
024
Não foi muito bom acordar com a aparência de um animal esfolado vivo.
Era um desagradável detalhe feminino, e como aquilo me pegou de surpresa, apenas levantei puxando o lençol sujo de sangue e jogando-o no cesto de roupas. Além da vergonha, tive que aceitar a dor no meu abdômen balbuciando os avisos que ignorei sem pestanejar durante a semana.
Tomei um longo banho refrescante, selecionei na prateleira infinita de coisa femininas algo interno que desse jeito naquilo, e fui me vestir.
Alfredo não demorou a aparecer depois do meu aviso de que naquele dia não ia descer como de costume.
O olhar incessante do mordomo enquanto dobrava um dos meus lençóis, me incomodou. Alfredo não tinha o habito de ser inconveniente daquele jeito, muitos menos executar aquele tipo de tarefa com desamor.
Mordi a fatia de waffer e engoli em seco.
— O que foi, porque está me olhando assim?
Recuperando a sua majestosa elegância, ele ergueu-se para guardar toda a rouparia de cama no closet, andando como se o dia tivesse 48h.
— Desculpe senhorita, mas não entendi porque fez sua refeição em seu quarto hoje... — Perguntou de dentro do cômodo abafado — já faz um certo tempo que não faz isso.
— Senti vontade. — Gritei de volta, dando de ombros e jogando o resto do alimento sobre a bandeja, levantando para colocá-la na bancada.
Perdi o apetite só de lembrar os motivos que me fizeram ficar ali isolada, respondendo com uma expressão agoniada a mais uma fisgada surpresa no ventre. Quando ele voltou para perto de mim, o silêncio anunciou sua partida, e foi aí que algo me ocorreu.
— Alfredo, me faça um favor — pedi ganhando a sua atenção — Ontem eu deixei algo dentro do escritório de Christopher. Um presente em uma embalagem dourada. Traga para mim.
Ele assentiu ao pedido e se foi. Não tínhamos muito o que dialogar, e isso era clássico.
Andei de um lado ao outro, esperando eufórica pela chegada do mordomo, e só me tranquilizei quando ele voltou com o meu presente em mãos, me entregando logo em seguida, antes de voltar para as suas obrigações diárias. Sozinha, sentei próximo a janela e desamarrei a lembrança carinhosa de Theo.
Meus olhos se encantaram ao se deparar com a delicadeza da caixinha de músicas marrom, de detalhes dourados igual a embalagem em que veio. Dei corda e ela se abriu, revelando a leveza de uma bailarina enfeitada de renda, girando com uma sincronia sutil ao som da melodia sinfônica. A cada nota repetida, meus olhos se apertavam, deliciados. Era algo tão simples e ao mesmo tampo tão singelo. Realmente encantador.
Me distrai tanto ouvindo aquela canção, que só tornei a realidade no momento em que um som muito mais forte soou sobre os meus ombros, arrepiando-me. O som daquela voz...
— Atrapalho?
Sem cuidado, e sob os efeitos do nervosismo, fechei a caixinha com força estalando o MDF, e seguindo a sequência de: me erguer, ignorá-lo, e seguir para longe.
Porém eu estava muito enganada de achar que seria tão simples repudiar Wayne sem nem uma reluta da sua parte. Como previ, ele veio até mim, se apoiando em o meu ombro, cheio de dúvidas.
— Dulce, o que aconteceu?
Repuxei meu braço de volta, e como ele não estava se utilizando de toda a sua força, foi fácil me soltar.
— Pensei que precisava trabalhar — rebati ainda me abstendo de olhá-lo.
— Sim, eu preciso, mas senti sua falta durante o café.
— Que engraçado — falei com ironia — Quantas vezes eu não fiquei naquele mesmo lugar, sozinha, esperando por você.
— O seu comportamento está me confundindo.
— Está?
Reiterei resolvendo fita-lo. Christopher estava ciente da minha revolta, mesmo não imaginando os motivos. Ele não disse uma só palavra. Seu rosto estava frio, mas impassível enquanto me encarava, entretanto, a tensão no músculo da sua mandíbula delatava o seu desagrado.
— Bem, eu apenas me sinto no dever de repassar o seu aviso — Continuei; obtendo dele um olhar ainda mais perturbado — Ontem, logo após a sua saída, Beatrice veio lhe fazer uma visita, mas como não estava, ela me pediu para visar que te espera "no lugar de sempre" hoje.
— Então é isso — arquejou entediado.
— Acho melhor não se atrasar.
— Eu não sei porque ela veio até aqui, porém, isso não é culpa minha.
