14 - Vilões E Mocinhos (D)
A chuva havia passado e faltavam algumas horas para partirmos. Enquanto isso Breanne liderava um pequeno grupo para um aquecimento de batalha, e ali estava eu, próximo ao círculo como um bom aprendiz.
Primeiro ela repassou algumas técnicas com os apagões. Parecia complexo demais para a minha leiga compreensão, mas mesmo assim prestei atenção e procurei me lembrar dos golpes apesar de não saber aplicá-los.
Em seguida, todos ficamos em pé e imitamos, não tão graciosamente, a postura de Bree no centro do círculo. Ela analisou um por um, dando sugestões e aprovando com a cabeça aqueles que a agradavam. Quando seus olhos pousaram em mim, talvez por sentir o peso de sua avaliação, meu corpo confortavelmente mudou de posição.
- Batchelor, sua postura está terrível. - Ela atravessou o círculo em minha direção com uma leveza felina. Ajeitou minha coluna e reposicionou meus pés, em seguida afastou um passo para poder me olhar de cima a baixo - Um pouco melhor.
Em uma hora e vinte eu já sabia o mínimo sobre respiração, posição e defesa. Na prática provavelmente eu seria morto no primeiro ataque.
Assim que a aula se encerrou, soltei um suspiro de alívio e me joguei de bunda no chão, apoiado pelos cotovelos enquanto puxava uma longa quantidade de ar. Fui surpreendido por Bree que se sentou ao meu lado com um cantil. Ela pareceu juntar o máximo de gentileza que conseguiu para me oferecê-lo. Eu estava morrendo de sede e nem sequer hesitei em tomar toda a água.
Devolvi o cantil vazio a ela e não pude deixar de notar sob a luz fraca e bruxelante seu rosto corado e oleoso. Os cabelos amarrados em um rabo de cavalo, molhados de suor. Sem conseguir evitar sorri pateticamente.
Me lembrei de nossa pequena discussão mais cedo. Eu havia assustado até a mim mesmo com a minha reação. O Vale da Escuridão despertava coisas estranhas em mim, de certa forma fazia com que eu me sentisse confortável... Livre para dizer o que tivesse vontade.
Por um breve instante tentei imaginar como seria crescer ali. No meio das árvores, próximo à animais selvagens e aos demais perigos da floresta. Será que eu teria me tornado alguém mais parecido com Iron? Sem alma e indiferente a tudo ao meu redor, ou me pareceria mais com Thalia que camuflava suas inseguranças em um senso de humor ácido? E Bree? Ela parecia guardar tanta história para si que quando a olhava via um enorme abismo, uma casca que havia criado, talvez involuntariamente, para se proteger. Sua força, sua determinação eram inegáveis, eu queria saber quais seriam suas lutas, o que a motivava ou porquê estava ali. Mas algo me dizia que ela jamais me falaria a verdade. Que jamais a falou a ninguém.
Talvez eu devesse odiá-la. Ela era um deles, uma parte importante deles, mas quando olhava no fundo daqueles olhos tão intensos e tristes eu sentia um enorme aperto no peito, como se só quisesse alinhá-la junto ao meu corpo e dizer que tudo ficaria bem. Bree não me deixaria fazer isso, com certeza arrancaria a minha cabeça antes que eu pudesse concluir a sugestão da ideia.
- O que foi? - Só então percebi que a encarava com um sorriso tolo. Em um movimento quase imperceptível ela ajeitou os ombros como se estivesse desconfortável com minha súbita atenção.
- Você é linda. - As palavras saíram como um sussurro e por um atimo de segundos pensei que ela não as tinha escutado, no entanto, Breanne me encarou pelo que pareceu uma eternidade antes de dizer :
- Péssimo plano para se safar, Batchelor. Mas parabéns pela tentativa.
Não consegui deixar de sorrir mesmo quando ela já havia sumido em meio a escuridão.
***
Um dos Apagões fizera um amontoado de cobertores para que Walter se deitasse. Iron parecia a beira de um colapso nervoso andando de um lado para o outro bradando desnecessariamente com qualquer um.
- Por quê a presença dele é tão importante? - Perguntei à Thalia que estava desinteressadamente jogada em um tronco ao meu lado brincando com uma goiaba.
Ela sabia que me refería a Walter.
- Porque um líder bonitão pega bem, não acha? - Lancei a ela um olhar de "fala sério". - Pois bem... Walter está na linha de frente com Iron e Breanne. Iron precisa ficar aqui e se organizar para liderar os que ficarem. Com Walter fora de campo, Breanne fica com a responsabilidade.
- E isso é ruim?
- Não necessariamente. - Estourou uma bola de chiclete sabor morango próximo ao meu rosto. - O cara é instável, ela é mais equilibrada do que ele. - Deu de ombros novamente. - Mas não sei... Apesar da relação bizarra, os dois formam uma boa dupla, entende?
