5 - Mudança de Planos (B)
Breanne Lookword
Não era por aquilo que esperávamos quando avançamos sobre a Cidade da Luz. O assombro passou por todos nós como uma corrente elétrica.
Não seria a gente a trazer a guerra pois ela já se instaurara nos alicerces modernizados do burgo.
Corpos desfalecidos atirados contra a calçada, latas de lixo em chamas, uma gritaria incessante. Pessoas corriam umas atrás das outras como se suas vidas dependessem disso, e ao que parece dependiam.
Vi um homem cercando um garoto de aproximadamente quinze anos. O garoto tremia apavorado mas não tinha para onde correr. Fiz menção de avançar para defendê-lo e acabei sendo refreada por uma mão grande apertando leve porém firmemente meus ombros. Lancei a Walter um olhar afiado. Quando mirei de volta no menino, já era tarde demais.
O homem segurava seu pulso como se o ato lhe desse poder. Estreitei os olhos tentando entender o que acontecia ali. Os algarismos da pulseira do garoto diminuíam enquanto aqueles no bracelete do homem aumentavam.
No momento em que sua mão deixou o pulso do moleque, este caiu de joelhos já sem vida no chão.
Novamente fui impedida de ir em direção à cena.
Como combinado eu assumia um posto ao lado de Walter, na linha de frente. Nossos aliados formavam correntes de proteção em volta da floresta. Não seria possível que todos entrassem, por isso convocamos cinco pessoas além de nós para executar a missão.
Eram eles, Kurt, Iron, Blayde, Trevor e Thalia.
- Com toda essa confusão será mais fácil passarmos despercebidos. Aparentemente não somos o maior problema deles. - Proferiu, Iron.
Dos outros três homens ele aparentava ser o mais forte, os bíceps se contraiam mesmo nos pequenos movimentos que efetuava. Várias tatuagens cobriam a pele castanha e a postura fazia com que eu me recordasse de figuras militares presentes nos livros de história do meu pai.
Entramos em uma alameda de árvores artificiais robotizadas, meus olhos queriam captar tudo de uma vez só mas havia muito a ser observado e grande parte não fazia sentido nenhum pra mim.
Os prédios interativos eram lindos. Todos revestidos de luz, alguns suspensos no ar, outros que se espalhavam no céu, uns faziam emissões de imagens bonitas, coloridas e dançantes. Mais a frente me deparei com um em especial que me chamou atenção.
Era como uma parede de água com vários andares, os leds mudavam de cor formando uma cachoeira cromatizada.
Levianamente estiquei a mão para a cascata de cores. Desapontada percebi que não se tratava de água.
- Tudo comandado lá de dentro. - Thalia falou ao pé do meu ouvido. Os olhos acompanhavam a extensão do edifício.
Thalia podia parecer doce a primeira vista porém sua voz exalava autoridade. O cabelo cor-de-rosa se encontrava em um estado desbotado e sujo, se pudesse falar com certeza ele gritaria.
Continuamos seguindo o grupo. A diante encontramos mais dois corpos no chão. Me agachei diante do que se localizava mais próximo.
No bracelete constavam os dígitos 00000. Os olhos da vítima permaneciam vidrados, congelados em absoluto terror. Fechei suas pálpebras e mentalmente fiz uma prece para que estivesse em um bom lugar.
Walter e Iron trocavam teorias a respeito do cenário que havíamos encontrado.
- Veja se não é óbvia a situação : O Sistema quer todos mortos! - Kurt se manifestou se entrometendo na conversa.
- Por quê eles iriam querer matar o próprio povo? - Perguntou Blayde como se a hipótese do amigo fosse incabivel.
- Porque não precisam mais deles...-Foi sua única resposta e então inexpressivamente voltou a andar.
Kurt era um dos nossos aliados mais relevantes. Era filho da luz. Nascido e criado no meio deles.
