Capítulo 49
CAPÍTULO 49
"Ainda que eu falasse a língua dos homens e falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria." A música irritante e bela de Renato Russo ecoava na cabeça de Maria Marta, talvez por ser inspirada em uma de suas passagens bíblicas prediletas. "Só a fé, a esperança e o amor me mantiveram viva", pensou a beata. "A leucemia podia ter me matado e eu não seria obrigada a viver com essa culpa", refletiu a filha do meio de Ginevra. "E olha só quem você é: uma péssima mãe, uma péssima esposa. Talvez você não deveria ter se tornado isso. Mas poderia ser uma boa pessoa, pelo menos."
Eram 24 de fevereiro de 2015 e, embora as pessoas não soubessem, Maria Marta sempre pensava isso na Igreja. E agora pensava nisso a todo instante, com a descoberta que tinha um meio-irmão e que este tivera um romance com sua sobrinha. E ainda Luís Cláudio queria que o bebê dos dois morressem. O bebê não tinha culpa. Nenhum dos três citados tinha mais culpa do que ela. Os pensamentos da filha de Simão foram interrompidos com a chegada de Marcelo, que sorrindo lhe convidara:
– Precisamos voltar para casa.
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Nos próximos dois dias Simonetta faria onze semanas de gravidez. Ela sabia que o bebê tinha sido concebido naquele dia. A maldita enxaqueca com aura tinha sido a responsável por fazê-la esquecer de tomar os anticoncepcionais e assim engravidara daquele neném, que mesmo envolto numa maldição familiar, era uma benção.
– Eu sei que não tenho sido a melhor das católicas. – Dizia Simonetta olhando para a imagem de Nossa Senhora Aparecida. – Eu ando com bruxas, brigo constantemente com meu pai e não falo com ele há quatro dias, forniquei muito antes de casar, mas, por favor, Virgem Mãe me ouça. Eu quero essa criança de qualquer forma, seja menino ou menino, nasça com deficiências graves ou não. Convença o meu pai que o melhor é que o Garethzinho nasça e faça com que tudo durante essa gravidez ocorra bem. Por favor, Virgem Santa, lute aí no Céu junto ao seu filho pela vida e pela saúde do Gareth. E me perdoa se mesmo depois de tudo isso eu querer ficar com ele. Espero que esse meu desejo não influencie na vida que o nosso filho deve ter e na vida do Gare. Obrigada por tudo e lembre desses pedidos com carinho.
Simonetta não era uma bruxa, ainda, ou talvez nunca fosse, mas acreditava em médiuns. Talvez depois de abrir seus sentimentos com Gareth, Simonetta enxergava às vezes algo que parecia ser a aura das pessoas. A aura do Mikhael, por exemplo, tinha vários tons escuros no lugar do que deveria ser um laranja chamativo. Luís Cláudio tinha uma aura roxa e, ultimamente, ela ganhara umas manchas pretas. Mas, apesar da agressividade e orgulho do seu pai, aquela combinação não passava medo à Simonetta. Já Gareth tinha as cores amarela e azul em sua aura com alguns tons marrons, que haviam se intensificado nos cinco dias que estava em coma.
Mesmo com aquele histórico de visualizações, as cores que Simonetta parecia enxergar naquele momento eram diferentes: eram brilhantes como o Sol e apaziguavam seu coração conturbado. O mais estranho de tudo é que não havia ninguém além dela dentro daquela Igreja. Assim, segundos antes de Leônidas chegar, Simonetta fez questão de virar-se para a imagem de Nossa Senhora Aparecida e falar em alto e bom som:
– Obrigada, Virgem Maria!
Leônidas certamente notou que Mona havia visto algum tipo de fantasma e abraçara carinhosamente a amiga.
– Ei... – Interferiu o aquariano. – Qualquer pessoa que tivesse tomado uma caixa de anticonvulsivantes misturados com gasolina morreria quase instantaneamente. Mas ele é o Gareth e um vaso ruim como ele não quebra. A tia Asia quer que você volte para casa dela para vocês fazerem umas orações à Deusa. Segundo ela, Hécate avisou-lhe em sonho que o Gareth vai melhorar da pneumonia adquirida.
