
007
Eu sei que a meu plano era permanecer dentro daquele quarto por um bom tempo, fugindo de qualquer tipo de realidade, mas algo humano dentro de mim exigia respirar e conhecer a casa em que estava a mais ou menos duas semanas.
É, desde que perdi meus pais os dias pareciam passar rápidos e imperceptíveis. Eu não tinha noção do tempo, não sabia nem em que dia estávamos... Era quarta ou quinta-feira?
A rotina que criei se baseava em: comer, dormir, chorar e repetir isso todos os dias. As vezes era diferente quando Alfredo se permitia puxar assunto comigo, ao invés de apenas deixar a bandeja com a minha refeição em cima da mesa de centro e sair.
Coloquei um vestido rosa com bolinhas que estava dentro do closet - acredite, era a única coisa menos infantil que existia ali - e me olhei no espelho para checar se caia bem. Fiz um gesto de reprovação me sentindo ainda mais nova usando aquele tipo de roupa. Um dia contestei Alfredo sobre o "gosto" de quem as comprou e porque pensaram em uma criança de dez anos ao escolhe-las, mas ele apenas riu da minha crítica. Só podia ter sido o tal Wayne... ou Christopher, sabe-se lá como ele preferia ser chamado.
Alfredo falava os dois nomes, então por que não fazer o mesmo?
Descontente, parei de me olhar e andei para fora do quarto. Quando destravei a porta a primeira imagem que tive foi de dois homens, enormes, parados um em cada lado. Eles me olharam e deram um sorriso tão fechado quanto os que eu dava. Fiquei um pouco desconcertada, mas endireitei a coluna e olhei para frente, voltando a andar, até que um deles estirou o braço e impediu a minha passagem.
— Sinto muito, senhorita, mas não temos permissão para deixa-la sair.
O QUE?!
— Como assim não posso sair?
— Essas são as ordens.
— Ordens de quem?!
Depois de perguntar tive plena certeza que sabia quem havia feito aquela ordem. Ora pergunta idiota, lógico que foi o dono da casa, quem mais poderia ser? Minhas pernas tremeram de ódio.
Voltei para dentro, possuída, e acabei descontando minha ira nos objetos que decoravam o meu quarto. Lancei travesseiros, desfiz a cama, joguei as cadeiras no chão e quando me virei para jogar um dos livros da estante embutida fui pega de surpresa por "ele" parado ao lado da porta. Mas eu já tinha arremessado a obra de filosofia naquela direção, e com agilidade, o homem desviou do que estava prestes a lhe acertar a cara.
Ele olhou em volta, pegou em seu queixo de uma forma quase que atraente e pôs os braços para trás.
— Isto aqui está uma verdadeira bagunça.
Minha voz sumiu sem avisar e só então pude ver realmente como era. Os olhos castanhos e o cabelo ondulado, quase cacheados, enriqueciam o porte alto, rígido e firme como pedra que ele admitia ao andar. Vindo na minha direção, notei que não era tão velho, mas com certeza tinha mais idade que eu.
— Humm — continuou, me olhando igual da primeira vez que nos vimos — parece que a roupa combina mesmo com você.
Tremi por dentro, calada, apenas ouvindo cada deboche vir da parte dele. Essas roupas ridículas? Acho que alguém está precisando de óculos...
— Quem fez isso também comeu a sua língua?
A pergunta parecia bem mais com uma repreensão do que qualquer outra coisa.
— Desculpe, mas eu não sabia que ia vir — mas que droga! Por que me desculpei com aquele cara?
— Dava para ouvir o som do seu momento por todo o corredor, querida — ele enfatizou "momento" e "querida" de uma forma zombeteira — e meu quarto não é tão distante daqui.
Wayne falava de uma forma sensual, mas não parecia forçada. Era como se ele fizesse isso naturalmente. Imaginei que ao dar ordens aos seus empregados, ele devia seduzi-los. Foi um pensamento tão divertido que não consegui segurar a expressão de riso que dei, mesmo disfarçando-o com a mão.
Ele fechou o semblante e pareceu não gostar nada do que fiz.
— O que é tão engraçado, senhorita Escobar?
Maravilha, ele também sabia meu sobrenome.
— Me desculpe... — mais uma vez, Dulce Maria! Pare de se desculpar com ele!
— Arrume o seu quarto e desça para comer na mesa com todos. Acho que já passamos da sua fase infantil e isolada. Pelo menos quero acreditar nisso — ele disse a última frase olhando mais uma vez para a minha obra de arte provocada pelo desânimo.
