
014
— Que tal essa?
Ela segurava uma blusa preta, com decote cavado e algumas pedrarias, mostrando-me. Naquele momento eu refleti em como não sabia mesmo escolher boas roupas, porque o talento de Samantha para fazer aquilo era impressionante. Aquela era a terceira boutique que entravamos, e toda vez que ela me mostrava alguma peça eu não sabia dizer não. Todas eram bonitas e ao meu gosto. A mulher praticamente comprou tudo sozinha, sem a minha opinião.
Enquanto as vendedoras a bajulavam mostrando mais combinações, eu me sentei junto com Alfredo num espaço afastado.
— Ela é louca.
O mordomo sorriu e se endireitou.
— A Srtª Béquer tem mesmo bom gosto.
Percebendo que estava sozinha, ela veio para onde estávamos carregando um semblante contrariado.
— Dulce! Precisa vir escolher!
— Samantha, você já comprou muitas roupas, e eu não tenho como pagá-la.
— Deixe de besteira garota, eu tenho muito dinheiro para gastar e essas comprinhas não vão me falir.
Insatisfeita, a mulher me levou de volta para selecionar novos estilos, como se minha decisão fizesse mesmo algum efeito sobre ela. Samantha só se deu por vencida quando me pôs dentro de um jeans azul, justo e rasgado, e uma regata branca. Ela sorriu ao me ver despojada e totalmente diferente da imagem infantil que Wayne me obrigava a manter, e só concordei quando também me certifiquei disso no espelho. Me senti igual na noite em que fui naquele jantar, mas agora, naquele momento eu me via como a Dulce de West-Coast. A mesma garota que tinha tudo...
Sem perceber uma lágrima brotou dos meus olhos e a limpei rapidamente.
— Vamos comer alguma coisa ninfetinha — sussurrou próxima do meu ouvido — Andar o dia todo me deu fome.
Sinceramente desisti e convencê-la a não me chamar mais daquela forma tão incômoda.
Estirando os braços animada e plena, Samantha nos levou a uma lanchonete, bem elegante até, localizada na rua onde as lojas mais caras de São Francisco se concentravam. Do lado de dentro, vislumbrei as pessoas trafegarem de um lado ao outro durante seus dias corridos, agitados e típicos de cidades grandes, recordando que passei naquela mesma calçada ao lado de minha mãe, admirando as vitrines, exibindo vestidos caros e preciosos. Vi também ela acabar com todo as suas economias guardadas na bolsa, na compra de um deles. Dona Barbara não conseguia controlar seu amor por roupas caras.
— O que você quer comer Dulce?
Parei um pouco para decidir o que comer, mas logo o sabor cremoso e doce de uma lembrança esquecida me sugeriu o pedido.
— Um sorvete de brigadeiro.
Samantha não parecia admirada com o meu pedido, tanto que ela apenas concordou e pensou no seu.
— Para mim, traga uma fatia de torna de espinafre.
A garçonete anotou tudo e saiu. Alfredo não quis nada.
— Alfredo... Hmm, você poderia buscar minha carteira dentro do carro? Prefiro pagar isto aqui com dinheiro em espécie.
O mordomo encarou a mulher como se aquilo não fosse uma boa ideia, mesmo que dentro do seu eu "serviçal" algo gritasse para ele obedecê-la.
— Não se preocupe, cuidarei dela — ressaltou, segura.
Convencido ele se foi, mas nada contente.
— Nossa, você deve odiar tudo isso.
Na verdade, quando toda a cena aconteceu eu estava em um outro mundo. Um onde as minhas lembranças empacavam qualquer relação com a realidade. Mas ela insistiu tanto pela minha atenção, que foi inevitável não despertar do devaneio.
— O que disse?
— Essa situação toda de cárcere, não te incomoda? — Perguntou logo ao sugar sua água com gás através do canudo.
— Não é das melhores.
— Olha ninfeta, eu sei o que ele teve que fazer com você, mas meu Christopher parece diferente.
— Me desculpe não acompanhar o seu raciocínio Samantha, mas eu sou a única desinformada de tudo aqui.
— Eu sei disso, por isso mesmo mandei seu mordomo sumir. Você precisa entender algumas coisas.
Surpreendida, me enrijeci na cadeira e a fitei esperançosa.
— Tipo o que?
