3 - Aliados (B)
Breanne Lookword
Aguardamos em posição de defesa pelo que quer que estivesse vindo mas o único que afluiu em nossa direção foi Walter, a lenha arranhando seus braços enquanto corria. Parecia assustado assim como todos nós.
A sra. Pye soltou o ar que havia prendido durante todos aqueles minutos no momento em que viu o filho.
- Algo grande está acontecendo. - Walter anunciou ofegante. E foi então que notei que não era medo em seus olhos, mas sim um brilho de esperança letal. - Além da floresta... Eles vão cair.
Seus lábios se esticaram ao mesmo passo que deixou a lenha no chão e veio abraçar Crisella que tremia em meus braços. Ele lhe deu um beijo na testa embora seu olhar ainda estivesse distante, felino e carregado de algo que só pude definir como frieza implacável.
***
Por dois dias desfrutamos de uma escuridão insondável. Não era como a penumbra noturna. Não havia lua ou estrelas nem insetos e seus barulhos estranhos.
Walter não dormia desde o último dia de sol e vinha passando seu tempo planejando uma forma de invadir a cidade da Luz que ironicamente também se encontrava em meio a escuridão gélida.
- O Sistema deles falhou condenando a todos nós e agora irão pagar! - Chutou uma pedra ao mesmo tempo que dava um soco em uma árvore. Permaneci sentada desconfortavelmente na rocha, lascando a pequena talhada de madeira com minha faca.
O sr e sra. Pye que preparavam torta de maçã na lona nem sequer levantaram os olhos, mas pela forma como os lábios de Joenna se cerraram à luz da tocha, podia apostar como ela desaprovava o comportamento precipitado do filho.
- Não sabemos o que está acontecendo, Wal.
Walter se voltou para a irmã, os olhos flamejantes.
- Claro que sabemos! A não ser que não queira enxergar! As projeções perfeitas - Ironizou entredentes - a utopia de Gersten falhou! Estão frágeis e vamos derrubá-los.
Bufei para o tamanho da sua estupidez.
- Isso, Walpye! Por quê não ir até lá e matá-los um a um, não é mesmo? - Revirei os olhos me levantando com a coruja de madeira lascada em minhas mãos, um dos animais notívagos mais notáveis. Um amante da escuridão. - Ou talvez a gente só apareça e diga "Se rendam, a casa caiu". - Balancei a cabeça com desprezo. - Precisamos nos unir o Elo. E fazer alguma coisa.
Eu não queria machucar pessoas inocentes. Nossa intenção jamais foi criar um banho de sangue entre os dois grupos. Queríamos acabar com O Sistema e todos que o comandavam. Todos que a séculos vetavam os olhos do seu povo controlando - os como títeres. Precisávamos pará-los antes que eles acabassem com qualquer vegetação que ainda restava, antes que transformasse tudo e todos em seus projetos, em suas máquinas pessoais.
A intenção não era invadir Dawn Village e instituir nossa verdade. Queríamos ser ouvidos! Queríamos que percebessem o quanto o Sistema nos roubava! O quanto haviam enchido seus olhos com belas joias e prédios bonitos, com luzes, telões gigantes, e árvores que nunca cresceram da terra, e o quanto isso os destruiria também. O maldito cavalo troiano prestes a se revelar. Isso que Dawn Village era, um maldito presente dos deuses.
- Temos que entender o que está acontecendo do outro lado antes de qualquer ação. - Achei engraçado a mudança de discurso e a presença de sensatez repentina por parte de Walter.
- Mas se provarmos que essa situação é um plano deles... Bree querida, a gente vai entrar para a história, e não estaremos sozinhos.
Eu devia dizer a ele o quanto aquilo soava idiota mas não reprimi o impulso de rir.
Havia esperança para nós.
Após décadas nos escondendo nas sombras sem muito o que esperar, de repente tínhamos a brecha que precisávamos para atingir nossos ideais. Aquele fiasco de esperança seria nossa motivação.