Christopher Wayne saiu dali me deixando com mais raiva do que sentia antes. Quem ele pensava que era? Me tratando como uma idiota, infantil e mimada. Eu não era daquele jeito. De forma alguma! Meus pais nunca viveram na riqueza e nós éramos simples, não tão pobres já que meu pai fazia o possível para nada nos faltar. E ele? O que Wayne era?! Um almofadinha, riquinho e estupido.
A beleza externa daquele ser humano não era capaz de esconder o quão desagradável ele podia ser.
A capa bela dele caiu para mim e só vi a feiura daquela alma.
Pronto, aquele era o homem do Milhão. O que me comprou...
E a julgar a forma áspera que me olhava, eu parecia tê-lo decepcionado antes mesmo de nos conhecermos.
No calor da conversa nem tive tempo de perguntar porque haviam homens na minha porta, e porque eu não poderia sair.
A busca por estas respostas me encorajou a aceitar o convite do jantar.
Esperei que chegasse a hora certa para poder sair, mas antes mesmo de me manifestar, Alfredo entrou todo eficiente.
— Vim buscá-la. — disse tranquilo, pelo menos até olhar a situação em que estava o meu quarto.
— Por que esses homens estão na minha porta? — perguntei como se nem o tivesse ouvido falar.
— Cumprem ordens — falou ainda repudiando a bagunça.
— Disso eu já sei Alfredo! — Rebati agoniada — Mas o que esse homem pretende me deixando aqui, sendo vigiada?
— O senhor Wayne sabe o que faz, e os motivos pelo que faz. Apenas desça, senhorita.
— Eu vou mesmo, e ele vai me responder tudo isso.
— O patrão não é bom com perguntas — o tom de voz de Alfredo parecia preocupado. Ele de forma inconsciente me pedia para não fazer nada.
Infelizmente eu era determinada demais para deixar aquilo passar, e era no mínimo uma obrigação daquele homem me esclarecer algo.
— Vamos descer?
O mordomo soltou o ar, dando-se por vencido e me guiou até a sala de jantar.
Onde estava "todo mundo" que Christopher mencionou hoje mais cedo?
Naquela mesa só tinha ele sentado, bem na ponta, mexendo no celular.
À sua volta, tinham três empregados vestidos com aventais brancos, olhando para alguma coisa que não era nem um de nós dois. Alfredo me colocou à duas cadeiras de distância dele e ordenou que os empregados buscassem a comida, retirando-se logo atrás deles.
Wayne terminou o que fazia e se endireitou, encostando os braços na beira da mesa.
De novo aquele olhar desagradável e analista se ocupou de mim.
— Você demorou demais.
— Tinha hora marcada? — Perguntei no tom mais cínico possível — Perdão senhor Wayne, não sabia disso.
O homem sorriu com o nariz, admirado pelo meu atrevimento.
Pegando em seu queixo, ele o torceu devagar, fazendo um som estranho. Era como se pensasse consigo mesmo.
O curto momento espinhoso foi interrompido com a chegada do jantar. Eles nos serviram em pratos de porcelana, e ocuparam novamente os seus postos, em fileira, como antes. Aquilo me incomodava.
Era desagradável ver que eles nos olhavam comer sem dizer nada.
Se bem que não era muito diferente do que Christopher e eu fazíamos.
O único som durante aquele jantar era o dos talheres batendo na louça. Eu cortava a comida e a levava até a boca com receio de fazer barulho, de tão silencioso que estava o clima.
Olhei para Wayne e engoli o resto de comida que tinha, para me pronunciar.
— Preciso fazer algumas perguntas.
Ele parou de cortar o frango dando a impressão de que não acreditava estar ouvindo a minha voz. Levantei a vista rapidamente e vi que Alfredo me encarava descrente, fazendo um sinal discreto e negativo com a cabeça.
— Nos deem licença por favor.
Alfredo saltitou nervoso com o pedido do patrão, fitando-me com mais veemência ainda. Porém admitiu com agilidade a sua postura e saiu.
Fiquei sozinha com ele e temendo o porquê do pedido inesperado.
Meu coração começou a ficar agitado, de uma forma estranha.
Wayne me dava medo.
— Melhor perguntar o que quer agora que já estamos a sós.
— Por que existem homens vigiando o meu quarto? — disse direta, mas ele não pareceu surpreso com a minha reação.