Aos dezessete anos após negar lealdade às ordens do Sistema, ele conta que foi literalmente descartado. Deixado para morrer nos entornos da floresta e apenas por um milagre conseguira encontrar pessoas que o ajudaram do outro lado.
Desativaram seu bracelete uma vez que pensaram que estivesse morto mas Kurt vinha estudando o apetrecho desde então, pensando em uma forma de desitegrá-lo em massa.
Pregava uma analogia com zumbis e Kripitonita. De acordo com ele, o bracelete roubava o "cérebro" de pessoas facilmente manipuláveis ou simplesmente as deixava mais fracas.
- É logo ali. O Prédio Operacional. - Apontou para o enorme edifício flutuante. Aquilo desafiava qualquer lei da física. - Não deve estar vazio.
Trevor, o mais novo de nossa turma que até então permanecera calado, deu um passo a frente. De dentro de sua mochila retirou uma espécie de binóculo esquisito com várias lentes caleidoscópias.
- O que é isso? - Blayde questionou, como o grande curioso que andava se revelando.
Impaciente por uma resposta pegou o aparelho da mão de Trevor e colocou nos próprios olhos mirando o chão.
- Minha Nos... - O garoto pegou seu binóculo de volta fuzilado Blayde com a fúria de mil sóis.
- É uma lente de raio-T. - Explicou limpando o artefato com um lenço. - É composta por chips que geram e irradiam ondas em terahertz.
Blayde abriu os braços ironizando com as sobrancelhas.
- Legal, amigo. Agora fala em uma língua que eu consiga entender.
Trevor apresentava-se desconfortável com a situação.
- Será que você consegue ser um pouco menos inconveniente, Blayde? - Vociferei.
Diferente do que esperava Walter não me repreendeu. Teria bradado algo muito pior se eu não tivesse feito antes. O centro das atenções se limitou a torcer o nariz pra mim.
Trevor pigarreou.
- Se quer mesmo saber, através dessa belezinha aqui - Deu umas batidinhas no binóculo. - Consigo enxergar o interior do prédio. Sabe o que é interior, não sabe?
Thalia deixou escapar uma risada e se curvando para mim disse em meio tom :
- Pela expressão do Trev ele perdeu oitenta pontos de QI quando disse "belezinha".
O garoto realmente parecia chateado consigo mesmo.
- Me diga o que viu depois que retirou abruptamente o binóculo de minhas mãos. - Solicitou a Blayde que mantinha uma carranca e os braços cruzados no peito como uma criança mimada de seis anos.
Por incrível que pareça ele respondeu a pergunta.
- Olhei para a calçada. Vi um monte de pequenas luzes. Como estrelas no chão.
Trevor sorriu. Era um rapaz esperto. Um notável amante da ciência.
- As calçadas são pavimentadas com fragmentos que rastreiam condições metereologicas, previsões do tempo e outras interações, sem contar as chapas eletrônicas. A lente captou a composição de todo esse mecanismo : energia! - Falou como se acabasse de descobrir o fogo.
Enquanto Iron fazia um comentário a respeito da explicação detalhada de Trevor, minha atenção se direcionou a alguma coisa na entrada do prédio operacional. Se movia rapidamente para o leste.
Puxei Walter apontando para o homem que saia às pressas do edifício. Ele usava um jaleco branco, o que só poderia significar que era parte do Sistema.
- Pessoal, mudança de planos... - Walter anunciou enquanto seguíamos o sujeito a passos largos.
***
Por dentro da floresta era impossível enxergar as Moradias Flutuantes. Quando criança eu sonhava em finalmente poder vê-las. Foi quando comecei a escalar árvores.
Mas a visão oblíqua jamais chegou perto de descrever a realidade.
Bolhas de vidro gigantes cobriam as plataformas flutuantes, e acompanhei com os olhos as extensas estruturas conectadas com infraestrutura para formar magestosas casas no meio do mar.
O homem que seguíamos entrou em uma delas.
- Eu vou. - Me prontifiquei.
Quando Walter insinuou que viria comigo levantei a palma para que ficasse.
