I
A maioria dos humanos não sabe, mas o equilíbrio da natureza só existe por causa do trabalho árduo dos elementos e principalmente da Rainha. Ela é a mãe que gera a luz e os frutos dos homens juntamente com o Rei, que nasce em uma determinada estação e morre em outra. A Rainha, bruxa nascida de um Elemental, de natureza pura, é escolhida para esse papel. Entretanto, já se passara quase quinhentos anos e nenhuma bruxa digna de ser coroada havia nascido até Iara.
Iara nascera do elemento Água e era a descendente de várias bruxas de grande poder há mais de cem anos, todas do mesmo elemento. No seu aniversário de treze anos, lhe foi revelado que ela seria coroada Rainha quando completasse dezesseis anos. A revelação se deu através de um transe em um ritual, e para provar aos demais, ela foi submetida a um teste e a única bruxa capaz de controlar todos os elementos. A grande maioria da comunidade desconfiava que seria ela ou seu próximo descendente, então, desde pequena, Iara se preparou para tal. Estudava e praticava magia, conhecia a maioria dos rituais e feitiços, e durante esses três anos que se sucederam, Iara estudou sobre a criação do mundo e os festivais que todos os bruxos comemoravam, além de aprimorar os outros elementos. Ela sabia qual seria o seu papel durante os solstícios e estava preparada, porém apenas uma coisa a incomodava: Ela se tornaria imortal, veria todos que ama envelhecerem e morrerem e para isso, não tinha absoluta certeza se estava preparada.
— A sua antecessora viveu por quase um milênio trazendo paz e equilíbrio para a humanidade. — disse sua mãe enquanto a preparava para o grande dia — Mas, infelizmente, seu coração adoeceu...
— Adoeceu? — Iara perguntou curiosa.
— Sim, sua doença foi a tristeza. Ela não aguentou ver como os humanos destruíam e ainda destroem seus semelhantes, em como eles não respeitam nem a própria vida... Mas não foi apenas isso que adoeceu, a Rainha, nascida da Terra, conectou suas raízes tão profundas, amando tanto a todos os seres vivos, que não soube isolar suas emoções para o Rei. Ela o amava mais que tudo... e aos poucos, o seu coração foi adoecendo e seu corpo desfalecendo... Foi um inverno duro em meio a tantas tristezas... E quando ela percebeu que a sua morte estava ao seu lado, lançou seu último feitiço para que a próxima Rainha fosse alguém que pudesse trabalhar melhor as emoções e no dia da sua coroação, sua alma se tornasse totalmente imortal.
— Mas eu não tenho certeza se sei trabalhar as emoções...
Sua mãe sorriu, e continuou:
— Você nasceu da água. A água trabalha as emoções e você teve treinamento para conseguir o equilíbrio. Você é a Rainha designada.
Iara suspirou e desejou no fundo de seu coração que a sua mãe estivesse certa. Esse era o dia da coroação, mas apenas em Yule, na próxima festividade, é que conheceria o bruxo designado a ser seu Rei e ela ainda tinha muitas dúvidas quanto ao papel do seu futuro consorte.
***
Inácio tinha os cabelos vermelhos como fogo. Sua pele era musculosa e bronzeada como uma chama que queima e aquece, e seu olhar, negro, mas convidativo, como uma escuridão que é preciso enfrentar, apesar do medo. Uma beleza incomum em meio a tantos bruxos caminhando em direção a grande mesa disposta para o ritual. Iara, sentada ao lado oeste do altar, percebeu de longe que ele carregava uma cesta com maçãs e sorriu. Ele também a percebeu e sorriu de volta, afinal, estava feliz, pois finalmente o povo tinha uma Rainha, alguém para ajudar no equilíbrio e trazer a luz para o mundo que tanto custava a se manter acesa. Poucas eram as pessoas de coração bondoso e puro.
