Capítulo 2
De quem foi a ideia infernal de viajar nesse inverno? Claro que foi minha. Devo concluir com certo ardor nos músculos. Depois do primeiro trem e dos comboios de carro, estávamos exaustos. Mas, enquanto eu planejava a minha vingança para quando encontrasse a rainha, Matteo estava ocupado com o corpo quente de uma qualquer. Não que me incomode, não me importo na verdade, porém, eu queria mais foco na nossa missão. Afinal de contas não foi fácil salvar o rabo lupino dele, pra deixar de lado o meu objetivo maior. Como viajamos sempre de carro ou trem para chamar menos a atenção, demoramos dias numa viagem que de avião seriam horas. As maravilhas de ser de uma família de rastreadores com olfato apurado, parte 1.
A neve cai a cada momento mais densa sobre as estradas, temos sorte de estarmos entrando já no trem. O segundo trem está apitando a partida enquanto com esforço nos embarcamos saindo da plataforma, um calafrio passa direto pela minha espinha quando fito um homem parado atrás de mim, com olhos carmesim, e uma pose confiante demais para ser de um humano comum, poderia ser um vampiro mas, não tenho tempo para isso, apenas aviso Matteo de que precisamos encontrar nossas cabines (uma do lado da outra no vagão 12) enquanto nos preparamos para o ataque. Se pode pensar que estamos fracos, mas, acreditem estamos mais fortes e prontos do que nunca. Depois de todo o tempo que tive para refletir em minha vingança nunca pensei que viria tão rápido quanto veio, meus dedos se curvam com força na minha mochila, nela estão tudo o que possuo e preciso para atravessar o coração da vadia, não antes de fazê-la sofrer o que nós sofremos todos esses anos.
Uma mão pesada vem pro meu ombro antes que eu tenha a chance de fechar a porta da minha cabine, um corpo pesado se joga comigo dentro da cabine e já estou com uma das minhas facas na garganta do meu atacante antes que ele possa piscar os olhos. Ele é rápido, assim como eu e somos uma batalha de titãs dentro de um espaço confinado, apesar de analisar e dissecar suas intenções, seu rosto não passa nada do que eu gostaria de ver, não me teme, não quer me atacar para matar, não quer se curvar. Não sei o que esse cara pode querer comigo, mas, é o mesmo cara que eu vi quando estávamos entrando no trem, com os olhos ainda brilhando com aquele tom de ouro e o sobretudo negro, seus cachos se encaracolando até a altura do queixo, um ar de superioridade brilha nele como uma segunda pele mal disfarçada.
-Ranielle Ferreira, que prazer. Mas, devo dizer que seus pais ficariam desapontados ao te ver empunhar uma faca contra um aliado. O que pensariam de você se soubessem seus planos infantis de invadir uma fortaleza dos vampiros dentro de um território de paz?
Minha cabeça gira procurando por nomes e rostos enquanto tento focar a minha frente. Uma mão ágil me desarma derrubando a faca e com ela as minhas intenções sinceras de mandar aquele garou se foder, provavelmente o cara era só um observador, responsável por manter uma das princesas longe de confusão, voltando a fita... é princesa! A droga que deveria ser perfeita e ficar encerrada num castelo de verdade. Eu seria uma defunta antes de permitir isso. Apesar de longe do conselho e das armadilhas dele, eu ainda sentia o peso da minha tiara de cromo sobre os cachos dourados. Minha reclusão não diminuiu o título, assim como a retirada de sua família das terras do avô não o fez.
-Não me espanta que não se recorde de mim... - o estranho continuou num tom contemplativo enquanto coçava a barba rala. - Era apenas uma bebê quando fomos enviados para observar, peregrinos como nós não são feitos para a guerra, e, é contra o nosso instinto sair matando como você está fazendo. No entanto reconheço um bom trabalho quando vejo.
