IV. Melanie
A TV anunciava o noticiário da manhã, as coisas ficavam mais caras, o país parecia enfrentar uma nova crise de alguma doença na costa oeste. Apenas as mesmas coisas de sempre.
O cheiro do café fresco inundava o apartamento no bairro de Oakberry - Zona Oeste -, uma cobertura tão cheia de vida com plantas dos mais variados tipos, e algumas esculturas gregas de mármore branco complementavam a decoração interior. Nas paredes, diversos quadros de arte clássica e pós-moderna disputavam pelo espaço lado a lado com samambaias e estantes de livros - fantasia, romance, poesia, filosofia e tantos outros gêneros. O piso de madeira estava bem encerado, e o recinto se iluminava com a luz do sol matinal, através de janelas grandes e uma dupla de clarabóias. Melanie repassava algumas ideias de música para seu pequeno caderno de anotações cor-de-rosa, enquanto tomava seu café, com frutas e um pão de centeio com queijo. No noticiário, algo novo era pronunciado.
"Foi preso na manhã desta segunda-feira um serial killer que matou cerca de quinze pessoas a sangue frio na região metropolitana de South Meadow. Sendo conhecido como o 'Assassino de Saint John', cujo verdadeiro nome é Edgar Ridges. Conhecidos dizem que o homem era dono de uma loja de conveniências no mesmo bairro antes de começar a onda de brutalidades, que encontrou seu fim quando dois policiais do bairro de Pinewood o prenderam, quando estava mutilando sua última vítima. A dupla não quis comentar o caso e nem dar entrevista, optando pelo anonimato. À seguir..."
A TV se desliga, e a jovem sai com sua bolsa de violino nas costas, pegando um ônibus em direção à Região Central. Tocara durante a manhã no Lincoln Citizen Park, Weasel Heights, suavemente deslizando o arco sobre as cordas, numa reprodução divina do 'Lago dos Cisnes' de Tchaikovski. Em sua bolsa, aberta para as gorjetas, sempre surgiam muitas notas dos empresários e frequentadores do parque de alta classe, admirados pela sua habilidade e coragem de tocar em público. Weasel Heights era um bairro empresarial, coberto por grandes torres espelhadas, edifícios comerciais e prédios do governo. Durante seus intervalos matinais, muitos optavam pelo parque como lugar de descanso.
Ao fim do intervalo, o parque já estaria quase vazio e o sol da tarde surgia no céu trazendo o seu calor. Já devia ser pouco mais de meio-dia, então Melanie recolheu-se, partindo em um ônibus para Bramsburg, Distrito Nordeste, onde trabalhava em uma confeitaria chamada 'Sonho em Sicília'. Tinha uma decoração rústica de madeira, cadeiras, mesas, balcão e a decoração das luzes laterais. No teto, quatro candelabros de vidro turquesa fracamente iluminavam o ambiente, que já estava bem claro com a forte luz do sol da tarde, e as paredes tinham fotos de grandes confeiteiros e chefs de cozinha do mundo - mas principalmente da Itália, é claro - com artigos de revistas e jornais velhos que contam um pouco de suas histórias. E duas bandeiras na frente do balcão de pedidos, uma da Itália no lado direito e uma da província de Sicília, na esquerda, para completar a decoração. Era frequentemente visitada por entusiastas de doces, que amavam as tortas italianas e camafeus de chocolate com maçã.
Nos fundos, Melanie entra no vestiário para guardar suas coisas e vestir o uniforme. Branco, com detalhes vermelhos, azuis e verdes, como se fosse uma mistura das bandeiras italiana e americana.
— Puxa, ficou sabendo daquele Edgar? Ainda bem que aquele lunático foi preso. — disse sua colega, Wendy Tornwhite.
— Pois é. Estou preocupada que mais deles podem surgir, talvez ainda mais perigosos do que ele.
— Ah, eu não estaria tão certa disso. A lei é bem rígida para assassinos. Precisaria ser muito mais louco do que ele para fazer esse tipo de coisa.
