Home Care
Cheguei à casa da família Restini em outubro de 2005, para ajudar nos cuidados da piloto de Stock Car, Kelly Restini, que sofreu um acidente durante uma corrida e ficou em coma.
Eu trabalhava em escala de plantão e dividia o trabalho do dia com outra técnica em enfermagem, a Dilza, uma mulher de quase sessenta anos, sisuda e de poucas palavras.
— Ela é uma ótima funcionária, mas a pessoa e a profissional não podem se misturar, caso contrário, não fica aqui. — comentou Nicole, esposa de Kelly, no dia em que estava me apresentando à casa e ao filho Hugo de oito anos.
— Que bom que é ótima funcionária, né? É bem difícil encontrar bons profissionais.
— Você tem razão. — Virou-se para mim e indagou: — E então, Emanuela, o que achou? Eu recebo indicações da agência, mas sempre pergunto sobre as intenções da pessoa.
— Eu achei ótimo. Começo quando a senhora quiser.
— Não precisa me chamar de senhora. — pediu, sorrindo, e estendeu a mão para a pasta que eu segurava. — Vou resolver a contratação e você começa o período de experiência na segunda, pode ser?
— Claro. — Estendi a mão e apertei a dela.
Resolvi tudo e me preparei para iniciar o trabalho naquela mansão num bairro nobre do Rio. Como a carga de trabalho seria de doze por trinta e seis, eu poderia trabalhar em outro lugar seguindo a mesma escala, então deixei avisado na agência que poderia pegar outro paciente.
Depois de duas semanas que eu havia começado, a Dilza avisou que sairia do plantão da noite. Vi Nicole preocupadíssima e avisei que ficaria no lugar da mulher até ela conseguir outra pessoa.
— Muito obrigada, Emanuela! — falou, segurando as minhas mãos.
Comecei aquela rotina dobrada e me adaptei rápido. Nicole cuidava muito da esposa, então a noite era tranquila e eu praticamente só ajudava. Era dedicada e apaixonada.
O quarto onde Kelly ficava era todo equipado com o que tinha de melhor e mais moderno na área médica. Eu poderia jurar que tinha uma unidade de tratamento intensivo ali só para cuidar dela, caso precisasse.
Nicole me chamou para acompanhar uma entrevista com uma possível técnica que ficaria no turno da noite e avisei que se ela quisesse eu poderia continuar com os dois plantões sem problema. Notei que ela gostou da atitude, pois deu um sorriso aliviado e entrou no escritório para falar com a candidata.
Certa noite, resolvi usar o meu intervalo para descansar no jardim, enquanto olhava as estrelas e ouvia uma música no celular. Procurei um local mais escuro e fiquei ali, pensando na vida e curtindo minhas músicas preferidas.
— Faz o que aí sozinha no escuro? — Nicole apareceu perto da piscina e me viu sentada perto de um arbusto.
— Tava pensando na vida. — respondi e saí da penumbra.
— Aceita? — Apontou uma garrafa de vinho e neguei com a cabeça.
— Obrigada. Horário de trabalho!
Ela deu uma estalada de língua meio desaforada e se levantou para pegar uma taça no barzinho ao lado. Serviu duas taças e se sentou numa espreguiçadeira.
— Eu fazia isso toda noite com a Kelly. Ela ama vinho. Nós costumávamos passar madrugadas aqui conversando, relembrando ou apenas apreciando a companhia uma da outra em silêncio. — Notei o olhar dela molhar e disfarcei.
— Vocês estão juntas há quanto tempo?
— Oito anos. Ela está assim há sete meses e parece que foi semana passada. Ainda dói muito.
— Nossa! Não consigo nem imaginar o tamanho da dor. Quem gerou o Hugo?
— Eu, com os óvulos dela.
— Mas... — franzi o cenho ao me dar conta de que o menino tinha a mesma idade que o relacionamento delas.
— Sim, eu fui barriga de aluguel dela e nos apaixonamos quando eu estava grávida, vivendo com ela em Los Angeles. Fazia parte do acordo.
— Nossa!
— Eu estava precisando muito de dinheiro para voltar para o Brasil, aí uma amiga minha me falou de uma agência, eu me inscrevi.
— O Hugo juntou vocês — divaguei, sorrindo.
