
039
A semana foi seguida de muitas ocupações.
Depois que Christopher me deixou no hotel naquela manhã, me encarreguei de encontrar Theo e juntos irmos de volta para a minha casa. Da segunda vez que entrei a sensação foi melhor. Conclui que no fundo só precisava mesmo extravasar um pouco antes de me deparar novamente com a antiga realidade em que vivia.
Ambos limpamos o lugar, batendo nos móveis e os colocando para tomar um banho de sol enquanto varríamos os cômodos e abríamos as janelas. Tudo foi arejado pelo ar puro e logo o cheiro insuportável de mofo diminuiu.
Quando não me atirava panos, Theo arremessava alguma coisa macia só para me perturbar. Eu gritava e até tentava revidar, mas ele corria e se distanciava de mim.
Trocamos as colchas, capas, cortinas. Lavamos as louças. Foi bem cansativo, embora de certa forma fosse muito terapêutico. Aquilo me ajudava a esquecer as cenas deprimentes que encenei bêbada na frente de Wayne. Com certeza, ele agora devia ter plena certeza do quanto mexia comigo, mesmo sendo um desejo oprimido e inconsciente.
Balancei a cabeça e continuei a varrer o chão.
Theo se encarregou de diminuir o tamanho da grama com o cortador, acenando sempre que me via por alguma janela. Ele tinha mesmo um sorriso muito bonito e encantador. Por fim, a casa voltou a me lembrar meu antigo lar.
Felizmente se tornou habitável, e o cheirinho de aconchego substituiu o de abandono.
Em um dos dias, decidi dirigir até o banco disposta a renegociar o débito da hipoteca, alegando que meus pais estavam mortos, e por isso, no mínimo eles deveriam me ceder mais tempo pagar tudo.
Depois de algumas horas de espera em uma fila terrível fui atendida por uma mulher ruiva, de cabelos presos e uniforme escuro.
— Como assim quitada?
— Isso mesmo senhorita. Os registros apontam que tudo foi pago, e pelo que vejo, há muito tempo atrás.
— Quanto tempo exatamente?
— Há alguns meses.
— Tem certeza disso?
— Lógico que sim. Nossos registros são bem claros.
— Você tem a identificação de quem fez isso? — Continuei a persuadi-la determinada a não confirmar minha suspeita.
— Não podemos ceder esses dados. É violação de estado. Para que façamos isso é necessária uma petição judicial. Sinto muito.
— Como assim? A casa é minha! — Falei indignada.
— Veja pelo lado positivo. O quitador não exigiu ficar com a propriedade, pelo contrário, fez questão de que permanecesse no nome da sua família.
Depois de escutá-la dizer aquilo, me despedi e a mulher voltou a digitar rápido em seu computador chamando o próximo cliente sem me dar muito valor. Era a rotina dela.
Quase não pude crer nos atos.
Será que Wayne se atreveu a pagar?
Era a possibilidade mais provável do momento. Na verdade, a única. Não haveria mais ninguém capaz de tomar uma atitude parecida, pelo menos não alguém que eu me lembrasse ou conhecesse.
Ele tinha a fortuna para isso, e a hipoteca era alta demais para uma caridade de qualquer um ser humano comum.
Theo pensou igual quando comentei com ele o que havia acontecido na agência bancaria.
— Para mim isso é um pouco óbvio.
— Mas não me parece nada justo.
— Ele é seu tutor. Deve ser algum tipo de obrigação ou função dele.
Meu amigo não parecia entender o meu ponto de vista. O problema não era Wayne ter pago a dívida, mas sim o aumento das minhas dívidas com ele. Quanto mais eu pensava sobre, mais tinha certeza de que devia muito para o Sr. Wayne. Era como se cada pequeno acontecimento nos ligasse cada vez mais.
Eu não queria devê-lo em nada.
No fim do dia Theo entrou na cozinha e se recostou no balcão, olhando minha deformidade em cortar a cenoura em tiras.
A cada corte grosseiro, ele ria e eu insultava o vegetal, inconformada.
— Ahh, Merda! — Praguejei furiosa — Isso parece tão fácil nas mãos dos outros!