Quando nossos olhos se encontram senti o peso das palavras penetrar até meus ossos. Quantos outros 'observadores' me viram trabalhar nos últimos meses? Meus cachos balançam numa negativa pobre sobre o que quero dizer. Esse estranho não deveria me ver, ninguém deveria. Eu sabia que trocar de passaporte não me faria invisível aos olhos e instintos, mas, ser seguida de perto por alguém como ele arrepiava até mesmo a linha mais tênue de segurança que já senti na vida.
-A vantagem, é que respondo à sua avó e mais ninguém e apesar da frustração dela em ver que seus pais não conseguem te manter segura, ela também admira seus esforços.
O pensamento em vovó tira uma das batidas do meu coração do ritmo, enquanto me sinto mal por ter saído sem dizer nada a ela. Tinha certeza de que ela me entenderia caso eu tivesse lhe dito, mas o medo era maior do que pensamentos incertos, opto pelo caminho mais fácil.
-Ok, e você seria um tipo de tarado de merda que fica me observando enquanto troco de roupas? Que nojento isso, devia se envergonhar.
-Sua torpe tentativa de humor, não vai fazer muita diferença enquanto formos à terra da Rainha. Sua avó quer ver você. E, não menina, não somos enviados para te vigiar nesses detalhes. Mas, para impedir que façam com você o que fizeram com seu avô. Já ouviu a citação de Shakespeare? "Há algo de podre no reino da Dinamarca?" Acha que ele tirou isso de onde?
Por pura vontade franzi o cenho até que ele soubesse que poderia segurar uma moeda entre as sobrancelhas e ela não cairia com facilidade.
-Meu nome é Louis, mas, pode me chamar de Lou, se desejar. Eu fui o que mais próximo de amigo seu avô teve na vida. E acredite em mim, quando digo que daria por ti minha vida.
Ajoelhando na minha frente e estendendo a faca para mim, que tomo com bastante avidez, ele mantém os ombros baixos em tom de rendição. Não quer me ferir, nem quer me matar. Ainda é difícil processar suas palavras. Meu avô não tinha amigos fora da família, pelo menos não que eu soubesse, e, ainda que tivesse esse amigo pode ter virado a casaca há tempos. O que só me planta mais dúvidas na mente. O que raios aconteceu com as alianças simples e a guerra que travamos desde o início dos tempos? Esse cara é louco se acha que vou confiar nele simplesmente porque está se prostrando.
-Olha... Agradeço seu interesse em ajudar e sei que em algum momento suas intenções foram as melhores, mas, por enquanto, vou ficar sozinha mesmo, se decidir que preciso não exitarei em chamar. - Com uma piscadela me afasto ainda de frente para ele. Não é prudente dar as costas à qualquer um, ainda mais sem uma boa armadura de kevlar debaixo da roupa.
-Ran... Sua avó quer te ver, a idade avançada dela exige que você vá até ela. Mas, não se engane, como disse antes, há algo de podre no reino e não é o sangue dos vampiros.
Um lampejo de entendimento depois, eu sinto aquele aroma. Rosas brancas com passiflora. Sua avó sempre adorou esse cheiro que a lembra de quando Rani era uma bebê. Aquele cheiro que a acompanha em qualquer lugar onde vá. Arreganhando a porta de sopetão, me coloco a correr no corredor estreito enquanto Louis corre atrás de mim, desenfreados loucos para chegar a um objetivo que ainda não sei qual é. Na oitava cabine depois da minha, no outro vagão, ali está... o aroma mais doce e puro que já senti na vida. A vida de vovó pulsando debaixo de camadas de indescritível familiaridade.
-Antes de entrar... - Louis de novo. O que será que eu preciso fazer pra me livrar dele? - Ela queria que você soubesse que gostaria de ser lembrada como a loba forte que você conheceu.
Meus olhos se arregalam e minhas sobrancelhas somem detrás dos cachos enquanto fico boquiaberta. O que será que houve com vovó para todo esse alvoroço? Apesar de acreditar que nada poderia abalar minha doce vovó, temo por nós antes de conseguir discernir com exatidão suas palavras, a porta é aberta à minha frente e mesmo não acreditando em anjos e santos, começo a orar.