A posição em que Iara se encontrava revelava sua origem das águas, elemento oposto ao seu, mas não foi apenas isso que o atraiu... Iara resplandecia luz pelos seus poros, era como se ela fosse a própria lua encarnada em pele de bruxa. Seus cabelos longos eram como veludo negro e brilhante e seus olhos claros e cintilantes o convidavam a mergulhar em suas águas tranquilas, mas também profundas, onde se nadasse errado, poderia se afogar...
Cada bruxo foi deixando suas ofertas na mesa e caminhando em direção ao seu lugar. Bruxos nascido da água deveriam estar ao lado Oeste do altar, os da Terra, no Sul, os do Ar, no Leste e os bruxos do fogo, ao norte. Quando Inácio se aproximou, retirou cada maçã da cesta enquanto dizia:
— Menina das águas, fico feliz que tenha sido a senhorita a escolhida para ser a nossa Rainha. Sinto sua alma forte, doce e gentil, mas também percebo que minhas palavras a deixam agitada, retrato de que talvez eu esteja trazendo à tona os seus medos. — Ele a olhou bem fundo dos olhos — Minha Rainha, se não for incômodo, gostaria de saber quais demônios eu sem querer, despertei.
Inácio estava certo. Sua energia e vitalidade despertaram em Iara alguns medos e inseguranças que ela sentia antes mesmo da coroação. Se seria uma boa Rainha e se saberia lidar com os seus sentimentos. A simples aproximação desse jovem acelerou as águas do seu coração. Iara respirou fundo e voltando a controlar suas emoções, respondeu:
— Está certo jovem rapaz, alguns demônios foram despertados, mas quem não os tem? Quem nunca sentiu uma emoção negativa? Somos fadados a erros e estamos aqui para aprender com eles, saber lidá-los e até mesmo ama-los.
— Amá-los? — questionou Inácio curioso.
Iara sorriu e respondeu:
— Sim, temos que amar os nossos defeitos também. Ter medo só trazem à tona mais demônios pessoais... Além de bruxos, também somos humanos, podemos errar para assim aprender.
— Será que é permitido uma Rainha errar? — ele questionou sorrindo enquanto caminhava em direção ao norte.
Aquela pergunta deixou Iara pensativa. "Se ela errasse, se ela não conseguisse cumprir sua missão? O que aconteceria a ela e com o mundo?", esses questionamentos gritavam em sua mente. Entretanto, ao mesmo tempo, se encantara pelo rapaz, algo que nem mesmo ela conseguia explicar, como um reconhecimento, além do que, ele foi o único com coragem suficiente para expor o seu maior medo. E isso, de certa forma, a atraía... Era como se ele pudesse conhecer sua essência...
O Ritual de Samhain ocorreu como esperado, além de homenagear, celebrar os ancestrais, os bruxos de todos elementais se reuniram para cear, em silêncio, e Iara foi coroada Rainha. O próximo ritual seria o Yule, e seria nesse que Iara conheceria o seu Rei.
Ao final, quando tudo havia sido dispensado e os participantes puderam voltar para as suas casas, Inácio caminhou novamente em direção a Iara e quando estava bem próxima da Rainha, disse com um gesto cortês:
— Rainha Iara, perdoa-me pelo meu atrevimento mais cedo. Durante todo o transe neste ritual, pude perceber o quanto fui insolente. Meus ancestrais confirmaram o que eu já suspeitava, eu apenas reacendi seus medos. Não quero que os temas, mas saiba que se precisar de um apoio amigo, mesmo não podendo dar o meu ombro, posso estar por perto para conversar.
Iara sorriu e respondeu:
— Obrigada bruxo do fogo. Sua amizade é bem-vinda e tenho consciência que por sermos de elementos totalmente opostos, nossa aproximação é complicada. Mas agradeço a atenção.
Não era apenas o fato de Iara e Inácio serem de elementos opostos que a preocupava. Sua preocupação também era por conta dos sentimentos que havia surgido dentro de seu peito em relação a ele. Ela tinha noção de que acabara de conhecê-lo, entretanto, a sua ousadia e o calor que ele emanava, a deixara extasiada e curiosa.