- Você é rápida. Acha que consegue encontrar quantos grupos em três quilômetros ao norte? - Dei de ombros ainda com um sorriso no rosto.
Walter nunca deixava para mais tarde.
- Alguns. -Respondi com empolgação e então me lembrei de uma coisa - Sabemos que existe uma notória quantidade de nômades solitários ao oeste. Dizem que são mais simpáticos, talvez Crisella possa nos ajud...
- Não. - Contrapôs sem rodeios. Crisella que começava a abrir um sorriso animado, murchou. Lancei a ela um olhar de quem se desculpava. - É arriscado.
A garota se levantou, a boca aberta em um "o" de protesto.
- Walter, eu não sou um bebê! Tenho dezessete anos e sei me cuidar bem!
Crisella era o calcanhar de Aquiles de Walter. E não apenas dele, de todos os Pye. A garota mais doce da Face da Terra. Dona de uma beleza inigualável. Desde os cabelos negros que alcançavam a cintura dando contraste a pele bronzeada e as curvas bem delineadas de seu corpo até sua alma, pura e generosa.
- Ainda assim não possui treinamento suficiente. Vai ficar melhor no acampamento. Não discuta comigo. - Cris soltou um suspiro derrotado e entrou para dentro de sua tenda resmungando algo sobre irmãos mais velhos serem um castigo divino. Joenna me olhou com uma pontada de decepção e entrou na barraca atrás da filha sem dizer uma só palavra.
- Posso treiná-la, Walter. - Falei à meia voz para que ela não ouvisse e voltasse a criar expectativas.
Ele ignorou minha tentativa e com um aperto leve no ombro me desejou sorte com nossos aliados.
- Reuniremos eles no nosso acampamento e falaremos sobre nossas intenções. Deixe claro que não se trata de uma guerra. - Maneei a cabeça embora no fundo soubéssemos que as chances não eram tão pouco viáveis.
O sr. Pye nos deu a benção de sua proteção, estendendo a nós dois amuletos de osso lupino.
E com um último aceno para ele, subi em uma das árvores me preparando para saltar em direção ao galho da próxima.
- Quem conseguir recrutar mais pessoas terá direito a um pedido! - Gritou Walter correndo para o Sul.
***
Fazia mais calor do que o habitual dentro dos meus trajes de couro, talvez pela adrenalina que sentia correr em minhas veias.
Naquele momento em um pequeno instante de reflexão, me perguntei se havia algum sentido no que iríamos fazer. Recrutar pessoas para invadir a cidade e esperar que isso não causasse uma guerra? Que tolice!
Por outro lado eu sabia que algo precisava ser feito. Por mim, por todos no Vale da Escuridão e pelo meu pai que morreu na tentativa de descobrir o que os Iluminados faziam por baixo dos panos.
Tinha medo de cometer um grande equívoco mas não conseguiria conviver sabendo que tive a oportunidade de fazer algo e a desperdicei.
Um cheiro de assado preencheu o ar me deixando em modo alerta. Algum grupo estava próximo...
Pulei da árvore para o chão me mantendo agachada e atenta como um felino farejando o perigo. Caminhei em terra firme por alguns metros até que vozes ocuparam o ambiente.
Quatro vozes, para ser mais específica.
Devia me aproximar sem assustá-los. A última coisa que precisava no momento era de uma lança atravessando minha cabeça.
Escalei um tronco grosso que deixou arranhões dolorosos em minha palma. Nada melhor do que ver o mundo por cima.
Agora eu conseguia enxergar três homens e uma mulher em volta de uma fogueira.
O homem de cabelos grisalhos - mas não tão velho - contava sobre sua última caça. O outro, robusto e calvo parecia mais interessado em comer seu assado do que em ouvir os relatos do amigo, e o último, cujo o rosto não consegui visualizar daquele ângulo devia ser companheiro da mulher. Os dois permaneciam em silêncio observando a chama crepitar.
Desci de meu esconderijo tentando fazer o mínimo de barulho possível. E eu era muito boa nisso, o que já era de se esperar depois de tantos anos de prática.