— Não há nada em especial que queira saber?
— Sobre Wayne, — rebati direta — e o porquê de ele ter me comprado.
— Hmm, você foi logo na mais difícil! — Reclamou desanimada — Isso eu não posso dizer por ele, mas até onde sei, meu queridinho cumpriu ordens do seu papai morto.
— Ordens do pai?
— Thomas era tão misterioso quanto o filho, embora fosse bem mais simpático, então não há como saber exatamente esse detalhe.
— E a mãe? O que houve com ela?
— Martha está internada em uma clínica psiquiátrica.
— Clínica?
— Sim, mas esse assunto é chato, eu queria mesmo era que você me perguntasse sobre o seu sobrenome. Que tal pensar um pouco mais nele?
Eu ia contesta-la por mais respostas, mas a garçonete trouxe os pedidos e nos interrompeu. Na mesma hora Alfredo também retornou, e com uma expressão de poucos amigos. Eu nunca tinha visto ele agir daquela forma antes.
— Srtª Escobar, temo que este passeio já deve se encerrar, devemos voltar a mansão.
— Deixa de chatices Alfredo, ainda nem comemos — Samantha revirou os olhos aborrecida ao dizer aquilo.
— Srtª Béquer se nos levar de volta for algum incômodo, peço que a Srtª Escobar me permita acompanha-la até um táxi.
— Eu os trouxe e vou leva-los — rebateu enfadada — Não precisa me ameaçar.
A mulher mal provou o seu pedido, levantando-se logo para sair. Como escolhi um sorvete, foi fácil caminhar enquanto comia. No meio do caminho me perguntei porque a mãe de Wayne estaria internada, e de certa forma isso justificava a recusa de Alfredo em se meter naquele assunto. Realmente era algo muito delicado de falar. Na voz de Samantha parecia algo normal, mas estava longe ser. E fora isso também tinha a tal insinuação dela sobre o sobrenome da minha família.
Voltamos até a mansão, mas a morena decidiu não entrar. Ela apenas mandou que seu motorista entregasse todas as sacolas, e com um sorriso simples se despediu, indo embora.
Fui direto para o quarto guardar todas aquelas roupas, animada por não me imaginar mais tão diminuída.
— O que vai fazer com as peças antigas?
— Guarde-as numa sacola e deixe aqui. Depois decido o que fazer.
Ele fez o que eu pedi, e após terminar saiu para cumprir com as suas obrigações.
Foi exigir demais dele que me acompanhasse durante toda aquela tarde, e já beirava a noite, com certeza o mordomo teria algum trabalho atrasado. Eu nem sabia mesmo o que um mordomo fazia, mas a julgar a competência e atenção de Alfredo com tudo, suas delegações deviam ser muitas naquela casa.
Assim que voltei a ficar em privacidade, puxei o celular e escrevi o meu sobrenome num dos sites de pesquisa, embora isso fosse um pouco improvável. Pessoa importantes eram encontradas, não eu.
Então a página carregou, e as imagens de um homem barbado e um pouco acima do peso invadiram a tela. Na legenda estava escrito: Pablo Escobar, um homem procurado pela justiça pelos crimes de tráfico de drogas e assassinato.
Com a boca seca, recostei a cabeça na cabeceira da cama e soltei o celular, desconsolada.
Era o meu tio...
Meu tio Pablo, o mesmo que me fazia visitas, me dava presentes. Mas eu não tinha noção do que ele representava, e quando soubemos da sua morte, foi anunciado que havia sido um acidente. Nunca sequer imaginei que ele estivesse envolvido em tantas coisas ilícitas e cruéis. Como Samantha sabia disso? Christopher sabia? Todos?
Desesperada e sem saber o que pensar, permaneci inerte por alguns minutos até meu estômago rosnar me lembrando que não tinha jantado nada. A fome que senti me levaram a querer sair de dentro do quarto, e por sorte, quando pus a cara fora não vi nem um dos grandões que me vigiavam. Corri pelo corredor indo até a cozinha. Ao chegar lá dei de cara uma das cozinheiras, a mesma que me deu a prova do suculento prato italiano.
Tentei disfarçar meu abatimento, evitando um contato visual mais forte entre nos duas, andando contra ela e fingindo buscar algo.
— Posso ajudá-la?