***
Durante os dias que antecederam o festival de Yule, Iara esteve muito ocupada tratando da terra morta e se preparando para uma era de esperança, a primavera que nasceria nos próximos festivais, e a época de Natal no hemisfério Norte. Iara achava graça pelo fato dos humanos que viviam no sul, nunca questionarem o fato de que o Natal era comemorado no mesmo dia do Natal no norte, afinal, o inverno neste hemisfério é em dezembro, mas para os habitantes do sul, em junho. Yule se tratava do recomeço, da esperança de que será uma colheita farta e o renascimento. Diante disso, esse seria o festival que nasceria na comunidade um novo Rei, aquele que traria a luz e depois morreria em Samhain.
Iara não sabia se de fato ele iria morrer ou se era algo abstrato, mas ficou preocupada com a escolha de seu parceiro. Não queria sofrer pela morte do seu consorte, apesar de antigas lendas afirmarem que a Rainha sempre reconhecia sua alma em futuro bruxos, porém, ainda assim, esperava não se envolver tanto com o futuro Rei, além do que, ela não parava de pensar no bruxo do elemento fogo, que depois de alguns dias, descobriu se chamar Inácio por uma das suas amigas.
Enquanto Iara se preparava para receber o Rei e toda a esperança que viria com ele, Inácio estava preocupado pelos sentimentos que haviam surgidos ao conversar com a Rainha. Preocupado se não seria capaz de controlar esses sentimentos, mas principalmente, estava com ciúmes. Sabia do papel dela e do futuro Rei, e sabia que a ligação deles começaria em Beltane até Litha, onde ela deveria dar o fruto da terra. Ele só queria entender melhor o que significava o fruto que a Rainha deveria dar ao Rei, e apesar de sempre comemorarem a Roda do Ano, era a primeira vez, em muitos anos, que a Rainha e o Rei não seriam apenas objetos representados, mas agora, eles estavam vivos e seriam os responsáveis pelo equilíbrio do mundo.
Iara enfeitava a sua árvore quando recebeu uma carta. Não era a primeira vez que isso acontecia, e apesar de está cometendo um erro em lê-las, pois alimentava cada vez mais os seus sentimentos, ela nunca respondia. Sabia que era um erro, mas não resistia em ler as cartas dele. Inácio era um bruxo insistente, e em suas cartas revelava o quanto ele se encantara por ela, em como suas águas mexiam com o fogo dele... Nesta, não era diferente, apenas pelo simples fato de que ele queria encontra-la antes do festival, às cinco horas da tarde, na clareira da floresta, onde aconteceria o festival. Ele queria vê-la e se dessa vez ela não respondesse, entenderia que estava sendo impertinente e a deixaria em paz.
Não sabia o que faria. Estava confusa, mas ao mesmo tempo, amava ler as declarações que recebia toda semana. Então, mudando o seu hábito, escreveu apenas uma palavra em uma folha, encantou e entregou para sua amiga.
Quando Inácio recebeu uma resposta, ficou entusiasmado e feliz, mas segundos antes de tocar na folha, sentiu uma magia saindo por ela, então, pediu a bruxa que trouxera deixar em cima da mesa de sua sala e que se retirasse. A amiga de Iara obedeceu sorrindo e saiu. Assim que se viu sozinho, Inácio se aproximou da folha, e percebeu que a carta enviada estava coberta por uma fina camada de gelo. Ansioso, aqueceu um pouco as mãos, tomando cuidado suficiente para não queimar o papel, e pegou.
A água congelada que estava envolta derreteu e entrou em processo de evaporação quase que instantaneamente. Sorriu pela criatividade da Rainha, mas ficou ainda mais feliz quando leu: "SIM".
