✞︎7-Ira e dúvidas
Segunda.
Taissa.
Já passava das seis da tarde quando cheguei em casa, meus olhos ardiam e seus músculos pediam socorro, então decidi tomar um banho e ir deitar. Fui até seu quarto, passando pela sala vazia e ao entrar, me deparei com a minha irmã mexendo em uma caixa de plástico em cima da cômoda, aonde guardava meus acessórios.
— Está mexendo no que? Quem te deu direito de entrar no meu quarto? — Questionei, cruzando os braços parada à porta.
— Estou pegando o que é meu, não enche — rebateu, seca.
— Você sabe como ser irritante né? Sai do meu quarto agora, sabe que odeio vocês mexendo nas minhas costas — Gesticulei por cima do ombro direito, indicando a saída. Laura a ignorou.
— Sai! — Repeti, mais alto. Fechei o punho com força, tentando não acertá-la com um soco.
Laura se levantou e puxou o vestido colado para baixo, marcando seu corpo magro de poucas curvas, e a encarou com desdém.
— Só não vou discutir com você porque estou atrasada para sair — disse tranquilamente e saiu, trombando propositalmente em meu ombro.
— Vai aonde? — A segui, irritada.
— Sabe que a vó não quer você voltando tarde e nem saindo com o Pedro - A lembrei dos limites impostos, mesmo que entrasse por um ouvido d saísse pelo outro.
— Quem disse que vou sair com o Pedro? — Virou-se, em seus olhos algo oculto, como se quisesse que eu decifrasse o que jogou no ar.
Laura sabia que eu insistiria, não porque éramos grandes confidentes ou coisa do tipo, mas porque já tinha visto aquele olhar antes, e não vinha nada de bom dele, não só era imprevisível, como era maldoso.
O vestido vinho tomara que caia, a maquiagem ressaltando os olhos pretos de gato, a vaidade em cada pequeno detalhe sendo ainda mais exaltada... havia algo estranho naquilo tudo. Alguém diferente, alguém que a fazia ter mais dedicação ainda para admirar e digno de merecer tanta volatilidade.
De qualquer forma, estava cansada demais para entrar naquele assunto.
— O trabalho está acabando com você, quando foi a última vez que comeu bem? — Escuto a voz serena vinda da cozinha.
— Nem sei — Sorri, sem coragem nem de piscar de tão cansada.
— Hoje não tem aula? — indagou, vindo me ajudar a organizar as coisas dentro do guarda-roupa.
— Não, estão fazendo algumas reformas no nosso andar, não sabem quanto tempo vai durar — respondi, bocejando.
— Já pensou em mudar para o período da noite? Assim não ficaria tão cansada filha, seus pais te ajudam se precisar, não tem que ficar se matando desse jeito — disse, acariciando meus cabelos bagunçados.
— Eu não teria tempo de descansar da mesma forma vó, além disso, não tem período noturno no nosso curso — expliquei, a voz quase não saindo de tão pesada.
— Amanhã é aniversário da sua irmã — comentou, me seguindo até o banheiro.
Eu nunca me esqueceria do aniversário dela, mas o cansaço quase apagou isso da minha mente naquele dia.
— Vou levar ela para dar uma volta — falei, entrando no banheiro.
Gestos simples por quem amamos não só os fazem felizes, como também nós realizam de alguma maneira.
— Eu lembro do seu aniversário de onze, você nem comemorou — A ma nostalgia tomou sua face, ressaltando as rugas na testa quando a franziu.
— Se meus pais não estivessem tão preocupados em me fazer falar três línguas diferentes, talvez eu tivesse sido mais criança — murmurei, quase lembrando da raiva que senti há anos atrás invadir minha língua com um gosto amargo. Entrei no banho quando percebi que ela não diria mais nada, pois aquele assunto era desagradável demais para ser prolongado.
Dia seguinte.
Assim que sai da cama, fui ao quarto da Akemi para lhe dar parabéns, quando entrei ela não estava muito empolgada, talvez fosse o sono, porém no fundo eu sabia o motivo; meus pais.
Tentei anima-lá, cantamos parabéns, fizemos um bolo e tudo que pudemos, contudo nada preencheria o espaço a qual meus pais teriam que preencher.
Laura chegou um pouco depois de cantarmos parabéns, totalmente diferente de quando saiu.
