era impedida por alguma ordem superior e o caso ficava para depois.
Saiu do IML naquele dia e deixou a polícia inteira a postos, pois sabia que aquele jovem era apenas o primeiro daquele ano.
— Esse assassino vai ser parado essa semana ou entrego meu cargo.
— Você se dividiu esse tempo e não conseguiu, Taise, acha que vai conseguir agora por quê?
— Alfredo, vai procurar o que fazer! — mandou e pegou todo o material do assassino dos cantores de axé.
Levou tudo para casa e espalhou em seu escritório, colando todas as fotos na parede.
— 163! — repetiu, olhando para todas aquelas fotos das vítimas coladas nas paredes. — Seu filho da puta! Dependendo da sua idade no primeiro assassinato, deve estar coroa hoje, então estou à procura de alguém de meia idade. Em 1995 fez sua primeira vítima... — disse, como se conversasse com o assassino.
Pegou uma garrafa de água e tomou, sem parar de olhar para a parede.
— 1996 fez mais sete vítimas... — Franziu o cenho, olhando para as vítimas de 96. — Anda, fala comigo, seu desgraçado. — Pegou uma cadeira e se sentou ali na frente, girava sempre que queria encarar alguma vítima de algum ano específico.
Quando Sheila chegou à casa de Taise, assustou-se, ao ver todas aquelas fotos, e a delegada sentada numa cadeira, observando-as.
— Taise?
— Oi... Achei que nem viesse mais aqui, saiu toda estressada de manhã.
— Só sou esquentada, Taise, não começa — disse, ignorando o que ela pudesse dizer depois, e saiu.
Quarenta minutos depois, Sheila voltou ao escritório da delegada e ela ainda estava lá.
— Está aí desde quando, mulher?
— De manhã. Pedi um afastamento para me dedicar a essa investigação, vou pegar esse desgraçado ou não volto mais para aquela delegacia.
— Você enlouqueceu de vez? Ficou doida. Vai entregar o cargo por causa disso?
— Não, porque vou pegar esse maldito!
— Não comeu nada?
Ainda olhando para as fotos, esticou o braço e pegou uma caixa de pizza estendendo para a jornalista.
— Arg, vou fazer comida de verdade... — avisou e saiu do escritório.
Sheila se mudou para a casa de Taise no dia que elas ficaram pela primeira vez, mas sempre vivia livre. A delegada não a prendia, tinha uma relação aberta, mas nenhuma se relacionava com outras pessoas. Depois de dois anos morando com a delegada, Sheila foi chamada para escrever uma coluna em um jornal pequeno, passou uns meses como freelancer e depois foi contratada.
Estava na cozinha da casa de Taise, cozinhando e pensando. Jamais, em toda a sua vida, teria imaginado aquele momento... Quase vinte anos casada com uma mulher da lei.
Taise já havia relido todos os relatórios e quando pegou para ler de novo, sentiu um gostoso cheiro de comida vindo da cozinha e resolveu sair daquela ilha de mortos.
— Que bom que saiu daquele lugar horrendo! — disse, puxando-a pelo queixo e a beijando sugado.
— Esse cheiro que me trouxe aqui! — confessou, sentando-se para se servir e comer direito.
Conversaram sobre outras coisas, até que Taise cruzou as mãos na frente da boca e ficou observando aquela mulher à mesa.
— E sua investigação, como anda?
— Sem avanço. O jornal só se interessa por coisas frescas. Não tenho tido muito tempo para investigar a morte do meu irmão.
Taise sabia que, dependendo de como ocorreu a morte do irmão dela, aquele crime já havia prescrito, mas não disse nada.
Sua relação com Sheila era conturbada, mas ela não se via sem a jornalista. Ajudava sempre, como podia, principalmente quando ela voltou ao mercado de trabalho.
— Acho loucura você colocar seu cargo em jogo.
— Fica tranquila, Sheila, não vamos passar fome. Eu sou advogada, mas quero me tornar juíza. Então, estou jogando...
Sheila sorriu, sentindo orgulho dela. Naquela noite foram para a cama como se tivessem ganhado um prêmio. Era a primeira vez que Taise colocava aquela investigação em primeiro lugar.
— Quero começar do começo, Sheila!