- Ele pode tentar fugir pela saída de emergência. Você não vai deixar que escape. - Fiz um gesto elevando o maxilar para Iron e Trevor. - Venham comigo.
Walter não pareceu feliz em ser deixado com a parte menos divertida, mas ele estava sendo cordial comigo desde... o beijo, e eu confesso que estava tirando certa vantagem.
Descemos até a parte de baixo da casa onde Trevor apresentou mais um de seus aparelhos. Este em questão tinha o formato de uma chave antiga com um brilho azulado quase sobrenatural.
- Iron, você está em cima de uma plaqueta de fios, vamos perfurar a bolha e precisamos desativar o alerta de rompimento para que a segurança não seja acionada. Sabe desarmar uma bomba? - Os dois se encararam, Iron um tanto confuso respondeu a nosso colega :
- Nunca tentei antes.
- Tudo bem. Só mantenha as mãos firmes e siga seus instintos. - Trevor abriu a plaqueta onde ficaram visíveis vários fios de luz colorida.
Iron se ajoelhou ao lado do emaranhado, me fitando como se pedisse uma sugestão.
- O que acontece se cortar o fio errado? A gente explode? - Perguntei.
Nosso geek negou com a cabeça parecendo se divertir diante da situação.
- Certamente não. Apenas usei a comparação com explosivos porque a situação se assemelha... Se cortarem o fio errado seremos descobertos.
- E talvez depois disso realmente voaremos pelos ares mas por quê não pensar positivo, não é mesmo? - Ironizei observando novamente os fios. - Iron, corta o verde.
Sua testa se encrespou refletindo a incerteza.
- Meu instinto me diz para cortar o vermelho. - Respondeu passando os dedos por ele.
Não! Todo mundo sabia que vermelho berrava perigo.
- O meu diz que é o azul. - Trevor disse com sua calma enervante.
Dei de ombros.
- Ótimo, corta o azul. Trevor é o esperto aqui, ele deve saber mais do que a gente. - Conclui incitando Iron a cortar o maldito fio.
Já havia pousado a chave sob ele quando Trevor bradou:
- Pare! - Olhamos ao redor pensando termos sido descobertos. - É o amarelo.
Soltei um suspiro de aborrecimento segurando-o pelo colarinho e perdendo toda a serenidade que tentava manter nos últimos minutos.
- Acha que estamos aqui pra brincadeira? - Ele negou ligeiramente com a cabeça. O soltei.
- Existe um magnetismo psicológico nos fios dessas bolhas de vidro. - Ajeitou a gola da camisa. - São como imãs enganatorios. Eles nos seduzem para uma pista falsa. Cada um de nós foi atraído por um dos fios, o único que sobrou foi o amarelo, confiem em mim... É ele.
Pisquei por alguns segundos tentando assimilar as informações. Não fazia sentido nenhum.
- Sabia disso esse tempo todo? Por quê não falou antes?
- Não tinha tanta certeza. Queria comprovar primeiro.
Iron não esperou por uma segunda permissão, cortou o fio amarelo.
Cinco segundos se passaram e deduzimos que o plano obtivera sucesso. Todos respiramos aliviados.
Trevor fez uma abertura na bolha por onde tivemos acesso à casa.
Entramos em uma espécie de porão nos fundos e acabamos parando em uma garagem.
O sensor das portas obviamente não fez o reconhecimento facial e ameaçou acionar um alarme em cinco minutos caso a identificação não fosse feita.
- Consegue dar um jeito nisso, Trevor? - Questionei torcendo para que a resposta fosse positiva.
Ele retirou um Tablet de dentro da mochila. Onde ele conseguia aquelas coisas?
- Preciso descobrir o nome do morador... - Mordeu os lábios enquanto digitava algum tipo de código além da minha compreensão. - Aqui está : Donovan Batchelor. - Congelei durante alguns segundos, o coração pulsando forte. - 30 anos. Dirigente do Departamento de Desenvolvimento Sustentável no Ambiente Tecnológico, também conhecido como DDSAT.