Indignada com a forma despreocupada com que ele me respondia, rolei os olhos em volta de nós e andei na direção da saída. Wayne outra vez me impediu, bloqueando meus passos com o seu corpo.
— Não acho que esteja com tempo para perder comigo — ressaltei tentando desviar dele, mas Christopher agarrou os meus ombros obrigando-me a cruzar nossos olhares.
Dessa vez, mais de perto.
A singularidade do seu tom de castanho enriquecia aqueles olhos dilatados, que me observavam tão surpreendentemente intimidadores, a ponto de me fazer esquecer, em segundos, toda a raiva. Porém, não era justo o poder dele exceder a dignidade. Wayne precisava ser defrontado pela minha ignorância.
— Nunca perco meu tempo estando com você — sua mão intensificou o toque, e por pouco não me rendi.
— Não mude a direção dos fatos.
Repeli, tirando as suas mãos da minha pele, ou aquela conversa não continuaria.
— Christopher, assim não vai dar. Eu não vou aguentar tanto tempo.
— Você disse que confiaria em mim. Preciso que faça isso agora.
— Por Deus, como?! É impossível continuar confiando em você depois dessas coisas todas acontecendo. Eu não vejo uma forma fácil. Como quer que eu reaja depois de ver a sua ex-mulher, a mesma que diz não amar, aqui, na minha frente debochando do fato de eu ser tão...
Engoli a última palavra, sensibilizada pela situação do meu corpo e por tudo o que me confundia. Eu dei dois passos para longe, jogando para trás as mechas úmidas de cabelo que batiam na minha face, segurando a cabeça como se ela estivesse pesada. Wayne tentou se reaproximar, e toda vez que fazia isso eu recuava ainda mais, até ele se cansar de ser tolerante e me puxar de volta para si, com a sua força inigualável, segurando o meu rosto, aflito.
Suas pupilas estavam dilatadas e em contorno com os meus olhos vermelhos, numa suplica de lágrimas.
— O que você quer de mim?
— A verdade...ou pelo menos uma parte dela — balbuciei trêmula.
Christopher arfou, soltando tanto ar dos pulmões que por um segundo pensei que ele sufocaria. Seu movimento foi desequilibrado, até sua atenção se reorganizar.
— Eu e ela namoramos por um bom tempo, e como em muitos relacionamentos pretendíamos chegar ao ápice. Noivamos, marcamos uma data, casamos, e então eu descobri que Beatrice estava falida e em busca de alguém que a mantivesse estável. Esse alguém foi eu. E se você quer tanto saber como foi, sim Dulce, eu dediquei a ela muitos sentimentos. Me entreguei, e foi desastroso descobrir essa injúria.
No mesmo instante o meu coração se prensou, como se houvessem posto um peso gigante sobre ele, seguido da magoa de saber que Christopher realmente amou aquela mulher. Entristeci, mas mantive a compostura.
— Assim que rompemos ela sumiu e fez o mesmo com outro, só que desta vez obteve sucesso. Eu não sabia que ela estava casada com aquele investidor, mesmo assim, preciso ser profissional.
— Isso inclui a visita dela?
— Beatrice é ousada e gosta de provocar. E além de tudo, já passei as ordens para que ela não entre aqui novamente sem permissão.
— Ela disse que você ainda a ama — murmurei, inserindo mais uma das insinuações da megera.
— E você acreditou nela? — Rebateu ele, formando uma ruga no meio da testa — Diga se acreditou.
— Porque não?
— Porque isso já faz anos, e porque eu estou com você. Não preciso de mais nada Escobar. O que quer que eu faça para que se convença disso?
— Só preciso me sentir incluída na sua vida. Saber das coisas, ser informada. De que adianta você dizer que me quer, que sou suficiente, quando na realidade é você quem não confia em mim, me omitindo tudo.
— No momento não achei necessário que soubesse que ela ainda estava aqui. Pretendia não te aborrecer com isso.
— Percebe? Não adiantou. Mentiras nunca adiantam para nada. Se tivesse me contando talvez fosse diferente.
Christopher sabia que tudo fazia sentido, e que ninguém em sua sã consciência conseguiria conviver daquela forma.
— Prometo que vou ser mais claro.
Ele confirmou aquilo, me envolvendo em seus braços, carinhoso. Retribui manhosa, respirando mais aliviada.
— Me desculpa?
— Só se você me deixar dar um soco na cara daquela biscate na próxima vez que ela ousar voltar aqui.
Lhe arrancando uma risada descontraída, Wayne me abraçou e me deu um beijo, calmo, tocando meus lábios com o seu polegar ao fim do suspiro.