***
Inácio estava nervoso, suas mãos estavam quentes e seus cabelos molhados de suor. Sabia que estava com o seu elemento descontrolado, mas não conseguia pensar com clareza quando se tratava de Iara. Ela estava quinze minutos atrasada e seu nervosismo aumentava a cada segundo que passava e ela não chegava. Tinha preparado tudo, a mesa redonda estava disposta com frutas e flores bem difíceis de achar, por causa da estação do ano. Algumas velas para aquecer o local e duas cadeiras, uma do lado da outra em volta da mesa. Havia preparado um discurso, mas havia esquecido tudo por conta da ansiedade. Só se lembrava dos pontos cruciais que poderiam colocar em risco toda a comunidade, mas não custava tentar... Afinal, ele tinha certeza que a amava e iria fazer de tudo para ter esse amor, caso assim ela desejasse. Nunca se sentiu tão conectado com uma mulher e sentia que Iara nascera para ser dele e ele dela.
Mais alguns minutos se passaram até ele notar a sombra dela se aproximando. Iara estava linda com um vestido leve e sem mangas na cor azul. Seus cabelos, dessa vez trançados na lateral e sua boca rosada esboçava um sorriso de derreter o coração de qualquer homem ou bruxo que tivesse o prazer de vislumbrar a sua beleza.
Iara foi se aproximando, e o coração de Inácio batendo cada vez mais forte. Quando ela estava centímetros na sua frente, disse sorrindo:
— Então, bruxo do fogo, o que queria comigo?
Estavam tão próximos, que Inácio sentiu um ar frio saindo de seu hálito. Frio como inverno... Ele sorriu e retrucou:
— Já notou o quão conectada está com a Terra? Até mesmo seu hálito nos lembra do quanto frio és essa estação.
Iara corou e se afastou...
— Não precisa se envergonhar, minha Rainha — disse ele — Sinta-se feliz por estar equilibrando a natureza...
Iara sorriu envergonhada e ele continuou:
— Iara, bruxa das águas e minha Rainha... — ele se aproximou dela — Sei o quão posso soar estranho, mas desde que a vi, meu coração clama por você! Uma energia inexplicável irradia de você convidando minha alma a amar-te. Não sei porque você tem esse efeito em mim, mas a cada vez que a vejo ou até mesmo pronuncio o seu nome, meu corpo entra em ebulição. Sei que por ser do elemento fogo, estamos mais suscetíveis ao sexo, mas o que sinto vai além. Uma mistura de ascensão, poder e honra é estar com você.
Ao ouvir essas palavras, novamente, Iara perdeu o controle de suas emoções. Aquelas palavras eram tudo o que deseja ouvir. Sentia-se vigorosa e por incrível que pareça, sentia sua intuição mais aflorada. A mesma intuição que dizia para não se apegar...
Ela queria beija-lo, mas não podia, pois se unissem os elementos opostos, um desastre poderia acontecer. Não era permitido bruxos se envolverem com elementos totalmente opostos, como Fogo e Água. Apenas a Rainha poderia, e mesmo assim, apenas com o seu Rei e em dias específicos. Então, como resposta para a declaração de Inácio, Iara concentrou sua magia em suas mãos e mexendo levemente seus dedos para palma de sua mão, sussurrou...
Inácio não ouviu com clareza o que ela dissera, só sabia que foi dito em outra língua. Entretanto ficou encantado com o que viu a seguir.
Iara esculpiu apenas com a sua magia uma árvore de Yule utilizando todos os elementos da natureza. Uma árvore baixa que estava próxima à clareira para simbolizar a Terra, enfeites em forma de sinos, feito com as flores da mesa e galhos para representar o ar toda vez que a brisa batesse e soltasse a doce melodia da natureza, e por fim, utilizou uma das velas acesas da mesa e cobriu com gelo fino para depois recobrir com uma camada mais grossa, formando um pentagrama e colocou no topo da árvore, simbolizando a água e o fogo ao mesmo tempo.
Por incrível que pareça, a vela continuava acesa.
— Essa árvore representa os quão próximos os elementos são, mesmo que pareçam distintos e perigosos. — Disse ela sorrindo — Mas principalmente, representa que nem mesmo elementos opostos estão isentos de se amarem...
Inácio sorriu entendendo a mensagem a convidou para sentar-se ao seu lado para desfrutarem das frutas e da companhia um do outro enquanto ainda podiam.
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