Os cabelos desgrenhados como se tivesse passado dentro de um tornado, a maquiagem borrada e suja de algo que parecia fuligem.
— Parabéns chatinha! — Sua voz saiu embolada, era nítido o efeito do álcool, de longe senti o cheiro atravessar meu nariz com força.
Não precisei ver a decepção estampada no rosto da minha avó, seu silêncio já foi barulhento o bastante. Akemi me encarou, os olhos sem muito brilho vendo aquela situação vergonhosa.
— Vai para o quarto e troca a roupa, vamos sair — Apontei o corredor, tentando parecer ter controle daquilo. Ela obedeceu, minha vó saiu logo atrás.
— Você está bêbada — disse, me aproximando.
— Vai me dar sermão? Você não é minha mãe Taissa — Ergueu o queixo, cambaleando sob os próprios pés.
— Hoje é aniversário dela, você tinha mesmo que fazer esse show? — Contive a vontade de xinga-la, me afastando.
— Nessa sua cabeça fodida eu tenho culpa? Eles estão do outro lado do mundo porque querem! Me deixa! — Tentou passar rumo ao banheiro, a segurei pelo braço com força para lhe chacoalhar.
— Você tem culpa, tem culpa de ser uma péssima irmã! Não tem consideração e nem respeito por ninguém! Olha seu estado! — gritei contra seu rosto, despejando parte da raiva acumulada nas minhas veias.
— Sua vagabunda hipócrita! Só porque comprou um bolo se acha a melhor irmã do mundo? Vai se foder! — Soltou-se bruscamente, perdendo o equilíbrio ao me dar um tapa no braço.
Quando me dei conta, tinha acertado um tapa em seu rosto, tão forte que a fez cair sentada no chão.
— Eu odeio você! É igualzinha a ela! — resmungou, os olhos marejados e tomados pela ira quando me encararam.
Podia ter me xingado de qualquer coisa e eu relevaria, mas aquilo...
Não demorou para vomitar no piso e se sujar com seja lá a mistura que tinha ingerido na madrugada.
Após levar Ake para comer um lanche, voltei para casa e troquei de roupa, peguei a moto e decidi sair e beber sozinha, para esquecer tudo que tinha acontecido de manhã, pensando no que fiz e como me senti errada depois. Laura estava vulnerável de certa forma e bati nela no calor do momento, nem sei se a minha vó sabia disso, provavelmente não, pois minha irmã estava muito bêbada e duvido que tenha contato.
Enquanto o que Lalá disse martelava em minha cabeça como uma nuvem carregada, alguém atravessou a porta do bar quase vazio em que eu estava e senti um cheiro familiar se aproximar. Aquele perfume inconfundível empregou mais que o cheiro da wodka no meu nariz.
— Beber sozinha numa segunda-feira não parece um bom sinal — A voz intensa penetrou meus ouvidos como uma música suave, melhor do que aquela que estava tocando no bar.
— Talvez eu queira beber sozinha — Balancei o resto do líquido no copo curto, erguendo o olhar aos olhos castanhos que me fitavam de maneira passiva.
— Não te vi hoje no campus, você foi? — disse, se aproximando com o antebraço direito apoiado no balcão.
— Se não me viu, acho que eu não estava lá né — Devolvi, sem paciência.
Binho deu um sorrisinho de canto.
Peguei a chave da moto no bolso e esvaziei o copo.
— Não pode dirigir nesse estado — Bloqueou a passagem, entrando na minha frente e quase me fazendo colidir de frente com ele.
— Ainda estou sóbria, não se preocupa — falei, tentando novamente, porém ele fez bloqueio de novo, se aproveitando dos seus 1,87 de altura contra meus 1,70.
— Não vou deixar você se matar por aí — Pegou a chave da minha mão num gesto tão ligeiro que mal previ.
Podia discutir, tentando provar a sobriedade, todavia seria inútil, pois minha cabeça já se encontrava girando e o corpo bambo. Evitava ficar bêbada na frente das pessoas por muitos motivos, o maior deles era o medo de passar vergonha.
— Vou levar você em casa — disse seriamente, balançando a chave entre os dedos. Suspirei, sendo vencida. Notei alguns homens que bebiam no fundo do bar me observarem indiscretamente.