— Não insulte nossa fonte de alimentação.
— Eu preciso aprender! É humilhante.
— É muito divertido te ver cozinhar.
— Você devia era me ajudar mais com isso, professor.
— Hmm, acho que não. Mesmo que corte tudo torto e áspero seu tempero é muito bom. Já eu, sou péssimo na cozinha.
Com uma raiva simulada, joguei uma das tiras de cenoura nele e fui pega na risada. Theo gargalhou e foi par cima de mim.
— O que acha que está fazendo, heim? Desmemoriada!
— Não! Me solte! — Gritei, rindo alto, enquanto ele e eu desmoronávamos no chão, rolando como duas crianças do jardim de infância.
Durante esse embate, acabei indo para cima dele, mas não giramos novamente. Simplesmente ficamos assim — Estáticos encarando um ao outro. Por um segundo foi constrangedor, mas Theo não era nem um pouco desprovido de beleza para me deixar totalmente desinteressada.
Ele tinha olhos azuis muito expressivos, e de uma calentura excessiva.
De repente, no calor do momento, ambos estávamos diminuindo a distância entre nossos rostos, prestes a tocá-los, quando alguns homens entraram na cozinha apressados. O efeito dos gritos e reclamações chamaram a atenção dos seguranças.
Só notamos a movimentação ao lado no momento em que um deles gritou meu nome e presenciou a cena.
Agora sim era constrangedor.
Eles nos encaravam, confusos e sérios, assimilando o que tinha acontecido.
Me levantei frenética e sorrindo para ver se isso destruía um pouco mais o clima pesado.
— Desculpe senhorita, pensamos que estivesse em perigo — finalmente disse um deles.
— Está tudo bem.
Ainda desconfortável pelo deslize voltei a cortar a cenoura, sem olhar os lados. Mas Theo veio e tomou a faca das minhas mãos juntando-se ao meu lado.
— Posso fazer isso — Afirmou tímido — Vá cuidar do caldo de frango.
Balancei a cabeça, concordando, e demos continuidade ao almoço.
Aos poucos os homens de preto voltaram a se dispersar e só depois disso o fôlego, tanto meu quanto dele se acalmou.
Voltamos a respirar aliviados.
— Dulce, me perdoe pelo o que aconteceu — disse balbuciando.
— Não aconteceu nada — Rebati, mexendo a panela sem tirar a atenção.
Nós dois íamos mesmo nos beijar?
Por trás de mim, ele se aproximou e eu me arrepiei. Suas mãos passaram pelo lado da minha cintura, em câmera lenta, dando a sugestão de algo, mas Theo apenas jogou os legumes dentro da panela do caldo. Retornando para limpar o que estivesse sujo.
Aquele movimento sugestivo podia ter sido alguma jogada travessa dele para deixar o clima ainda mais tenso.
Vez ou outra meu olhar o procurava na cozinha, observando-o lavar e enxugar a louça, mas sempre que sentia que seria correspondida virava o rosto e ficava rubra. O que fizemos? Aquele acontecimento poderia estragar toda a nossa amizade.
Estava bem delicioso até mesmo para as minhas expectativas.
Geralmente a cozinha era uma punição utilizada pela minha mãe quando ela achava necessário me fazer pagar por uma ordem ignorada, ou rebeldias da minha parte.
Eu era adolescente, então estava longe de não dar dor de cabeça neles, mesmo sendo uma nerd em ascensão.
Aquele frango cheirava tão bem e estava tão saboroso que não pude acreditar que depois de comê-lo senti uma azia infernal.
Minhas caras e bocas chamaram a atenção do professor que logo se preocupou.
— Seu rosto está vermelho...
Pelo que exatamente? Pensei. Podia ainda ser o efeito do nosso cruzamento no chão que nos levou a um quase beijo.
— Por favor, me compre um antiácido, urgente. Essa queimação no estômago está me matando.
— Claro. Espere só alguns minutos.
Quando ele saiu, me preocupei em deitar no sofá da sala e esperar. Cochilei durante esse processo, e só acordei quando fui chamada por Theo, dando de cara com um copo de água borbulhante.
— Aqui está. Tome.