— Esqueça ela — ressaltou fatigado — Infelizmente o marido a deixou no país para fechar o negócio comigo, e tive que conviver com isso.
— Ela deve ter planejado.
— Possivelmente — esclareceu, dando de cara com o meu presente.
Eu percebi que ele olhou o objeto dando uma atenção maior depois de toda a nossa conversa.
— E isto? Não lembro de ter dado a você.
— E não deu — respondi me soltando para segurar a caixinha — Theo me presenteou ontem.
— Theo?
— Sim, o meu professor.
— Hmm, então esse é o nome dele.
— Você não sabia?
— Samantha apenas o sugeriu, mas não me deu esses detalhes toscos, além do fato dele ser comprometido.
— O nome de alguém não é um detalhe tosco.
Repreendi pela forma zombeteira dele falar de Theo, mas eufórica pela sua preocupação. Wayne também tinha ciúmes.
— Eu não tive tempo de perguntar sobre suas aulas.
— Nada de interessante para você.
— Certo, então, vou trabalhar.
Ele notou que meu semblante mudou depois do seu anúncio, e para contornar a situação, seus lábios se curvaram, voltando até mim para me dar mais um último beijo.
— Não se preocupe.
Christopher me deixou, sabendo que aquelas rugas foram causadas pela raiva de saber que Beatrice estaria na empresa na hora em que chegasse. Porém, dei a ele a certeza de que tentaria não me irritar com aquilo.
***
Durante a tarde, passei a maior parte do tempo me dedicando em organizar todo o material que usaria para os estudos daquele dia. Só que para a minha maior surpresa, eu cheguei antes de Theo na sala de estudos.
Ele nunca atrasava, e muito menos tinha o costume de faltar as aulas. Apreensiva, aproveitei a sua demora para adiantar alguns exercícios pendentes. Os minutos seguintes correram, fazendo com que eu me acovardasse ao ouvir o som dos sapatos ecoarem próximo da porta.
Os olhos azuis de Theo reluziram através das lentes do óculos, me arrancando um sorriso tranquilo, feliz em vê-lo finalmente. Mas havia algo de errado. Ele parecia um pouco incomodado.
— Boa tarde — a saudação foi fúnebre, diferente da sua alegria de sempre.
— Você se atrasou.
— Eu nem ia vir, mas achei errado faltar.
— Porque não ia vir? — Perguntei ficando de pé.
Ele aproximou a sua pasta de couro marrom do corpo, e levantou os óculos que escorregavam toda vez que mirava o chão.
— Depois de ontem, eu não queria ser inconveniente — esclareceu, e eu me desanimei.
Com o olhar pesaroso fui para o lado dele coberta de lástima.
— Desculpe pelo que aconteceu. Eu fiquei muito magoada quando lembrei que seria a primeira vez que não ia passar o meu aniversário com meus pais.
Falei emocionada em lembrança do que Christopher havia feito por mim.
— Compreendo.
— Mesmo assim, muito obrigada pela caixa! Eu adorei.
— Pensei imediatamente em você quando a vi na vitrine da loja de presentes — disse pensativo — Uma bailarina, bela, e presa dentro de uma caixa, dançando apenas quando sua corda é puxada, para agradar os olhos de quem a possui.
— Você me acha parecida com a bailarina? — Rebati diretamente, enlaçando os braços.
— Não... você é apenas delicada como ela.
Ele justificou suas palavras, mas mesmo assim não consegui acreditar exclusivamente nelas.
— Vamos estudar?
— Theo, eu gosto muito de você.
A minha abordagem o fez transparecer um sorriso ingênuo. Mostrando os dentes límpidos, ele voltou a sorrir da maneira que eu tanto gostava.
— Você fica corado quando te elogiam? — Brinquei.
— Escobar, não intimide seu professor! Ande! Vamos ler de uma vez!
Ele dizia aquilo em voz alta, empurrando minhas costas, agitado como um menino de dez anos. Eu gargalhava, descontraída pela sua timidez. Era bom zoar aqueles que tem os mesmos problemas que os seus.
— Ui ui, o professorzinho não pode ficar sem mim — cantarolei as palavras e ele também gargalhou.
— Vou te dar um zero anãzinha!
Eu me diverti mais do que o comum, infernizando Theo até que o seu sangue subisse deixando-o a cada segundo mais rubro.
***
NOTAS
Amoras, me desculpem pela demora, mas eu acabei de iniciar minha pós-graduação, nesse final de semana, e por isso me ausentei >.< Mesmo assim, para matar a saudade, amanhã tem outro zeradinho!
Miiil beijos <3
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