— Kelly sempre dizia isso. Ela queria um filho, mas não queria engravidar no auge da carreira. Eu fiquei encantada com a dedicação dela. Eu não tinha nem barriga ainda e ela já falava com o Hugo. — Engoliu seu vinho e serviu mais.
— Adoro essas histórias de amor assim!
— Nosso primeiro beijo foi no dia do nascimento do Hugo. Ela ficou tão feliz quando o segurou no colo que me beijou na boca, por cima da máscara de proteção. Depois fitou os meus olhos e entendi naquele momento que aquele era o nosso início.
— Ah, que lindo! — Me derreti toda ao saber daquilo. — E aí?
— E aí, que como já estava morando com ela, nem fui embora depois do período de adaptação do bebê. Ela tirou uma licença de seis meses para me ajudar a cuidar do Hugo e depois voltou às pistas como uma mãe e esposa apaixonada. Eu sempre achava que ela ia chegar em casa e se dar conta de que tinha se precipitado.
— Você era insegura?
— Muito. Eu tinha vinte e dois anos. Como o meu pai falava: completamente louca. Fui de carona estudar nos Estados Unidos. E um ano e meio depois tive um filho. — O riso dela saiu breve.
— Seu pai morreu?
— Sim. Dois anos depois que o Hugo nasceu. Ele era junto com a minha mãe, a minha base, sabe? Era pai de verdade, implicava muito com as minhas escolhas, mas no final me apoiava. Minha mãe me ensinou a cozinha aos cinco anos. Então aos dez eu já me virava em casa. Não ficava sozinha, mas não dependia de ninguém. Quando disse que iria estudar fora, eles me incentivaram. Só não bancaram minha ida por falta de condições mesmo.
— E como foi que rolou a carona?
— Uns amigos iam para a Disney. Planejaram tudo e entrei na onda de Disney. Só que eu consegui juntar somente o das passagens. Até o hotel eles pagaram. Uma amiga me deu uma mochila grande e enfiei umas roupas dentro, algumas coisas que precisaria e me mandei. Cheguei lá com oito dólares.
Eu ri de súbito e ela riu também olhando para o vazio como se relembrasse dos acontecimentos.
— Depois conheci a Kelly e minha vida mudou completamente. Tudo o que eu achava que queria foi substituído pelo que eu tinha certeza.
Aquilo me tocou como eu jamais imaginei que tocaria. Conversamos por mais algum tempo e depois entramos.
Aquele programa se repetiu algumas vezes. Quando chovia, nos reuníamos na sala de estar. Certa vez, conversamos no quarto de Kelly e Nicole contou mais momentos delas, enquanto hidratava e massageava as mãos da esposa inerte sobre a cama. Eu amava ouvi-la, pois sempre fui apaixonada por histórias de amores reais assim. Eu lia muito, mas os romances alcançáveis eram mais emocionantes.
Dois anos depois, a babá de Hugo adoeceu e precisei buscá-lo na escola, pois Nicole receberia o médico que examinaria Kelly. O menino era muito educado e inteligente. Além das aulas normais, fazia natação, artes marciais e cursos de idiomas e música.
— Você vai cuidar de mim também? — perguntou quando entrou no banco traseiro do carro.
— Só hoje, eu acho. A Délia ficou doente.
— Ah, sim. Que pena! A minha mãe adora seus cuidados. — Não entendi de qual mãe estava falando, mas resolvi não perguntar muito.
O motorista nos deixou em casa e avisou que precisaria sair, mas que voltaria para levar Hugo à academia.
Entramos na casa e pedi que Hugo tomasse banho para almoçar, e em seguida fui ao quarto de Kelly e vi que ele estava vazio. Franzi o cenho preocupada e procurei o nome de Nicole no meu celular. Quando ela saía com Kelly sempre avisava e, desta vez, não havia deixado recado nenhum.
— Nicole? — indaguei logo que atendeu. — O que houve? A Kelly está bem?
— Oi, Manu. Ela está do mesmo jeito. O médico fez uns exames e decidiu trazê-la para o hospital para exames mais detalhados. Tem uma médica de fora aqui e ela quer testar um procedimento.
— Ah, que susto! — Suspirei.
— Desculpa por não ter avisado. O Hugo está bem? Vou precisar que você fique com ele hoje, pode ser? Conta como extra.
— Claro, Nicole, não se preocupa. Ele está ótimo.
— Verifica a agenda dele, por favor. Qualquer dúvida, pode ligar. — Fez uma pausa e voltou a falar: — Muito obrigada, Manu.