O cômodo está escuro e a pouca luz filtrada pelas cortinas parece pouca perto do tamanho da tensão que está presente nos meus ossos. Meus olhos se ajustam rapidamente à senhora sentada sobre a cama, enquanto começo a avaliar que ela parece ter o olhar perdido ao longe, como se conseguisse sentir apenas o calor da luz ao invés da luminosidade que penetra pelas frestas. Sua cabeça se vira para mim e tenho um vislumbre de suas rugas demonstrando a exaustão causada pelos anos de lutas e batalhas. Sua mão se estende enquanto seus dedos se curvam me chamando para me ajoelhar, sua coroa pendendo dos cachos negros me faz perceber como senti falta dessa familiaridade. Minha vovó.
-Aproxime-se criança, reconheceria esse cheiro de determinação em qualquer lugar, Ran. - Meu joelho esquerdo se dobra e encontra o chão num baque surdo, a poucos centímetros da mão dela. Minha cabeça está curvada encarando o traje confortável que a envolve nas pernas. Ela poderia ser uma rainha vestida inclusive com trapos, mas, está apenas numa saia e chinelos de idosos, confortável e acessível. Minha vovó.
-Senti sua falta, criança. Não tem idéia no que nos fez passar ao assumir para si essa responsabilidade, e, devo dizer - ela acrescenta com um sorriso complacente. - que me diverti muito recebendo os relatórios dos seus avanços sobre os vampiros. Fez um trabalho interessante com eles.
-Vó... - E é a única palavra que preciso para cair em seu colo estendido à minha frente. Seus dedos envolvem meus cabelos como meu avô costumava fazer, como minha mãe costumava fazer e por alguns momentos me sinto em casa de novo. Como se não tivesse passado tanto tempo vivendo sozinha em mim.
Meus olhos voam para uma figura parada ao seu lado, minha tia tem os lábios franzidos em desgosto e não esconde a violência detrás de seus olhos. Galliard's são tão previsíveis que seria um crime contra nós menosprezá-los. Francis me encara como se quisesse arrancar meu coração e dar de comer aos meus parentes próximos. Como próxima na linha de sucessão à nossa matilha, acredito que ela deveria ter mais colhões que eu e ter ido ela mesma caçar os que nos desestabilizaram. Mas, ela não faz nem um movimento e se pudesse acreditar, diria que é apenas uma estátua.
-Você nos pôs loucos, se é que mais loucos do que normalmente, minha criança. Senti muito a sua falta.
-Ah, vovó, também senti sua falta.
Somente quando miro seus olhos, que sempre foram o tom amêndoa mais lindo do mundo, que percebo que tem algo errado. Há algo que não está certo nela, no modo como encara o vazio entre meus olhos e no modo como seus lábios tremem antes de ela conseguir se controlar.
-O que aconteceu á senhora? - Pronuncio numa voz fraca, antes de notar que eu mesma estou balançada por um sentimento de choque. Chegou a hora para ela.
-A idade, a velhice foi o que me ocorreu. Não se pode viver 500 anos e permanecer jovem para sempre, você sabe. A nossa eternidade é finita, e, a minha está chegando ao fim, meu amor.
-Mas, a senhora ainda é tão jovem... Tão forte. - Como se meus sentimentos fossem palpáveis, uma lágrima cai de meus olhos por mais que eu tente controlá-la. O cheiro agridoce de sal e açúcar numa mistura tóxica que queima minha garganta está me deixando estilhaçada. Nunca percebi o quanto a morte do meu avô afetou todos à minha volta. Me encerrei na minha dor e na dor de mamãe, antes de conseguir entender que todos estavam definhando por causa dele.
A ordem foi restabelecida, sem um substituto propriamente nomeado, não tínhamos muito com o que trabalhar e foi decidido em um rito, que meus tios Herman e Francis seriam os líderes da matilha, respondendo à minha avó, que por sua vez, devastada em dor, mal conseguia se firmar para tomar decisões por algum tempo. Foram eras de muita tristeza e bastante afinco para conseguir nos restabelecer, e, cada um lutou como podia contra o luto, no caso de mamãe se enclausurou em si, negligenciando a dor dos outros. No meu caso, fomentei um plano para acabar com quem tinha acabado conosco. Minha tia me encara com desgosto como se pensasse que a minha loucura vai nos afundar mais do que já estamos fundos até o pescoço.