— Porque é necessário — respondeu voltando a comer.
— Necessário por que?
— Para a sua segurança.
— Segurança? — duvidei — Não faz sentido.
— Mas para mim faz e isso basta.
— Também não posso sair do quarto em nenhum momento que quiser?
— Não.
— Isso é absurdo. Me tirou de um lugar como aquele para me manter igual aqui?
— Não diga isso novamente! — Ele rebateu jogando o garfo sobre a mesa com força. Furioso. — Não compare aquele lugar imundo com a sua nova vida.
— Vida? — repeti — O que você quer? Porque me comprou?
— Não vou responder isso.
— Mas você disse que eu poderia perguntar o que quisesse.
— E pode, mas isso não significa que vou responder tudo o que perguntar.
— Argh! — grunhi, fitando-o mesmo sendo ignorada — Não tem como eu achar que devo confiar em você ou na sua palavra dessa forma. Você pagou por uma pessoa!
— Paguei! — repeliu levantando-se da cadeira e deixando a sua elegância de lado — E graças a esse dinheiro você está aqui, comendo bem e desfrutando do que nunca teve. Eu te resgatei daquele lugar, salvei você! Sua garota estupida e mal agradecida.
Ele chutou o canto da mesa e andou, fugindo dali. Christopher era mesmo um imbecil, e me xingar parecia normal para ele. Mas aquela conversa não podia terminar ali, nem daquela forma. Mesmo que minhas pernas estivessem bambas de pavor, o segui e refiz o caminho pelo qual passou pegando-o próximo de uma porta marrom no andar de baixo.
— Ainda não terminei de falar com você! — gritei antes dele entrar onde tinha parado, mas foi em vão. Wayne adentrou o cômodo e me largou lá fora.
Alfredo surgiu me segurando cuidadosamente pelo braço, acalmando a situação. Só o que o mordomo não esperava era que o meu desespero me faria abraça-lo pela cintura, assustada, e começasse a chorar em seu peito.
— Eu só queria saber porque... — Solucei, recostando-me mais ainda nele.
De alguma forma Alfredo matou a impressão rude que tive antecipadamente e deu lugar a uma nova, uma onde eu o via como um avô.
— Avisei que o patrão não gostava de perguntas, senhorita — disse pesaroso.
Não falei mais nada a ele. Apenas fui levada de volta ao meu quarto ainda sobre o acalento do mordomo.
Depois de um bom tempo comigo dentro do quarto, Alfredo foi embora com a desculpa de que tinha muitos assuntos para cuidar.
Ele não disse muita coisa, apenas me ouviu chorar e reclamar de Christopher, rebatendo que seu patrão não era tão ruim quanto aparentava.
Mas não era o que eu estava disposta a pensar naquele momento.
Meus olhos ainda se recuperavam da vermelhidão, e enquanto isso acontecia, me ocupei com um das melhores coisas daquele quarto.
A janela.
Ela me proporcionava uma vista incrivel do céu escuro e coberto de estrelas brilhantes. A vista dali era com certeza uma das mais bonitas.
Minha casa não tinha janelas iguais aquelas. Elas eram geralmente fechadas e cobertas de grades.
Com o vento frio batendo em meu rosto, comecei a contar o máximo de estrelas possíveis, rindo de mim mesma pela tolice de achar que conseguiria conta-las.
Distraidamente ao fazer aquilo notei que no meio de uma constelação haviam duas estrelas maiores, e neste exato segundo uma onda de memórias me invadiu.
Meu pai sempre me contava histórias sobre o lugar para onde as pessoas iam após a morte, e que sempre, cada um de nós, se transformavam em estrelas.
A minha sensação era de aquelas duas deviam ser eles, me olhando. Meus pais mereciam ser estrelas. Ambos eram bons e de coração nobre.
Com uma tristeza descomunal, abracei meu corpo, e continuei a olhar o céu.
O barulho dos passos tranquilos de Wayne me acovardou, até meu olhar se fixar ao dele.
— Eu tranquei a porta — ressaltei com a voz timidamente trêmula.
— Mas eu tenho uma chave.
Andei de costas contra a janela, numa reação momentânea, até ser aparada pelo vidro.
Christopher se aproximou de mim, entre o breu do meu aposento, e ficou próximo o bastante para eu notar que suas maçãs estavam demasiado rubras.
— Não tenha medo — esclareceu —
Apenas precisamos conversar.
***
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