Bebi rápido e voltei a recostar a cabeça no travesseiro. Naquele segundo pensei que seria deixada de lado, mas ele permaneceu ali. Sentado no assoalho sem tirar os olhos de mim.
Automaticamente fiz o mesmo, e retribui o olhar.
Ficamos assim por alguns segundos, mais uma vez, até ele decidir falar após uma boa aspirada de ar.
— Minha namorada me pediu para voltar.
Escondi minha decepção, sem deixar evidente como aquilo me entristeceu. Algo dentro do meu coração pesou.
— Faz sentido. Você está aqui a quase três meses.
— Dulce, eu não sei o que fazer.
— Como assim? — Perguntei com um falso riso confortável — Vá. Ela precisa de você.
— Mas eu quero ficar aqui também.
Ergui o corpo e peguei as mãos dele, apertando-as entre meus dedos.
— Theo, eu agradeço muito por todo esse tempo e por tudo o que está fazendo por mim. Estou sem lembranças, mas não sem sentimentos, e isso me fez perceber como sua amizade deve ter sido essencial enquanto estive naquela casa desconhecida. Tenho certeza de que quando ainda tinha uma memória sã eu devia adorar você.
— Você entende assim? — Rebateu um pouco decepcionado — Eu agradeço muito por tudo o que disse, e acredito na veracidade disso. Mas Dulce, eu não quero ser feito de herói quando no fundo fiquei feliz de você ter esquecido dele.
— Dele?
— Wayne — Esclareceu.
Mesmo com o semblante pasmo, não soltei as mãos de Theo.
— Aquele homem não merece você. Nem um pouco.
— Porque acha isso?
— Você sofria, chorava, era oprimida pelo ciúme dele, e no fim, eu o conheço muito antes de você surgir. Sei no que ele se tronou depois das tragédias de sua vida.
— Não temos nada.
— Mas tinham, e isso acaba sendo muito evidente quando estão perto um do outro.
— Você disse de tragédias na vida dele... quais exatamente? — Interroguei me endireitando no sofá.
— Esse não era o ponto da conversa.
— Mas agora se tornou. Diga.
Theo se levantou desconfortável e a minha vista o seguiu.
— A mãe internada em uma clínica para loucos e o pai morto. Não tem muito o que pensar. Wayne se sente um órfão — Continuou — Depois disso não o vi mais tomar atitudes boas com ninguém.
— E a minha hipoteca? E o fato de ter me abrigado?
— Isso se chama compromisso. Ele é forçado a fazer essas coisas por ser seu responsável.
Ficando de pé, olhei para Theo e armei o corpo em uma postura firme.
— Tanto faz. Eu estou aqui e pretendo arranjar um emprego antes que os fundos deixados na minha poupança acabem. Não preciso de guardiões, sou maior de idade.
— Em tese sim, mas para se ver livre dele precisaria se casar.
— Ou ser independente financeiramente.
— Ou isso — Complementou concordante.
— Agora parece que vou ser mesmo obrigada a amadurecer. Você vai embora.
— Já falei que não quero ir.
— Não faz sentido dizer essas coisas.
— E o que aconteceu na cozinha?
— Theo...
— Diga que não sentiu nada.
— Não sei o que senti lá — Expliquei apreensiva — Aliás, nada do que ando sentindo ultimamente parece claro o suficiente.
— Eu acho que amo você, Dulce.
A bomba foi lançada sobre as minhas mãos, e por um momento senti que havia perdido o equilíbrio.
— O que?!
Nos segundos seguintes tudo ficou negro demais para raciocinar o que tinha acontecido em minha volta.
Minhas pernas ficaram bambas e eu cai nos braços de Theo perdendo os sentidos completamente.
****
NOTAS
Onde estão os meus/minhas comentáristas? Oooo vontade que estou de vocês! E principalmente de conhecer os fantasmas! Não se intimidem, eu estou aqui, plena e aberta (no bom sentido da palavra) para todos vocês 😏
E como diz uma das minhas leitoras lindas Manuella_Alves:
Se não aparecerem, vai acontecer uma tragédia com vocês!! ( metirinha ) kkkkk
Os amo!
Beijinhos ♡
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