Afasto os cachos dos olhos analisando a cena com a precisão adquirida e meus instintos afiados. Minha tia não usa sua coroa, e, por algum motivo aquilo me incomoda, mas, não posso deixar de observar que vovó é a única que parece austera, ainda que sua idade denuncie o cansaço e a cegueira tenha cobrado de sua expressão a violência que nos é conferida ao nascer. Ainda acredito em sua força e em seu poder, mas, ela parece agora apenas uma doce senhora.
Queria que as circunstâncias fossem diferentes. Queria poder me agarrar a ela e dizer que sinto tê-la desapontado, mas, ela permanece centrada apenas na minha respiração, enquanto sinto seus membros relaxarem a cada minuto mais na minha presença.
-Eu já fui forte, Ran. Atualmente sou apenas uma velha cansada e doente, que faz o que pode para continuar vendo os netos fazerem coisas maravilhosas. E, é sobre isso exatamente que eu gostaria de falar contigo. Seu avô, tinha grandes planos não apenas para nossa matilha, mas, para sua mãe e você.
Meus olhos se abrem de espanto ao perceber que o ar na sala parece parado e estéril. É como se vovó tivesse nos dado em todos uma bofetada forte no rosto, nos fazendo curvar em protesto.
-Ele tinha uma visão tão diferente de família e responsabilidade como você parece ter, presumo. Se os relatórios que recebi lhe fazem justiça digamos que ele ficaria feliz com a escolha de líder que ele fez antes de falecer.
Agora eram meus joelhos fraquejando ainda mais, enquanto me apoiava parcamente às pernas da minha avó. Seria possível que ela estivesse dizendo algo meramente parecido com o que eu parecia escutar? Seria possível que toda essa neve tivesse congelado meu cérebro e eu estivesse na verdade, no chão da minha cabine morrendo de hipotermia? Nem nos meus mais loucos delírios, imaginaria algo assim, e como a minha imaginação não é fértil o suficiente, eu acredito que tenha ouvido corretamente. Vovó acabou de dizer que eu fui escolhida Líder?
-Isso não é possível, ele... Não pode ser sério, vovó, isso não tem graça.
-Oh, querida, acredite em mim, eu sei que não tem graça, quando foi escolhido ele também não achou graça nenhuma, e, continuou sem achar até os 530 anos com os quais morreu. Acontece, que um Alfa pressente a hora da partida e ele nomeia alguém para continuar por ele. Como você não tinha noção da responsabilidade, deixamos que sua mãe te levasse para longe, apesar de que, devo dizer você fez um trabalho maravilhoso, estamos todos orgulhosos.
Com a cabeça zonza sem compreender direito o que realmente me espera, passo os dedos sobre os cabelos eriçando os cachos e fazendo com que se baguncem duas vezes mais do que normalmente estão, meus dedos correm por eles enquanto tento formular alguma linha coerente de pensamento. Bom... Coerente com o que acabei de ouvir, quer dizer então, que eu ruleio tudo agora? Isso não pode, definitivamente, estar certo.
-Posso cheirar a sua confusão, e, tem um odor desagradável, Ranielle. Apenas pense, nas aulas de etiqueta, e, nas aulas de esgrima, manuseio de armas, diplomacia.. Acha mesmo que todo lupino tem esse tipo de treinamento se não for para assumir algum alto cargo na hierarquia? A sua ilusão já durou tempo demais, não podemos permitir que continue se arriscando desta forma, não é só sobre você. É sobre uma família inteira, sobre gerações e gerações pesando sobre os seus ombros agora. Não pode haver dúvidas sobre as suas decisões.
Forço minha cabeça para cima, entendendo agora porque minha tia não está usando 'sua' coroa. Agora ela é minha, e, assim como ela o poder que deve ser concedido apenas à mim. WOW! Isso só pode ser brincadeira. Eu não quero uma coroa agora, não quando estou tão perto.