A mulher, alta e bonita, com belas madeixas cacheadas batendo na cintura, foi a primeira a me ver chegar. Imediatamente pegou um galho alto e se colocou na frente do parceiro.
Não me abalei com sua postura. Apenas defendia os seus, eu faria o mesmo. Provavelmente já devo ter comentado que o Vale da Escuridão não é o lugar mais seguro, mesmo para nós que nascemos aqui.
A fim de provar que não possuía armas levantei as mãos para cima caminhando lentamente na direção deles, que agora me avaliavam minuciosamente.
- Vim em nome do Vale da Escuridão. Vamos em busca da nossa liberdade. Estão comigo?
***
Já devia ser manhã quando regressei junto a um grupo de doze pessoas. No acampamento Walter nos esperava com dezesseis rostos estranhos.
O sorriso de vitória fez com que meus olhos se revirassem. Os lábios formaram a palavra "ganhei".
Não havia sido tão fácil encontrar pessoas dispostas a nos ajudar mas pelo menos não havíamos encontrado nenhum saqueador pelo caminho.
- Certo. Se acomodem nas lonas. - Gesticulou em direção aos encerados que haviam forrado para receber os convidados.
Os Pye ocupavam a primeira fileira. Joenna que ainda parecia desconfortável com o plano de invasão do filho, ruia a unha descontroladamente. Ela me via como uma traidora por apoiar a maluquice. Não chegara a me dizer com essas palavras, mas eu as via em seus olhos.
- Vamos lá. - Walter limpou a garganta antes de continuar - Estamos todos aqui hoje porque chegou o momento em que eles dirão que durante todo esse tempo estivemos certos! Marcharemos em direção a cidade da Luz e derrubaremos os androides! - Todos levantaram os pulsos urrando eufóricos. - Vamos em busca da nossa liberdade!
Aquilo parecia uma espécie de discurso tolo de filme da Idade Média. As coisas não precisavam ser ditas de forma tão dramática, no entanto as pessoas pareciam curtir.
- Não queremos criar tumulto. - Walter prosseguiu - Descobriremos como trazer a luz de volta e então derrubaremos O Sistema! Vamos lutar pela democracia! Por nossos direitos! Não nos calaremos diante de nenhum Grande Líder de Estado! Eles ouvirão nossa voz!
Mais gritos intensos preencheram o acampamento rodeado por arvoredo.
Eu permanecia em pé ao lado de Walter, que me fitou como se quisesse conceder a palavra. Não tinha um discurso preparado mas ainda assim tomei a frente, um tanto insegura e receosa.
O público não costumava me assustar porém naquele momento me senti uma criança pequena e encurralada. Todos esperavam que eu dissesse algo.
- Meu pai morreu. - Respirei fundo. As pessoas assistiam sem entender o que isso tinha a ver com o motivo que as trazia ali. Pela visão periférica pude notar Walter franzindo a testa. - Ele morreu tentando descobrir o que existia por trás do Sistema. Procurando uma forma de fazer com que todos enxergassem o que nós enxergamos e quando finalmente descobriu, eles o mataram.
Vi a surpresa nos olhos dos Pye. Eu dissera a eles que meu pai morrera em decorrência de uma pneumonia.
- O que ele descobriu? - Alguém perguntou.
Trinquei os dentes olhando para todos sem enxergar ninguém. Uma cortina de fumaça embaçava minha visão. Raiva? Tristeza? Não sabia dizer.
- Que o problema nunca foi a tecnologia. O verdadeiro problema são as pessoas por trás dela, como escolhem usá-la. São essas pessoas que vão nos destruir.
O silêncio pesado se espalhou pelo acampamento enquanto as pessoas absorviam minhas palavras. E então, uma a uma, começaram a acenar com a cabeça em concordância. Eu podia ver a determinação em seus olhos, o desejo de mudança, a vontade de lutar por algo maior.
- Logo, partiremos em direção à cidade da Luz. Iremos mostrar a eles que não somos apenas sombras nas margens, mas pessoas reais, com vozes reais. Vamos fazer com que eles nos ouçam!