— Não por isso. Boa sorte aí. Me dá notícias. Tchau! — Desliguei e fui procurar Hugo. Ao entrar no quarto o vi digitando rapidamente no celular. — Hugo?
— Oi — respondeu sem olhar para mim. — Estou falando com a minha mãe. Ela disse que mamãe vai fazer novos exames. Você acha que ela pode acordar? — perguntou me fitando.
Eu não soube o que responder. O celular apitou e ele voltou sua atenção para o aparelho. Depois de ouvir o que Nicole disse em um áudio, ele largou o celular sobre a cama e entrou no banheiro.
— Ei, o que houve? — perguntei da porta do cômodo enquanto ele tirava a camiseta do uniforme.
— É só mais um exame. — respondeu triste. — Sempre que elas saem eu fico ansioso esperando que a minha mãe acorde, mas sempre volta do mesmo jeito. Dormindo pra sempre.
— Ei, olha pra mim. — pedi e me aproximei dele. — Você acredita que a sua mãe vá acordar?
Ele apenas engoliu saliva e olhou para o chão.
— Acredito quando ela é levada para o hospital, mas nunca acorda. Já pedi inúmeras vezes e ela não me ouve.
— Vamos fazer uma brincadeira?
Ele me olhou de lado e franziu o cenho.
— Todos os meus desejos eu peço com muita força e envio para as estrelas.
— Não precisa falar como se eu fosse criança. Eu já sou grande.
— Mas é verdade — eu disse sorrindo. — Eu peço assim mesmo e envio para as estrelas. Antes de conseguir vir trabalhar aqui, eu pedi com força, pois precisava muito e queria muito algo fixo. Enviei para as estrelas e em menos de três — Mostrei a quantidade de dedos para ele e arregalei os olhos — meses eu vim pra cá.
— Como você fez isso?
— Com um negócio chamado fé!
— Minha fé não funciona. Minha mãe sempre volta ainda dormindo.
— Quando você acredita que a sua fé não funciona é porque você não tem fé de verdade.
— E como faz pra ter fé de verdade?
— Acreditando! E isso é prática. Eu comecei com pequenos pedidos. — Olhei a hora. — Toma banho que vou servir seu almoço, depois falamos mais.
Saí do banheiro e peguei a agenda dele, tinha artes marciais e aula de guitarra naquele dia.
Cuidei dele pelos dois dias que Délia ficou de atestado. A maioria das coisas ele fazia sozinho, então era tranquilo.
Nicole ia para casa apenas para tomar banho e trocar de roupa. Ficou o tempo todo com a esposa. Falava com o filho com frequência pelo celular por mensagens e por vídeo chamada. Três dias depois, no início da noite, ela chegou com Kelly na mesma situação.
Hugo recebeu as mães com carinho. Ficou sozinho com Kelly e antes de sair, pude ouvi-lo:
— Tudo bem, mamãe. Descansa, mas não esquece que sentimos saudade de você e queremos que você acorde logo. — Beijou a mão da mulher e a acariciou.
Kelly estava bem mais magra do que antes do acidente, mas ainda continuava sendo uma mulher muito bonita.
Hugo passou a mão de leve no rosto da mãe e eu saí antes que fosse flagrada por ele. Fui procurar Nicole e a vi debruçada sobre uma bancada na cozinha. Ela levantou o rosto e me olhou quando entrei.
— Como está? — indaguei.
— Exausta. Senti vontade de chorar, mas as lágrimas não vieram, está entalado aqui. — Apontou a garganta. — E é sempre assim, eu me encho de esperanças e nada acontece.
Peguei um copo com água e levei até ela. Acariciei seu ombro.
— Toma. Água sempre faz bem, não importa seu sabor. — Dei um sorriso fechado.
Ela tomou toda a água e ficou ali olhando para o copo.
— Você precisa descansar. Está com olheiras. Quer comer alguma coisa?
— Não, obrigada. — Suspirou profundamente e se levantou.
— Vem cá — chamei de braços abertos. Aquele gesto poderia desbloquear as lágrimas dela e ela desabafaria.
Ela recebeu meu abraço e ficou nele por um tempo. Eu disse palavras de conforto e ouvi o suspiro dela. Afrouxamos os braços e ela me olhou, segurou o meu rosto com as duas mãos e, em seguida, me beijou.
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