– Graças à Virgem e graças à Deusa! – Agradeceu a gestante mais uma vez.
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Marcelo amava Maria Marta pois sabia que atrás de toda aquela dureza existia uma grande mulher. Ele só não podia ser conivente com as manias de Marta e com seu tempo para entender as coisas como realmente eram.
– Marta... – Dizia Marcelo à mulher pensativa no carro. – Você tem noção que o Abel e o Caim já vão fazer nove anos e ainda não falaram uma palavra sequer? Só fazem alguns sons quando estão precisando de alguma coisa? E não adianta dizer que é uma maldição divina pelos nossos pecados. Já pensou seriamente que os gêmeos podem ter um grau de autismo mais severo que o do Eden?
– Eles são parcialmente surdos e até que se comunicam bem por libras. Você não vai cair na conversa de psicóloga salvadora da pátria da Helionora, não é? – Irritou-se Maria Marta.
– Eu só sei que para a maioria dos psiquiatras o Eden sempre teve só TDAH, até que ele começou ter epilepsia, a ter insônia, depressão e queimar um altar durante a missa. Você vai esperar o Abel e o Caim fazerem o quê, para pensar na hipótese da Helionora? Eles queimarem a nossa casa, ou nunca falarem só porque você se conforma que eles são parcialmente surdos ou porque acha que é uma maldição divina? Já está na hora de você pensar que eles têm dificuldade em falar porque têm problemas na comunicação social, assim como na interação entre os outros membros da nossa família que não sejam eles mesmos. Eles se parecem muito com o Eden... – Discursou Marcelo.
– Talvez porque sejam filhos do mesmo pai e da mesma mãe... – Justificou Marta.
– Talvez porque tenham o mesmo transtorno que o Eden em um grau mais incapacitante. – Opinou Marcelo. – Às vezes fica difícil falar contigo. Fica a impressão que quanto mais desgraças recaem na nossa família você acha melhor. Marta, os nossos filhos precisam da gente. E não! Deus não está te castigando porque você não cumpriu sua promessa de cura, não.
– Sabe qual é a verdade que eu queria que você soubesse? A vida e o mundo são bem piores do que você imagina, Marcelo. E que, para os padrões desse planeta, você é bom demais, Marcelo. Bom demais. – Desabafou a beata.
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Depois que Helionora descobriu que Eden era autista, a causa e a dimensão da luta das pessoas com TEA e de seus pais pareceu ser a vocação da sua vida. Maria Marta, às vezes, era extremamente insuportável, mas Helionora compreendia a apreensão da irmã. Em pleno século 21 o autismo ainda era muito estereotipado, tipo: o autista deve ser isolado, totalmente antissocial e com retardo mental, porque, se fugir de uma das regras ditadas pelo senso comum da sociedade, não pode ser. Infelizmente, o diagnóstico de TEA para muitos pais era pior que o diagnóstico de morte. Isso lhe fez lembrar Marina, uma menina autista que para seu pai simplesmente parecia estar em estado terminal.
Marina, como revelou Eden, fora internada, várias vezes, por surtos comuns de pessoas no espectro, os meltdowns. Isaías não conseguia reconhecer nem ao menos a inteligência da filha, vendo apenas que seu hiperfoco, que era jornais, atrapalhava a vida da garota. Marina já passara diversas vezes nos exames de qualificação de ensino médio e, para Helionora, ela merecia essa chance: pegar algumas matérias de leitura na UFES. Foi difícil, mas Liô conseguiu.
– Como vai, Helionora? – Perguntou o delegado Isaías. – É um prazer te ver por aqui, embora... Eu soube o que aconteceu com o seu mais novo irmão.
– Obrigada pela preocupação. Ele está melhorando aos poucos. Eu queria falar com a Mar... – Dizia Helionora, quando ouviu passos demasiadamente rápidos da garota em sua direção.