- Como Bonnie e Clyde... - Murmurei.
Breanne estava próxima à cabana. Usava a típica jaqueta preta e as botas de couro. Parecia mais rígida do que o normal. Não olhou em minha direção, e senti que se olhasse seria como mil navalhas passando pelo meu corpo.
Sem Walter as coisas poderia ser mais tranquilas. Eu só precisava encontrar uma forma de contatar Cecília para que alertasse os outros de um possível ataque e pudessem se preparar. Eu levaria os apagões para uma armadilha.
Uma parte de mim se agitou em desconforto com a ideia. Imaginei Trevor, Kurt, Thalia e Bree sendo mandados para New Arrested, uma prisão de segurança máxima ao sul de Dawn Village, que foi inaugurada durante a última guerra para abrigar os maiores traidores da nação. Talvez os líderes pudessem poupá-los desse destino. Quem sabe não me ouvissem se eu recorresse em favor deles. Poderiam ficar na Cidade e trabalhar em um baixo cargo do Departamento para compensarem a desonra ao Sistema. Ainda que fosse um cargo baixo, viveriam bem. Melhor do que no Vale da Escuridão.
Me sobressaltando Thalia pigarreou.
- As vezes, Donovan, me pergunto como você se meteu nessa história. - Cuspiu o chiclete e deu uma mordida na goiaba. - Tipo, o que estávamos pensando quando decidimos trazer um iluminado pra cá? - ela riu. - Esses imbecis não sabem nem lidar com a situação. Olha só pra isso!
Cutucou um dos hematomas causados por Iron em uma de minhas bochechas.
- Au! - Recuei com a dor, apesar de já estar bem melhor do que antes.
- Olha, eu odeio o seu povo. Odeio com todo o meu coração e minha alma, mas algumas pessoas aqui no Vale da Escuridão também têm minha mais sincera repulsa. - Dirigiu um olhar fulminante à Iron que empurrava um garoto para que saísse de sua frente.
- Vocês realmente acreditam que somos nós os vilões da história? - perguntei com sinceridade.
- Não acho que existam mocinhos de algum dos lados, Donovan. - Deu uma piscadela e voltou a atenção à goiaba.
Estava pensativo sobre as palavras de Thalia quando um senhor curvilíneo chegou até mim e entregou uma lanterna. O observei limpar a mão quando nossos dedos se tocaram. Engoli em seco guardando o objeto no bolso das calças que Kurt me emprestara.
Cerca de 40 minutos mais tarde, entramos na cabana seguindo Bree. Apontei a lanterna para as paredes deterioradas e vazias, era como estar em um filme de terror hiperealista, onde não apenas dava para sentir a morte mas sentir seu cheiro.
Mirando o teto visualizei uma espécie de cordão de névoa, estava por todo lado, inclusive nos pedaços de madeira jogados no chão e na estante velha.
Toquei em um dos fios translúcidos, ele ficou grudado em minha mão. Quanto mais tentava tirá-lo, mais se fixava em meus dedos.
Thalia revirou os olhos enquanto me ajudava, e formando uma bolinha, uniu o emaranhado novamente na madeira.
- Teia de aranha. - Esclareceu.
- Uau! - Exclamei, agora olhando com fascinação para as pegajosas estruturas organizadas. Como eram incríveis as aranhas.
Thalia também iluminava tudo o que via pela frente, e em uma de suas viradelas com a lanterna, vi algo que chamou minha atenção.
Estava jogado perto da prateleira, uma espécie de livro de couro preto, fechado com um cinto de fivela dourada. Não aparentava ser um livro comum... Era como um... Diário?
Ninguém tinha notado o que eu encontrara e tratei de colocá-lo dentro do bolso interno da jaqueta para que ficasse seguro até que fosse possível ler o que quer que estivesse escrito ali.
Breanne estava ajoelhada ao lado de uma lareira, tentava puxar a alça de um alçapão e monstrava estar com uma certa dificuldade.
- Onde está Kurt? - Thalia emergiu das sombras, colocando a luz da lanterna bem diante de mim.
- Ei! - Protestei cobrindo os olhos com os braços.
Depois daqueles dias tenebrosos já era de se esperar que meus olhos estivessem hipersensiveis à luz.
Kurt adentrou o cômodo no mesmo instante como se tivesse sido conjurado. E não entrara sozinho...
A expressão de Thalia foi a melhor. Uma mistura de "O que pensa que está fazendo?" e "Seja lá o que for, parece errado e eu gosto".
Sem nenhuma sutileza, ela apontou a lanterna para o rosto da acompanhante de Kurt. Uma garota jovem, de cabelos pretos e cumpridos. Tinha um olhar assustado mas muito astuto.
- Espere um segundo. - Thalia estreitou os olhos para a garota. - Essa não é a irmã do Walter?
A garota esboçou um tímido sorriso que respondia a pergunta.
Caramba, era ela mesmo!
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