-Vovó, passei muito tempo nesse plano de conseguir nossa merecida vingança. Ela merece nos pagar por tudo o que fez e pela falta absurda que o vovô faz. Não preciso de uma coroa no meu caminho agora. E, como não sinto vontade de nomear ninguém pro meu lugar, acredito que não vou morrer na empreitada.
Antes que pudesse pensar, minha avó saltou da cama, agarrando meu pescoço e segurando minha cabeça contra a parede, batendo minha nuca contra o que parecia ser concreto ao invés de madeira e enquanto eu vejo estrelas por toda a cabine, pela minha visão periférica, sinto um sorriso brotando nos lábios da minha tia... Ora, droga, as palavras do peregrino fazem ainda mais sentido agora, 'há algo realmente podre nessa porra de reino'. Felicidade pela minha desgraça deveria ser algo imperdoável, eu sempre esqueci de que apesar de me tratar com delicadeza e respeito, a minha avó nunca se deixaria negar sua natureza, Galliard's sempre serão Galliard's.
-Eu vou dizer isso, apenas mais uma vez. Apesar de todas as falhas e de não ser forte em resoluções como nós, o seu avô enxergou em você algo que nenhum de nós pode negar: A sua cabeça dura, vai te levar ao mais profundo abismo ou ao pico mais alto, não apenas da nossa família. E, eu devo dizer - aqueles olhos cegos furiosos me fuzilavam, droga... Ou ela me mataria ali mesmo, ou me deixaria pelo menos incapacitada por alguns bons tempos. - que me não me surpreende que você queira fazer exatamente o que os estúpidos dos seus tios disseram que você faria. A sua maior força é a sua maior fraqueza, lembre-se disso.
Depois de mais de dois anos caçando vampiros por uma Europa infestada, eu nunca acreditei que pudesse ouvir algo similar da minha avó. Ela chamou os filhos de estúpidos e reconheceu que eu era uma má escolha em apenas algumas palavras. Isso sim, é que é ser uma rainha, daquelas que causa inveja numa corte inteira. Fico me perguntando o que a Elizabeth II faria na presença da minha avó... seria divertido ver uma rainha se curvando pra ela. Cortar esses pensamentos, eu preciso cortar esses pensamentos.
-Vovó, eu te peço mais um tempo, estamos perto agora Matteo e eu, vamos conseguir.
-Não seja tola, Ranielle, ele não tem noção do que o espera e só te segue como um cachorro sem dono porque sabe que você é a candidata escolhida para o cargo de Alfa da matilha. Ele tem interesses egoístas a respeito do que te acontece, não se importa muito com o que acontecer desde que ganhe uma parte do bolo.
-Não, vovó, ele não é assim, é um parceiro muito bom em batalha e bastante útil em torturas.
-Então, você é a mais cega de todas as minhas netas. E, vá por mim, algumas das filhas dos seus tios e tias podem realmente ser míopes em vários aspectos. Depois a cega sou eu...
Aquelas palavras, vindo dela, me deixaram com bastante medo de cair numa armadilha maior que eu, mas, não estava disposta a recuar para nada, nem mesmo para minha avó, ou ela engolia, ou poderia me dispensar sem honras na primeira vala que encontrássemos, seria uma escolha fácil para ela, ou pelo menos era isso que eu imaginava.
-Enquanto a senhora pensa isso de mim, eu só acredito que estou no caminho certo, porque era isso o que vovô faria, correr atrás dos traidores... se estivesse vivo. Não acredito que ele gostaria que nos sentássemos na beira de uma fogueira e comemorássemos sua vida como se ele não tivesse dado para nos proteger. Se eu posso ir atrás da vadia, eu vou com ou sem a sua permissão. E, isso faz de mim uma traidora do meu sangue? Isso faz de mim alguém que precise ser caçado?