— Toma... — entregou a pasta com o que tinha do irmão à delegada, que sorriu. — Acha esse desgraçado e eu caso contigo.
— Oxe, e quem disse que quero me casar? — brincou, pois sempre quis aquela pasta e Sheila nunca a disponibilizou por medo de ser retida como os demais arquivos daquele caso.
— Vai querer sim, está me enrolando demais. — Deu um beijo na boca carnuda da amada e saiu.
No final do dia, voltou para casa e foi ao escritório de Taise. Começou a ofegar ao ver mais coisas espalhadas e uma foto junto com a sua pasta. A jornalista foi às lágrimas, um meio sorriso se formou em seu rosto e saiu correndo, pegando apenas sua bolsa.
Taise saiu do banho e correu ao closet; vestiu-se rapidamente, pegou o celular e ligou para Alfredo.
— Peguei, Alfredo! A chave de tudo estava com a Sheila o tempo todo — disse, enquanto calçava um sapato. — Estou saindo de casa agora, te espero lá, vou te mandar a localização.
— Como assim a chave, Taise? Do que está falando?
— Valdirene Silva!
— O quê? Aquela louca que agrediu a mulher do amante dela?
— Essa mesma, uma passagem apenas por agressão, mas quase duzentas vítimas — disse e pegou seu coldre.
Passou pela cidade em alta velocidade, com duas viaturas de reforço logo atrás dela.
Xingou, furiosa, ao chegar à casa de Valdirene e não encontrar nada.
— A desgraçada fugiu, Alfredo! Que inferno! Espalha pelo país inteiro, foto, tudo. Pede bloqueio de tudo que ela tiver.
Naquela noite, a delegada chegou em casa quase meia-noite. A casa estava silenciosa, escura. Respirou fundo e sentiu um cheiro peculiar, pegou sua pistola e entrou, devagar.
Emitiu um grito de susto ao ver sobre sua mesa, em uma bandeja de inox, a cabeça de Valdirene, sobre uma pequena poça de sangue.
Com o coração querendo sair do peito em alta velocidade, Taise olhou em volta, tudo estava intacto, mas sabia quem havia feito aquilo. Pegou o telefone e ligou para Sheila.
— Atende, caramba! — Caiu na caixa postal. — Sheila, onde você está? Vem pra casa. — Deixou o recado e ficou ali parada.
Seria muito fácil abafar aquele caso para proteger Sheila, mas precisava saber onde a namorada estava e como estava, pois, com certeza, vira a conclusão de sua investigação e foi acabar com aquilo.
Pegou um balde e colocou aquela cabeça com um sorriso de dor nos lábios, não podia mais pensar sequer em sair e deixar aquilo ali. Precisava dar um fim no corpo completo.
Seu celular tocou, ela atendeu imediatamente achando se tratar de Sheila:
— Sheila, venha pra casa, por favor.
— Taise? Alfredo. Corra pra delegacia, pelo amor de Deus. — Notou um imenso nervosismo na voz do colega e, sem saber o que fazer, levou o balde com a cabeça consigo.
O corpo de Valdirene fora entregue dentro de um freezer horizontal de duas tampas, uma delas aberta, na porta da delegacia.
— O que aconteceu, Alfredo?
Alfredo tinha a mão na boca, observava aquele objeto ali. Olhou nos olhos de Taise, que chegou perto e ao levantar a tampa emitiu outro grito.
— Que porra é essa?
— Acabou de chegar, um caminhão que não conseguimos alcançar deixou aqui e vazou, avançando todos os sinais. Já tentamos ver para onde foi pelas câmeras de segurança da cidade e não deu certo.
Além do corpo de Valdirene, havia dentro do freezer mais 162 corações.
Alfredo entregou um papel sujo de sangue para a delegada, que ofegante, recebeu e leu.
Nunca quis nada disso, mas quando vi a morte do meu irmão ser esquecida, por ele não ser tão famoso, passei a matar e fazer igual essa desgraçada fez, só porque ele não quis mais nada com ela, para, quem sabe assim, você começasse a investigar de verdade. Parei por aqui, estou indo embora e não sei onde vou parar!
Taise pegou o balde com a cabeça e colocou junto com o corpo. Tinha lágrimas nos olhos e tremia incontrolavelmente.
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