Batchelor... Não podia ser. Eu devia ter ouvido errado ou com certeza era apenas uma infeliz coincidência. Consegui me recompor depois que Iron perguntou três vezes se tinha algo errado comigo.
Me limitei a assentir enquanto a primeira vez que ouvi aquele nome me veio à mente.
Era o começo da primavera e pequenas flores desabrochavam no bosque em frente à Taberna onde meu pai trabalhava. Eu não costumava acompanhá-lo, até porquê não era o local mais adequado para uma criança de oito anos, mas na noite anterior uma gripe havia me colocado de cama, e naquele dia, ele queria me supervisionar de perto.
Lembro de correr pelo bosque florido e subir nas árvores, lembro da cozinheira ir até a horta, pegar um rabanete, dar uma beliscada e em seguida me abrir um sorriso cúmplice. Lembro do garoto perdido, que se escondera no porta-malas do carro dos pais para conhecer de perto a entrada do Vale da Escuridão, o mais próximo que chegaria dos perigos da floresta.
Lembro de observá-lo de cima da copa com curiosidade e cautela, e de seu sobressalto ao olhar pra cima e me ver. Das costas batendo no chão tamanho havia sido o susto, da roupa branca salpicada de terra. Ele choramingou, eu desci da árvore e o encarei por mais um tempo antes de perguntar o que estava fazendo ali. Iluminados costumavam frequentar a Taberna, afinal, era um ponto central entre um Valle e outro, mas nunca tinha visto crianças por ali.
O garoto me olhava com tanto assombro que os olhos esmeralda brilhavam. Nunca tinha visto olhos tão verdes e brilhantes em toda a minha pequena existência. Hesitante, ele finalmente pronunciou um tímido "Oi". Parecia tão aterrorizado que não sabia se deveria comprimentá-lo de volta. No entanto, algo em seu olhar frágil e ansioso me comoveu e estendi a mão em sua direção, ainda mantendo uma distância adequada. Quando estávamos frente a frente, ele me falou sobre como havia se escondido para chegar até ali. No entanto, a animação cedeu no momento em que a porta da Taberna se abriu e um casal saiu para fora.
A mulher que emergiu chamou minha atenção imediatamente. Seu corpo escultural e a elegância que exalava mesmo com vestimentas pesadas que se assemelhavam a uma farda me deixaram intrigada. Uma gargantilha brilhava em seu pescoço longo e seus olhos... Ah, aqueles olhos eram tão verdes quanto os do garoto. Fiquei fascinado por sua presença. O homem ao seu lado parecia distinto, com uma expressão séria e uma postura que denotava poder e autoridade.
Um senhor na entrada da Taberna os saudou como "Senhor e Senhora Batchelor!" O nome me pareceu engraçado à princípio, e quando me virei para perguntar ao garoto se aqueles eram seus pais, percebi que ele já havia corrido de volta em direção ao porta-malas.
Voltado ao presente percebi que faltavam apenas dois minutos para que o alarme fosse acionado.
- Sorte a nossa que ele não dirige a área de segurança porque nesse caso teria dificultado nosso trabalho . - Trevor desabilitou o sistema de identificação facial. - Agora só precisamos adivinhar a senha dele.
Iron deixou escapar uma risada amarga.
- Tá de brincadeira?
Minha Nossa, como aquilo era estressante e cansativo!
- Deve ser algo bem previsível como : SouUmaCadelaDoSistema123. - Falei andando de um lado para o outro inquieta.
- Vamos tentar DDSAT881... - Sugeriu já digitando os números na tela.
Faltavam quarenta e seis segundos.
- O que significa 881? - Iron perguntou afoito.
- É o número do edifício de DDSAT. - Explicou apertando em confirmar.
Prendemos a respiração por alguns segundos até que a porta se abriu com um leve chiado.
Soltei uma risada de alívio.
Os Iluminados eram tão tolos.
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