Capítulo 6
– Ei, acorde – uma voz nebulosa chama, suave, mas insistente. Por um instante, não reconheço, mas logo percebo que é minha avó. – Chegamos. Vamos, é hora de sair do carro.
Meus olhos se abrem lentamente, piscando contra a luz do sol que atravessa o vidro do carro. O céu é de um azul tão intenso que chega a me incomodar. Parece tão distante da escuridão que vem crescendo dentro de mim, como se fossem dois mundos completamente separados. Abigail ainda está no banco do motorista, me olhando com cautela.
– Que horas são? – pergunto com a voz embargada de sono, um resmungo mais do que uma frase.
– Quase onze da manhã. Agora, mexa-se. Você precisa esticar as pernas depois de tanto tempo sentada – ela responde, com um tom prático, enquanto passa seus braços por cima de mim e abre a porta do passageiro.
Ainda meio sonolenta, coloco os pés para fora. O contato com o vento fresco em meu rosto é como um choque de realidade, uma sensação breve de alívio. Finalmente, posso me mover sem sentir as pernas batendo contra o painel. Minha avó sai e dar a volta no carro até onde estou. Fico atónita, vendo sua residência á minha frente que, sem eu querer, agora é meu lar. A casa é imponente, uma verdadeira relíquia da arquitetura vitoriana. Alta, com paredes brancas impecáveis que brilham sob o sol, sustentada por colunas robustas que se alinham como sentinelas na entrada. O telhado é inclinado, e algumas molduras ornamentadas decoram as janelas altas. Ao redor da casa, um jardim bem cuidado se estende como um tapete vivo. Rosas vermelhas e brancas se misturam às sebes cuidadosamente podadas, enquanto o som suave dos aspersores ecoa no ar. A cerca que protege o terreno é de ferro preto, com pontas afiadas que parecem alertar: Não se aproxime sem convite.
Minha avó, Abigail, empurra o pequeno portão com um rangido e seguimos por um caminho de pedras que corta o jardim. O cheiro de grama molhada é fresco e quase calmante, mas o aperto no meu peito não diminui.
– O que acha da casa? – pergunta ela, olhando de soslaio enquanto andamos.
Eu hesito. Não tenho vontade de elogiar ou criticar, então apenas murmuro:
– É... grande.
Abigail suspira, mas não insiste. Ao chegarmos à porta principal, ela gira a chave no trinco e empurra a madeira maciça, que range ao movimento. Assim que entramos, sou imediatamente envolvida por um misto de surpresa e estranhamento.
O interior da casa é tão luxuoso quanto seu exterior, mas de uma forma que me deixa desconfortável. O pé-direito é altíssimo, e um lustre de cristal domina o teto, refletindo pequenos arco-íris nas paredes claras. Uma escadaria majestosa se abre em dois lados mais a frente, com um corrimão de madeira escura e detalhes dourados. O chão é de madeira polida, tão brilhante que quase vejo meu reflexo. Janelões enormes deixam o sol inundar o ambiente, mas a luminosidade, em vez de acolhedora, parece expor demais, como se nenhum canto pudesse esconder segredos.
No canto da entrada, em um grande salão, há um piano preto de cauda, que parece ter saído de uma pintura, rodeado por estantes cheia de livros e objetos arquitetônicos preto que aparentam alto valor. Em uma das paredes desse lugar, a visto uma porta de correr parcialmente aberta revelando o que deduzo ser uma sala de estar. Vejo um sofá em forma de "L", almofadas organizadas como se nunca tivessem sido usadas, e uma televisão de plasma. Tudo parece impecável, quase como um cenário que espera por um ator para dar vida.
– Onde estão todos? – pergunto, minha voz saindo mais baixa do que eu esperava.
– Provavelmente estão dormindo. Ainda é fim de semana e você sabe como jovens são.– responde Abigail, sem muita cerimônia. – Venha comigo, vou levar você ao seu quarto.
Subimos a escadaria pelo lado direito e chegamos a um corredor amplo, com uma sequência de portas de madeira alinhadas em um dos lados e, oposto a elas, vidrais coloridos enormes, com detalhes em vermelho, azul e amarelos, que deixam a luz do sol entrar de forma mais amistosa do que as grandes janelas lá embaixo, criando aqui um ambiente quase onírico. Abigail para diante de uma das portas e a empurra, revelando o que será meu quarto.