Binho poderia ter notado e por isso estava ali, ou somente apareceu coincidentemente.
— Sabe pilotar moto desde quando? — Perguntei, pois nunca tinha visto Binho em cima de uma moto desde que o conheci. Tinha noção suficiente para perceber a tremenda idiotice que estava prestes a fazer.
Pude jurar que escutei um; "não sei", se não estivesse tão bêbada.
Poderia ser uma tremenda burrice confiar num homem no fim da noite, mas eu já tinha mentido para minha avó e batido na Laura, talvez o que viesse fosse uma punição, assim tiraria uma pouco da culpa que eu sentia.
— Não tenta nada, tenho com que me defender — Avisei, enquanto suas mãos grandes me ajudavam a pôr o capacete.
Rubens riu baixinho.
— Com isso aqui? — Ergueu o alicate de unha dentro que eu tinha guardado no bolso da calça jeans. Senti um frio na barriga.
— Como...? — Nem consegui perguntar.
Seus lábios se curvaram num sorriso felino.
— Deveria se proteger melhor, se acha que isso pode parar qualquer um — retrucou de maneira subliminar, ligando a moto após eu me sentar atrás dele. Fiquei intrigada.
"Qualquer um"
O que ele quis dizer com aquilo?
A brisa fresca contra parte exposta do meu rosto me fez despertar um pouco.
Agarrei na cintura de Rubens quando a moto escorregou no asfalto úmido e quase caímos, a chuva chegou antes que eu saísse do bar, acabei percebendo tarde. Senti o coração ir parar na boca, fechei os olhos com força e tentei me agarrar no fio de segurança que tínhamos.
— Você está bem? — indagou, preocupado. Foi tudo tão rápido que mal tive tempo de fechar os olhos.
— Estou — respondi, ainda trêmula.
A adrenalina que me consumiu com certeza não o atingia, pois Binho seguiu tranquilo, aquilo não parecia nada a se preocupar para ele. Fiquei surpresa em ver aquele lado a mostra, por não tê-lo imaginado como um amante de loucuras como aquela, sendo previsível ou não.
Desci da moto e ele tirou meu capacete cuidadosamente, espalhando os fios por todo meu rosto.
Notei seu celular tocar antes dele pegá-lo para verificar.
— Não vai atender? — Questionei, pegando o outro capacete do punho dele.
— Não é ninguém importante — Ignorou a ligação, guardando o celular no bolso do boletim verde-escuro.
Era uma mulher, pelo que minha visão pode deduzir.
— Obrigada — Agradeci, preguiçosamente.
Binho desapoiou o quadril da moto e encurtou a distância entre nós.
A chuva começava a cair mais forte.
— Me tirou de lá por causa dos caras? — Quis tirar a dúvida.
Ele assentiu com a cabeça sutilmente.
— Não preciso que me salve de ninguém — Fui ríspida, embora não estivesse muito sóbria para isso.
— Sei que não, mas esperava que isso te salvasse? — Entregou o alicate a mim.
Parecia levemente ofendido.
— Usado do jeito certo, pode me salvar de qualquer homem — Mantive minha convicção, embora ele tivesse razão, não permitiria ser contrariada.
— Do jeito que você está, acho mais fácil se furar sozinha do que ferir alguém — Riu de mim. Isso me fez rir também.
Binho se aproximou à medida que senti sua respiração aquecer minha pele fria, os olhos diretamente ligados aos meus.
— Se quer um conselho, se proteja com algo mais letal, não sabe com o que pode ter que lidar — Aconselhou quase num sussurro que me fez arrepiar inteira.
Engoli a seco.
— Até amanhã, Tai — Deslizou o dedão por minha bochecha suavemente e depositou um beijo quente nela em seguida. Senti algo me rondar naquele momento, estremeci por dentro.
Então ele se foi, caminhando noite adentro.
Minha noite tinha ficado um pouco mais leve, até pisar em casa e ver a expressão nada boa no rosto enrugado dela. Não fui capaz de perguntar se era má notícia.
— Seus pais ligaram, disseram que virão para cá essa semana — Informou, provavelmente prevendo a minha reação.
Apenas bufei de tão cansada.
Talvez qualquer filha ficaria feliz em receber os pais que ficaram anos do outro lado do mundo, entretanto eu não conseguia ser ela e o motivo? Uma longa história...
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