O entusiasmo no acampamento era palpável. As pessoas conversavam animadas, compartilhando histórias e planejando estratégias. A esperança havia se acendido em seus corações, e eles estavam prontos para lutar por sua liberdade.
Olhei para Walter ao meu lado e vi um brilho de orgulho em seus olhos. Juntos, estávamos liderando uma revolta pacífica, uma revolta que buscava expor a verdade e despertar a consciência das pessoas.
Nós, os renegados do Vale da Escuridão, estávamos prontos para desafiar O Sistema e trazer a luz de volta às nossas vidas. E, no processo, esperávamos abrir os olhos de todos que estavam cegos para a verdade.
Me retirei para a tenda assim que começaram a servir o assado. Falar sobre meu pai não era fácil e sempre me causava aquela sensação horrível de claustrofobia. Sentia tanta falta dele que mal conseguia respirar.
- Breanne? - Walter chamou de fora da tenda ignorando o implícito aviso de que eu não gostaria de ser incomodada. Não respondi, e ele puxou devagar o zíper - Posso entrar?
Limpei as lágrimas com as costas das mãos o mais rápido possível antes de encarar seus olhos de corvo.
- Por que nunca me contou sobre seu pai? - Era bem simples: Walter teria feito uma revolução no momento em que eu contasse.
- Sei que ia querer bancar o herói. Iria acabar como ele.
Funguei. Ele parecia desconfortável com minhas lágrimas. Até então eu chorando era uma novidade.
- E decidiu falar agora porque sabe que estou decidido a lutar. - Não foi uma pergunta mas assenti.
- E sei que não posso te impedir. Você está fazendo o que deve fazer.
Acabou deixando escapar uma risada.
- O que foi? - Perguntei adotando novamente a postura reservada de costume.
- Você nem parece tão durona agora, Bree querida. Não quando parece se preocupar comigo. - Lhe dei um soco no braço para provar que minha força continuava intacta. - Oh, ouuu! - Levantou as mãos em rendição ainda rindo.
- Posso fazer você engolir essas suas mãos se continuar testando meus limites. - Esbocei um pequeno sorriso que o desafiava a insistir em suas provações.
Foi nesse ponto que seu olhar mudou, como se algo brilhasse no fundo deles. As palmas levantadas se abaixaram até meu rosto, mornas, reconfortantes. Quis fechar os olhos e ficar ali ao mesmo tempo em que meu corpo todo ficou tenso em alerta.
- Tenho direito a um pedido. - Sussurrou. E eu sabia o que ele iria pedir.
Seus olhos eram negros e misteriosos, com a parca iluminação do abajur ficavam ainda mais sinistros mas o que eu sabia naquele momento é que queria mergulhar dentro deles...
- Me beija logo. E depois esqueça que acontec... - Não pude concluir a frase pois ele me puxou de encontro aos seus lábios e perdi qualquer noção de mundo que eu ainda tivesse.
Sendo sincera, nunca tinha fantasiado nada daquele gênero com Walter. Realmente, nem chegara a pensar na possibilidade. Eu o via todo santo dia, estava tão acostumada com a presença dele e tão imune a seu... charme... - era o que eu pensava - que quando quis que ele me beijasse fiquei surpresa ao ponto de corar.
Com muita força de espírito, me desenrosquei de seus braços tentando me recompor, e tratando de não deixar que ele percebesse o quanto eu havia gostado daquilo adotei uma expressão indiferente.
- Se algum dia falar sobre isso com alguém...
- Você me mata. - Assentiu, os lábios se esticando de um lado só. - Sei disso, querida.
Se levantou para sair da tenda mas antes me deu um beijo rápido, rápido o suficiente para que eu não conseguisse empurrá-lo... Apenas por isso não o empurrei, certo?
Já na entrada da tenda disse :
- Te vejo em algumas horas. Quando descobrirmos uma forma de entrar, você marchará ao meu lado.
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