1 - Encarar a morte
Um lugar solitário dos Estados Unidos, 1962.
O pequeno veado temia o frio. A pelagem que cobria seu corpo ainda não era o suficiente para mantê-lo totalmente aquecido, e não tinha sua mãe consigo para esquentá-lo.
Duas semanas antes, ambos haviam encontrado um caçador em seu caminho que decidiu ser correto atirar em um animal que apenas protegia seu filhote do perigo. Ela foi considerada fraca para o bando, mas foi forte e corajosa o suficiente para defender sua cria e morrer por ela. Agora, o bicho andava pela neve crescente sozinho, e a solidão doía, até mesmo em um "ser irracional".
Doeria até no menor dos insetos se significasse ser largado no mundo sem o ser que o fizera nascer. Ia sem muita direção, aguentando a pouca visão que tinha da floresta pela neve e os flocos que deitavam em seu rosto com delicadeza. A comida era escassa e sua pouca experiência o atrapalhava. Sem a ajuda da mãe e naquele terror gelado que tomava frente, não levaria muito para cair de fome.
A nevasca não tinha piedade dos animais ou humanos, porém o bicho não queria morrer, fosse de fome, de frio ou saudade. Todos agora doíam da mesma forma.
O problema era que sentia a morte em seu encalço. o odor dela chegou rápido às narinas que cheiravam com tanta precisão, mesmo que a potência do odor fosse reduzida. Daria tempo de correr, mas para onde ir quando se andou sem direção por tantos dias e tudo que havia em volta era quase indecifrável?
A morte, encapsulada na bala grossa e destrutiva da espingarda, estava preparada para pegar o pequeno veado, já as mãos que a colocaram alí para caçar a vítima do dia, não. Definitivamente não.
Hector temia cada segundo daquilo, pois finalmente tinha achado um alvo:
Pequeno, sozinho e desprotegido. Não imaginou que o momento chegaria tão cedo, e poderia ser tão fácil... Era só atirar e pronto, mas sabia que não seria para ele. Nada era fácil para Hector como era para qualquer outro no mundo.
A compreensão de que o animal estava largado a própria sorte assim como ele passou por sua cabeça por um momento, o deixando relutante. Tinha se afastado do pai e ele não se importou. Não o chamou, não notou seu sumiço. Se desaparecesse o homem viria atrás? Duvidava muito.
O garoto gostaria de fingir que não ligava. Às vezes, praticava no espelho expressões duras como as do pai e imitava os trejeitos dos poucos homens que conhecia na vida, mas a dureza na expressão não era a mesma dentro do coração. Queria se tornar um homem logo, porque eles não choravam, não se sentiam solitários, miseráveis ou rejeitados.
E eram respeitados e amados. Sim, queria também amor e respeito. Às vezes, seu coração chegava a doer pelo vazio que não era preenchido e detestava se sentir tão fraco. Talvez fosse um reflexo de Madeleine e Roger. Uma mulher largada às traças que se odiava e odiava a vida e um homem que se amava, mas nunca aos outros.
Controlava a respiração, os passos, cada coisinha, mesmo que de forma nada experiente. O inverno castigava, e sabia que precisava levar caça para casa. Pele, carne, qualquer coisa. Eram muitas bocas, muita cobrança.
O garoto loiro e emagrecido tremia com a espingarda na mão. O veado, sentindo o perigo iminente ainda mais perto, se afastava do estranho com crescente desespero.
Ambos se tornavam um pouco mais adultos naquele instante. Um por ter sua primeira presa em mãos, o outro, por encarar seu primeiro caçador sozinho.
O menino tinha de fazer o que precisava ser feito. Somente assim os irmãos parariam de chamá-lo de "Mijão", "Frango" e "Retardado". Apenas dessa forma a mãe o olharia como filho e não um maldito fardo, e o pai, que pela primeira vez dera uma chance a ele de provar seu valor, o abraçaria e ficaria feliz por ele ao invés de xingá-lo, como em tantas outras vezes por motivos diferentes.
— Certo. — Sussurrou, quase engolindo a palavra para dentro de si.
Se preparou para puxar o gatilho. Quase lá.
1, 2, 3, 4... 8, 9, 10...
Queria socar seu próprio rosto agora. Onde estava com a cabeça de sentir pena? Homens não tinham pena. Eles iam e faziam o que tinham de fazer. Por isso ainda era chamado de garoto.
Era só um maldito veado que serviria de alimento para sua familia naquele frio infernal. Era tudo em prol da família, então qual a dificuldade?
Talvez a devoção a eles fosse uma desculpa. Nunca foi amado, nunca seria. Esquentar os irmãos que o humilhavam? Esquentara a mãe que nem sequer o olhava no rosto e o via como um inseto? E o pai que tinha vergonha dele...
Chutou o pensamento para longe. Estava apenas fugindo do "X" da questão de forma acovardada.
Foi para mais perto do animal observando o quão acuado estava. Sentiu um amargor dentro de si. O medo tomando conta cada vez mais. As lágrimas assumindo posição.
— Vamos lá.
A tremedeira aumentou, e só tremeu assim quando quebrou o vaso que sua mãe guardava com tanto afinco de presente da avó que havia falecido. Quando a viu chegando com uma cinta para bater nele, ele já sabia da dor que estava por vir. Nunca sentiu tanto medo como naquele momento passado, e agora, esse medo retornava com fervor.
Foi como em um sonho. Tudo andando como se estivesse em câmera lenta, digno de cinema. O veadinho estava na mira, e ainda sim, ele cogitava deixá-lo ir e aplicar a misericórdia naquele dia, até se assustar com o som do pai chamando seu nome. O som quase fez seu coração parar.
O bicho sentia o espectro da bala saindo da espingarda e atravessando sua pele antes mesmo do fato acontecer. Talvez fosse como os humanos, que antes de morrer sentiam a vida passando pelos olhos e a morte consumindo seu corpo.
Havia atirado e acertado. Hector ouviu seu bramar de dor. Caiu para trás. Quando Roger chegou a cena e notou o ocorrido, fincou os olhos nele com certa surpresa.
O buraco na carne do animal era profundo e nojento. O gemido de dor dele ecoava nos ouvidos do garoto. Pensou que na primeira vez que atirasse em um animal na vida, estaria orgulho do feito, contudo, apenas sentia um asco por ter causado dor a um ser que não tinha nada a seu favor para, sequer lutar contra Hector, mas o menino, mesmo assustado e estarrecido, esperava que o pai o abraçasse, que dissesse que estava orgulhoso dele, porém Roger se limitou a comentar que o veado não daria muita carne e que o garoto deveria tirar a expressão de assustado do rosto, se levantar e agir feito homem. Certo, era oficialmente um homem agora.
— É só um bicho. — O pai comentou em meio a resmungos.
A decepção de Hector, à medida que retornavam pela floresta, crescia com tremenda força que o fazia querer gritar. Um um sentimento de nojo por ter atirado o agarrou com força e não queria soltar, e a imagem do veado se repetia na frente de seus olhos sem parar. "Bang". O som ainda estralava em seus ouvidos, as mãos não deixavam de tremer.
O tormento continuou enquanto se aproximavam da casinha pequena, sufocante e mal construída.
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Beijos da Tteayu 💋
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