A minha força de vontade era grande, assim como minha teimosia e o parco controle sobre o processo de transformação. Minhas unhas e caninos se alongaram enquanto meus olhos brilharam em vermelho intenso, fazendo com que vovó saltasse para trás com seus reflexos desenvolvidos em anos de treinamento e experiência.
-Eu VOU atrás dela, com ou sem a sua permissão, com ou sem a sua aprovação. E eu vou sozinha se for preciso.
Enquanto observava a pequena cabine à minha volta, pude ver um vislumbre de brilho nos olhos de Louis, era óbvio pra mim que eu jamais atacaria minha avó, mas, ele não tinha como saber isso, correto? Tia Francis se posicionou estrategicamente atrás da cadeira no centro do aposento, enquanto Henrietta permaneceu me encarando com aqueles olhos mocos, e, sim, o nome de vovó é Henrieta.
-Você não sabe com o que está lidando, criança. Ela é o demônio encarnado.
-Vocês é quem não sabem com quem estão lidando. - Ao longe, era possível ouvir o assovio do trem, nos levando à Portugal. Eu sentia a excitação nos ossos, como sempre antes de uma caça, enquanto estava me preparando para uma batalha maior, precisava vencer essa que estava na minha cara. - Eu não quero saber se precisar morrer para ter minha vingança. Eu vou tê-la, com ou sem a ajuda da matilha.
-Vou com você. - Foram as palavras que ouvi quando me aquietei e prestei atenção. Louis não tinha dito uma palavra sequer desde que entrara comigo no cômodo. Presenciando o que poderia ser uma luta de gigantes, o melhor que pôde se segurar foi até aquele instante. - Com sua permissão é claro, senhora.
-Você tem minha permissão para se matar com essa inconsequente. O que será de nós, e, do futuro da nossa matilha sem um alfa, Ranielle? O que vai acontecer conosco?
-Vocês se viraram bem sem mim até hoje, não acredito que vão ter problemas agora. Eu não tenho interesse em ser uma dessas princesas que fica esperando pelo resgate do príncipe... Eu sou uma guerreira, uma lutadora e pode me chamar de louca, mas, ele me faz falta.
Lágrimas brotando do canto dos olhos da minha avó denunciavam sua dor. Eu podia sentir irradiando dela como uma aura negra pronta para engolir tudo e todos à sua volta. Porém, como uma rainha, ela não derramou nenhuma delas, não se permitiu chorar e continuou firme no propósito de me demover do fato de que eu precisava governar. Ora, por favor... Se não obedeci minha mãe à partir dos 5 anos, não seria nem mesmo meu respeito nem o temor que me fariam obedecer qualquer outra pessoa. Eu seguiria em frente.
-Henrieta... Eu te amo. Muito e a senhora sabe. Porém, é um dever que preciso cumprir com a minha alma, não vou descansar enquanto não cortar a garganta da bruxa maldita que fez isso. - Minhas unhas se recolheram e meus olhos voltaram ao castanho normal. Mas, o brilho neles era inconfundível. Eu não me reduziria ao que era desejado de mim, eu lutaria por nós ainda que isso me custasse a vida... Pode parecer dramático, mas, eu estou pronta para morrer pelos meus. - Enquanto eu vou, preparem o terreno para minha coroação depois que eu voltar com a cabeça dela numa estaca.
-Só posso desejar que Gaia esteja contigo e que Atlas te mantenha sobre o manto sagrado. - Estendendo as mãos sobre a minha cabeça num movimento de benção, ela começou a entoar os cânticos. Sem me dar conta exatamente, acabei entoando junto. Nossos uivos graves reverberando pelas paredes, enquanto em uníssono Louis e tia Francis se juntaram à nós. - Vão como feras e voltem sãos.
E com essas palavras nos despedimos. Fiquei imaginando o que faria com que minha avó se movesse tão longe de casa para perto de mim, era realmente apenas o medo de que algo me ocorresse ou medo de que eu descobrisse algo que não deveria? Independente do que fosse, eu descobriria.
~~
Pra mim agora a história começa a tomar mais 'corpo'.
Espero que estejam amando essa viagem tanto quanto eu <3
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