Entro no cômodo e paro no meio, olhando ao redor com um peso no peito. O espaço não é exatamente pequeno, mas a ausência de vida no ambiente o torna opressor. As paredes cinzas são vazias, sem quadros, sem fotos que contem histórias. Nada que lembre o calor do meu antigo quarto, onde prateleiras abarrotadas de livros dividiam espaço com pôsteres de filmes, e as fotos de momentos felizes preenchiam cada cantinho. Aqui, a simplicidade da mobília – uma cama de solteiro, um criado-mudo com uma luminária, e um guarda-roupas modesto – apenas reforça o contraste com tudo que perdi. Cada detalhe parece gritar que não pertenço a este lugar. No canto, frente a cama, há uma porta aberta que leva ao banheiro modesto, com azulejos brancos, uma pia que parece antiga, um espelho com armário embutido e um boxe com chuveiro. Suspiro, isso é tudo que tenho agora. Volto a encarar minha vó que está parada atrás de mim, também visualizando o quarto.
– Mandei comprar algumas roupas novas para você. – diz Abigail, hesitando por um momento antes de continuar. – Acredito que, depois do... do que aconteceu, você precise de algo novo.
Faço que sim com a cabeça, mas não digo nada. A memória do incêndio me atinge como uma onda fria, e sinto meu peito apertar novamente.
Minha avó me observa por um instante, talvez esperando que eu diga algo, mas, sinceramente, só queria ficar sozinha. Então, com o meu silêncio crescente, Abigail logo desiste e caminha até a porta e para de forma súbita até se virar para mim.
– Eu já vou indo. Mandarei alguém aqui para lhe entregar as roupas, ajudar você com o que precisar explicar as regras da casa. – sua pausa dá uma sensação de que queria acrescentar algo, mas acaba saindo em silêncio, fechando a porta com suavidade.
O silêncio preenche aquele lugar, tão rápido como a água que enche uma banheira. Sento-me na cama e sinto o colchão ceder sob o meu peso. Meu corpo está exausto, mas não apenas por causa da viagem. A verdade é que estou cansada de tudo: das memórias, da dor, da sensação de vazio que me consome. Olho para o vestido que ainda uso, antes tão querido. Agora, ele me sufoca, um lembrete diário dar dor, da perda, do fim de uma Carly que eu sentirei saudade. Penso em Caitlin e lembro da festa, de como a vi pela última vez. Eu estava perdida no meio do caos, da raiva e do medo, mas, por um breve momento, meus olhos captaram a silhueta dela na sala, como sempre incrível. Ela estava ali, mas não sabia o que havia acontecido. E eu só sumi. A essa hora ela deve saber o que aconteceu com minha casa, meus pais. Desejo tanto ela aqui. A ideia de que eu me fui sem dizer um adeus, sem contar para ela o que realmente se passou, é como uma faca enterrada no peito. O vazio que Caitlin deixou é quase tão grande quanto a perda dos meus pais, e essa ausência transforma este lugar em algo ainda mais frio e desolador. Sinto falta das nossas conversas, das suas ideias, das suas fofocas sobre os garotos ou de planejarmos nosso futuro juntas, morando em um apartamento em Nova York com vários gatinhos de estimação. Agora, só resta o silêncio. Lágrimas escorrem pelo meu rosto, lentas e quentes, cada gota carregando uma pequena parte desse sentimento predatório e infeliz, que parece nunca cessar. Fecho os olhos e deixo o peso de tudo me envolver, sem tentar resistir.
Toc. Toc.
O som me arranca de meus pensamentos como um raio partindo o ar. Minha mão, ainda trêmula, desliza pelo rosto úmido. Suspiro, reunindo forças para me levantar e ir até a porta. O movimento parece levar uma eternidade, como se meu corpo resistisse a qualquer nova interação.
Ao abrir a porta, deparo-me com uma garota. Ela parece ter a minha idade, talvez um pouco mais jovem. Usa óculos grandes, com lentes tão grossas que tornam seus olhos maiores e mais redondos. Seu sorriso é exagerado, quase teatral, como se ela tivesse acabado de ouvir a melhor piada do mundo. E isso me irrita imediatamente, embora eu não saiba explicar o motivo. Talvez seja a vivacidade do seu jeito, dos seus cabelos ruivos e porque esse sorriso – esses dentes brancos e alinhados – contrasta violentamente com a dor silenciosa que carrego.
— Oi! Você deve ser a Carly. Eu sou a Tiffany, mas pode me chamar de Tiny – diz ela em um tom tão animado que me lembra um desenho animado. Seu entusiasmo me soa fora de lugar, quase cruel.
— Prazer, Tiny – murmuro, forçando um sorriso que provavelmente mais parece uma careta. Pela maneira como sua expressão vacila por um segundo, sei que não consegui enganar.
— Bom, a madame Abigail me pediu para trazer algumas roupas para você – anuncia, erguendo os braços cheios de sacolas brancas. — Aqui estão elas. E... posso entrar?
Faço que sim com a cabeça, abrindo a porta completamente. Tiny passa por mim como uma brisa que não pede permissão, invadindo meu espaço com sua energia.