— Queria comer alguma coisa.
— Quer que eu lhe sirva o jantar?
— Não... preferia que fosse algo mais leve.
— Pode olhar esta geladeira aqui, de repente algo lhe agrade. — Dito isso ela me cumprimentou e se foi.
Somente na cozinha haviam três geladeiras com duas portas, cheias de comida, mas optei por montar um sanduíche simples. Pus queijo, algumas alfaces, creme de atum e fatias de presunto defumado. Depois que me dei por satisfeita, peguei mais um iogurte e comecei a comer antes que algum dos seguranças desse por minha falta.
Aquele lugar era quase do mesmo tamanho que a sala e cozinha da minha antiga casa, era espaçosa demais e muito limpa.
Como estava sozinha, acabei ficando com as pernas enfraquecidas e prostrei no chão, recostando numa das geladeiras. Curti aquele breve momento de paz, exalando a minha revolta por tantas mentiras e ocultações. Meus pais, no fim das contas, se aproveitaram do meu desinteresse, da minha ingenuidade para usa-la contra mim, mantendo-me como uma estupida ignorante.
Eu podia chorar. Não havia nem um funcionário, ninguém que me perturbasse o juízo, então a tristeza teve liberdade de me acompanhar, discreta.
Juntei as pernas como numa posição de ioga e comecei a cantarolar uma das canções que meu pai e eu cantávamos, rebaixada, perdida.
As coisas não faziam muito sentido.
Então, abruptamente, a atmosfera ao meu redor se tornou mais fria e o desenho de um corpo na meia luz se formou próximo a mim. Levantei o olhar, discreta, dando de encontro com Christopher completamente paralisado e sem expressões. Ele apenas me lançava um olhar vago, como se algo em minha face o assustasse.
Não era cedo demais para retornar Wayne?
Abri a boca sugerindo uma fala, mas a tranquei novamente ao notar que seus pés realizaram mais três passos em minha direção.
— O que é isso? — Frisou ainda fissurado — Porque está vestida assim?
A sua voz não acompanhava as suas reações. Wayne mal abria a boca para falar, ele pronunciava tudo como se murmurasse.
— Por favor, eu não quero discutir algo tão inútil, me deixe sozinha de novo.
O menosprezei por querer permanecer sozinha, pelo menos naquele momento, sem que suas chatices ou implicâncias me padecessem mais.
Só que meu coração não estava nem um pouco preparado para recebê-lo de joelhos ao meu lado, naquela roupa alinhada e desenhada para um jovem empresário. Agitado, trêmulo, inconstante, os meus batimentos cardíacos denunciaram o inflar exuberante do meu peito, buscando folego, só em ter um homem como aqueles, tão bonito e tão perto de mim, soltando o seu hálito mentolado, quente, sobre o meu rosto gélido. Imóvel, encarei Wayne pedindo internamente que algum pedaço de juízo que lhe restasse o impedisse de me usar, porque naquele estado, eu cederia a qualquer migalha de afeto.
Segurando o meu queixo, como sempre, para manter minha atenção, o homem ofegou fazendo surgir uma ruga entre as sobrancelhas, quase que penosas, e sussurrou:
— Não acredito que ousou me tentar dessa maneira Escobar. Não posso crer na sua audácia.
— Porque diz isso?
— O que sente por mim Dulce?
Meus olhos acenderam, avermelhando minhas maças e me deixando ainda mais estática.
— Quer que eu a beije? — Insistiu provocando-me com seus lábios quase encostados aos meus.
Em questão de segundos me perdi, fechando os olhos para esperá-lo concretizar sua insinuação.
Usufruindo da minha permissão, Christopher me segurou como se eu fosse escapar das suas mãos, sugando os meus lábios e acariciando a sua língua na minha, impetuoso. Envolvi-me a ele e nós dois compartilhamos aquele momento com muita intensidade, até o som do seu riso tosco interromper o nosso beijo.
Sem compreender, me afastei completamente retirando minhas mãos de cima dele. Wayne voltou a me encarar, levantando-se aos poucos com um olhar astuto.
— Você foi mais fácil do que pensei.
Chocada com o que tinha acabado de ouvir, a decepção foi tão inexplicável, que não consegui reagir. Apenas deixei que ele saísse da cozinha, mantendo o seu desprezo.
***
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