— Ah, sim. Tinha me esquecido. — ela disse com um sorriso forçado. Não podia dizer a ela sua verdadeira preocupação, poderiam surgir mais lobos poderosos como ele, e em pouco tempo.
— Bem, pronta pra começar? — disse Wendy logo após amarrar seu avental multicolorido.
Wendy era uma típica garota do campo, cabelos laranja trançados para trás, sardas em um rosto arredondado e gracioso. Vinda da região rural do Canadá, chegou a poucos meses na cidade. Morava com sua irmã mais velha, que também trabalhava na confeitaria - no turno da noite.
Sonhos em Sicília é uma franquia, que começou na Região Leste da cidade, e agora já possui pelo menos outras três nas cidades vizinhas. Esta de Bramsburg, em especial, é menor e possui uma equipe quase que completamente composta por mulheres, a maioria bem jovem, na mesma idade de Melanie.
— Wendy, Mellie, fiquem ligadas. Frank chegou, e a Sra. Morston com ele. — disse uma colega chamada Mirian, pela porta da frente da cozinha. E as duas engoliram a seco.
Miranda Morston é uma Nova Iorquina criteriosa, exageradamente criteriosa. É a principal investidora do estabelecimento, e como tal, têm poder para dar ordens. Sempre exigia o máximo de suas subordinadas, mesmo em seu tempo de intervalo. Todas detestavam sua presença, mas conseguiam atura-la graças ao dono da filial. Um jovem adulto de vinte e nove anos, descendente de italianos, chamado Franklin Piccoli, se Melanie não o conhecesse, diria que ele é o próprio filho de Eros, a divindade grega da paixão. Ele era respeitoso com todas, amável, gentil e bondoso, como se estivesse fascinado por todas elas, mas nunca lhes importunando com flertes ou toques indesejáveis. Mirian, que já trabalhava a mais de dois anos lá, dizia que o homem teve seu coração quebrado antes de terminar a faculdade, sentia-se culpado por isso e, quando foi chamado para tomar conta da filial do Distrito Nordeste, decidiu que trataria todas as funcionárias da forma que gostaria de ser tratado - com afeto e respeito.
Os dois desciam de uma BMW executiva branca, e subiram até o escritório com pastas debaixo dos braços. Miranda lançou um olhar fulminante pela janela frontal da cozinha, estremecendo a todas ali.
— Essa mulher... Ela tem alguma coisa muito errada... — disse Mirian.
— Concordo. Mas é melhor nos concentramos no trabalho. Ela não pode reclamar de trabalho bem feito. — Melanie encoraja suas amigas.
O movimento diminuiu, próximo das seis da tarde, quando um garoto se sentou na mesa mais distante. Tinha um cabelo preto bem espesso e liso - com uma única mecha violeta - formando uma franja que cobria parcialmente seus olhos, que eram eletricamente azuis e vividos. Ele sempre vinha próximo desse horário, após ser dispensado da escola.
— Ei, Mellie, o garoto veio de novo. Deve estar procurando por você. — comentou Wendy com um sorriso.
— Não é fofo? Ele sempre vem, pede pelo mesmo bolo de nozes, e espera que ela o entregue. Será que ele um dia cria coragem para se declarar? — comentou Mirian, rindo.
— Ah, fiquem quietas vocês duas. Ele só vai no mesmo clube de arte que eu, só isso. — Melanie corou, não tinha tal sentimento pelo rapaz, mas suspeitava que ele não pensava do mesmo jeito.
Wendy ajudou com uma fornada de biscoitos, e esquentou a fatia de bolo preferida do rapaz. — Mal posso esperar pelo dia que ele vai trazer flores, chocolates e cantar uma serenata romântica. — sorriu, e as sardas em seu rosto pareciam acompanhar o sorriso.
— Você não toma jeito, mesmo. — Murmurou.
Ela levou numa bandeja um prato de porcelana com uma deliciosa fatia de bolo com uma cobertura de amendoim, e recheio salpicado de nozes e avelãs em uma massa aerada e leve.
— Aqui está, Griffin, bom apetite.
— Você vai no clube... hoje a noite? — a voz do rapaz era soturna, hesitante. Parecia estar com medo, mas este era o seu jeito de falar.