— Certo! Além disso, Abigail me pediu para explicar algumas regrinhas da casa. Primeiro – diz Tiny, erguendo um dedo de forma teatral – Nada de magia fora das aulas. Sem feitiço de criar objetos, levitação e muito menos poções. Segundo – levanta outro dedo – nada de ir para o lado esquerdo à noite, é onde ficam os meninos. E, só pra deixar claro, esse lado é o "território proibido" para gente. Já deve imaginar o que Abigail pensa da gente se misturando com eles em seus quartos. — sorri e me dá uma piscadela — Além de que, não é como se tivesse muita coisa interessante lá, só uns dois caras meio esquisitos. Mas enfim, proibido é proibido.
— Parece que ela realmente confia na gente, hein? – comento, minha voz transbordando ironia.
— Oh, absolutamente sim! É por isso que temos monitores de corredor – responde ela, piscando como se fosse uma piada interna. – Continuando: nada de perambular pela casa durante a madrugada e nada de trazer convidados. E se for pega com alguém aqui, Carly, já sabe: você tá lascada – Tiny brinca, rindo do próprio comentário. – Nada de som alto depois das onze da noite. Isso inclui você cantar no chuveiro, viu?
Reviro os olhos, mas ela continua.
— Café da manhã às sete em ponto, almoço ao meio-dia, jantar às sete da noite. Se atrasar, você fica sem. Confia em mim, ninguém quer ver a madame Abigail irritada porque você resolveu dormir cinco minutos a mais. Ah, e se for sair, sempre avise à madame Abigail ou aos monitores. Não queremos ninguém perdido por aí, né?
— Nossa, quanta liberdade! – minha ironia sai mais forte desta vez.
Tiny dá de ombros, como se não ligasse para meu tom.
— Regras são regras. É isso ou a madame Abigail coloca você pra limpar as escadarias com uma escova de dentes. – Ela sorri novamente — Enfim, meu quarto é o segundo à esquerda no final do corredor. Qualquer dúvida, pode bater lá.
Ela faz uma pequena reverência exagerada e se retira, ainda sorrindo, enquanto me deixa ali com as "regras" rodopiando na minha mente.
Eu a encaro, sentindo a ironia crescendo dentro de mim.
— Só isso? – pergunto, com um tom claramente debochado. Esse lugar tem mais regras do que liberdade.
Tiny pisca algumas vezes antes de soltar uma risadinha curta, como se minha resposta fosse a coisa mais divertida que ela ouviu o dia todo.
— Acho que só. Por enquanto – diz, sorrindo novamente. — Bom, vou deixar você descansar. Não quero atrapalhar.
Antes que eu possa responder, ela sai e desaparece pelo corredor, fechando a porta atrás de si. O silêncio retorna tão rápido que chega a ser atordoante.
Olho para as sacolas cheias de roupas espalhadas. Cada uma parece um lembrete gritante de como estou fora do meu próprio mundo. Com os ombros pesados, ajoelho-me para vasculhá-las. Encontro vestidos, saias, croppeds... tudo luxuoso, tudo completamente alheio a mim. Finalmente, depois de muito procurar, acho algo mais simples e confortável.
Com as roupas em mãos, pego também algumas peças íntimas e sigo para o banheiro. Agora, finalmente, posso me livrar do vestido da noite passada. Ele pesa como uma corrente ao redor do meu corpo, prendendo-me há memórias que não quero reviver. Fecho a porta do banheiro, trancando o mundo lá fora. Ao ligar o chuveiro, a água quente desce pelos meus ombros como um alívio momentâneo. Meus músculos relaxam, mas minha mente voa. As manchas cinzas na minha pele são levadas pela água, escorrendo pelo ralo, mas a sujeira emocional permanece. Meus olhos se fixam nas lajotas brancas enquanto memórias de ontem se infiltram como veneno.
Vejo o fogo outra vez. Sinto o calor, o cheiro de queimado, o desespero que paralisa. E, no meio disso tudo, vejo meus pais. O rosto deles se desmancha em minha mente, e a culpa vem como uma onda, me afogando.
Se eu não tivesse insistido em ir... Se eu tivesse ficado em casa...
A raiva sobe pelo meu peito, queimando como o incêndio que destruiu tudo. Meus punhos se cerram, e a água quente não é suficiente para esconder as lágrimas que escorrem pelo meu rosto. Não consigo mais segurar. Desabo, soluçando alto, meu corpo deslizando pelas lajotas até eu estar sentada no chão do box. A água continua a cair, abafando o som do meu choro. Não sei quanto tempo fico ali, mas, por um momento, permito-me sentir tudo. O vazio. A dor. A culpa. Apenas a água testemunha meu colapso, levando minhas lágrimas pelo ralo junto com as cinzas invisíveis do que fui. A solidão beija minha face e me abraça em seu véu escuro. Permito-me sumir nela.
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