— Certamente, estou com algumas ideias e...
— Dudley! — disse Miranda, irritada e de braços cruzados. Estava a metros de distância, mas podia escuta-la como se estivesse do seu lado. — Venha aqui, agora.
— S-sim, senhora! — Melanie abaixou a cabeça e seguiu para um canto vazio próximo dos banheiros.
— Como você consegue gastar tanta farinha para fazer um perdido de tortas simples!? — questionou ela — Você só precisava seguir a droga da receita. Três xícaras, não duas, não quatro, apenas três! Você tem alguma noção de como o trigo está caro? Não temos dinheiro para ficar esbanjando desse jeito! — disse ela, com seu vestido e paletó sociais da Gucci. Continuou falando por mais algum tempo sobre gastos, economia e farinha. Não havia gastado mais que o necessário para fazer o dito pedido, a farinha gasta foi de um mês atrás, quando Frank ajudou na cozinha enquanto duas confeiteiras estavam de cama. Apesar de ser excelente na administração, o rapaz não era tão habilidoso na cozinha, e acabou usando mais do que devia.
De volta ao vestiário, estava a se trocar quando recebeu uma ligação. Era Brad, e pedia para se encontrar com ela numa casa em Hansville, Distrito Sudoeste. Acrescentou ainda que deveria trazer alguns livros, e então desligou.
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Já anoitecia quando chegou na casa. Era um conjugado simples, com uma alegre pintura amarela que reluzia mesmo na luz da Lua e dos postes, com plantas e flores no jardim. Brad estava na frente do portão, com sua típica roupa punk, esperando impacientemente.
— Já não era sem tempo, Melanie. Trouxe os livros?
— Trouxe, mas eu não entendi bem. Porque você precisaria deles agora? Nunca teve o hábito de ler, pretende mudar de hábitos?
Brad rolou os olhos - Não é pra mim. Vem, entra.
A sala de estar se assemelhava com a cobertura de Mellie, o piso de madeira estava encerado e as diversas flores traziam um ar confortável para o lugar, mas oque mais chamava a atenção de Melanie era uma mulher alta e loira que estava sentada no chão, com os pulsos e os pés amarrados em um abajur, estava empapada de suor e o cabelo arruinado, olhando para baixo. Suas roupas colavam no corpo suado.
— Oque... Oque é que você fez com ela, Brad?
— Aí, eu não fiz nada. Ela é quem pediu para ser amarrada.
— Ah, Melanie Dudley eu presumo. — um homem surge da cozinha — Sou Jake Saito, e essa é a minha parceira, Alana Winsdarth.
— Você é a Kitsune de Hisagawa, conheço seu clã. Ela é uma Vampira, não é? — a jovem suspira — Ela parece estar lutando consigo mesma.
— Sim, ela é. Está fazendo o possível para se manter estável. Mas tem algo de errado, ela só veio ter uma transformação completa agora, muitos anos depois de ter sido mordida. Não tinha desejo algum por sangue. — Alana murmurava, balançando a cabeça após ouvir a palavra. — Até alguns dias atrás, quando enfrentamos um lupino. Brad te conhecia, disse que você teria respostas para todo tipo de coisa, então pedi pra te chamar. Ela não gosta, e nem quer, ferir as pessoas ou os animais para conseguir sangue. Você sabe de algum meio mais... Alternativo?
— Ela é um caso raro, de fato. Todo humano se transforma dias após ser mordido. — a garota se senta no sofá, procurando algo em sua bolsa. — Me traga água, o máximo que puder.
Jake vai a cozinha e retorna com uma jarra de vidro cheia até a borda.
— Você acha que ele pode ter provocado a transformação? — pergunta o policial.
— Porque só ele? Eu também sou lobo, e ela nunca tentou arrancar um pedaço de mim. — acrescentou Brad.
Jake estreitou os olhos para o jovem, mas logo voltou sua atenção para Alana, que começava a se agitar um pouco mais.
Melanie encontra aquilo que procurava, era como um ramo de oliveira, mas todo folheado de cobre. Ela então o coloca gentilmente sobre a água fazendo círculos, e recita uma espécie de encanto.
Tormenta de Fulgor
Traga para este, vida constante, sem temor
Ela remove o objeto, mas a água permanece rodopiando em um vórtice. Uma estranha sombra passa pela luz da sala, e logo a água insípida, incolor e inodora, ganha espessura, ficando vermelha e cada vez mais densa, até que seu movimento cessa, e já não havia mais água no recipiente. Brad mordeu os lábios, e suas mãos tremulavam com o cheiro que sentia, era sangue puro. Alana ergue sua cabeça, seus olhos não tinham cor, eram negros e profundos, mas reluziam de excitação ao ver o recipiente.
Alana se agita ainda mais, e Melanie, com cuidado, se levanta e entrega a jarra. A policial vira tudo sobre sua boca, manchando seu rosto, suas roupas e o chão d vermelho escuro. Ela deixa a jarra cair, e seu rosto já não era sombrio, apesar de estar assustadoramente coberta de sangue.
— Eu... Não machuquei alguém, machuquei? — sua voz era meiga como antes.
— Você consegue transformar mais água? — perguntou Jake.
—Não. A Magia que domina a Vida tem regras, o uso abusivo pode trazer muitas consequências. Uma delas é... Mais "Edgars" na cidade. — ela pega um livro e começa a procurar por algo — Nós teremos apenas dez dias, antes de Alana voltar ao seu estado de selvageria.
— E até lá, devemos encontrar mais uma fonte de sangue, então? — sugeriu Saito, e Mellie assentiu, com os olhos no livro.
— Aqui, "A Marca dos Neuri". — disse a jovem. — Edgar deve ter sido marcado pela antiga magia Neuri, talvez por acidente.
— Os primeiros dos nossos? Achei que esse tipo de coisa já tava enterrada à tempos.
— E estava. Ou melhor, estava. — falou Jake. — Todo o conhecimento Neuri estava centrado em dois lugares; na antiga Arcádia e na Alexandria. E os dois se perderam no tempo. Ninguém nunca encontrou os vestígios.
— Correto, mas o papel não é tudo. — pontuou Melanie.
— Tá sugerindo viagem no tempo, é? — zombou Brad. Jake franziu o lábio com aspereza.
— Não. Pessoas podem ter aprendido sobre, e passado em segredo para as outras, até chegar aqui.
— A única pessoa num raio de quilômetros com algum conhecimento mágico que ultrapassa centenas de anos é o Yorner. — lembrou Jake — Seria possível que os Nômades...
— Não! — bradou Jake — Você pode falar oque for dele, tira, mas o Francis é boa gente. Mesmo se ele tivesse esse poder, não iria ficar usando num Zé Ninguém como o Ridges!
Jake sentiu a afronta, e se aproximou de Brad com intenções agressivas — Tá querendo voltar pra delegacia, moleque? Te mando pra lá voando.
— Acho que eu tenho medo de Raposa!? — provocou o punk.
— Aí, vocês dois! — bradou Alana, ainda sentada e incapaz de se levantar — A minha casa não é ringue. E eu não vou aceitar brigas entre ninguém! Resolvam suas diferenças com diálogo e compreensão! — Alana percebeu o quão inconveniente soou, mas essa era sua natureza pacificadora.
— Alana tem razão. — concordou Mellie — Não há tempo para brigas ou discussões. Primeiro, precisamos encontrar uma nova fonte de sangue para Alana, antes que ela perca o controle novamente. Depois, encontrar o responsável pelo uso da Magia Neuri.
Jake bufou, e foi até Alana para desamarra-la. Brad fez uma careta e foi para fora.
Alana tentava, inutilmente, limpar seu rosto — Eu ainda não entendo. Sempre amei passeios ao Sol, as tardes quentes de verão. Nunca me senti incomodada com essas coisas. Como me transformei somente por estar próxima de um lobisomem?
— Os fatores são muitos. Pode ser até algo passageiro, mas assim, a duração é incerta. Oque podemos fazer agora é torcer pelo melhor, e encontrar a fonte Neuri antes da próxima sexta-feira.
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