– Liô! Que saudade. – Respondeu a menina, abraçando a psicóloga com um certo receio. – O Eden está bem? Ele te mandou dizer como anda a história sobre autismo dele?
– Não. O Eden ainda está em seu "projeto detalhado de pesquisa para que a história saia, no mínimo, decente". – Contou a tia de Eden. – Na verdade, eu queria falar sobre a faculdade e sobre os seus sonhos, Marina.
– Tudo que Marina precisa é ficar um tempo em casa e depois vamos procurar algum tipo de cura para isso. – Respondeu o delegado Isaías, se esquivando de Helionora.
– Autismo não tem cura porque autismo não é uma doença. É uma condição. – Interferiu Helionora. – E eu quero saber a opinião da Marina que já é grandinha o suficiente para ter as próprias.
– Eu gostaria de fazer uma faculdade, mas não acho que eu possa passar no vestibular agora. – Lamuriou-se a garota.
– Você pode pagar duas matérias de leitura como uma pessoa qualquer e não adianta me falar nada mais, Isaías. – Deteve Helionora. – A melhor maneira de tratar o autismo, principalmente o de grau mais leve, não é trancar ninguém em casa. Depois a gente conversa de maneira mais definitiva.
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Simão sentia que havia recuperado a vida depois de descobrir que Gareth e Asia haviam sobrevivido ao atentado. Tudo ficaria mais difícil se não fosse a compreensão e carinho de Américo. Ele era a ponte que lhe ligava à infância perdida do filho caçula.
– Então foi este o terreno cremado para que a Asia e o Gareth não morressem? – Perguntou Simão Garuzzo ao observar o extenso terreno da família Setembrino.
– Sim, enquanto a área florestal que Asia foi salvar continua verde. – Lamentou-se Américo ao pai de Gareth. – Infelizmente o nosso terreno ficou amaldiçoado depois disso. E, eu perdi meus pais por motivo nenhum.
– Eu sinto muito. – Respondeu Simão. – A sua relação com eles era boa?
– Eu gostava bastante deles e eles de mim. Eles ficaram meio indiferentes com a Asia depois que ela decidiu seguir a Wicca, mas, mesmo assim, acolheram ela quando ela apareceu grávida do Gareth. A dona Maria das Graças e o seu João Hélio Setembrino não foram pais ruins. Acabaram morrendo tragicamente, mas não mereciam.
– Mamãe também não merecia morrer do jeito que morreu. Bem, eu prefiro não entrar em detalhes de como foi. – Desabafou o dono da S.V. Comunicações. – Fiquei feliz ao notar que a Asia botou o nome dela no nosso filho: Gaetana era o nome dela!
– Jura? Ela me disse que colocou o GG no nome do Gareth porque ele nasceu com Sol em Gêmeos. Mentirosa, hein.
– Ei... – Disse o italiano ao ter uma ideia brilhante. – Você aceitaria que eu injetasse dinheiro nesse terreno para a gente comprar algo para o Gareth? Mas tipo, isso fica entre nós.
– Sim, você precisa fazer algo pelo seu filho. – Concordou Américo. – Negócio fechado!
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Eram 26 de fevereiro de 2015 e Simonetta estava preparada para fazer aquele ultrassom contra a vontade de Luís Cláudio.
– Emocionada de acompanhar o primeiro ultrassom do meu primeiro neto. – Comentou Asia. – Espero saber o sexo dele ou dela hoje.
– A senhora já está pensando em mais de uma criança? De fato podem ser gêmeos, trigêmeos... – Sacaneou Stella.
– Gente, chega. – Interrompeu Simonetta. – Eu estou com apenas onze semanas e acho que não vai dar para ver o sexo. E pensar em outro filho a essa altura do campeonato é na base da loucura ou da confiança que vamos está extremamente ricos para cuidar de duas ou três crianças, com faculdade e tudo. E outra coisa: o Gareth não vai querer ver nem cinco centavos do vovô, então deixa quieto.
– Eu devia, pelo menos, ter avisado ao Gareth por que não podia dizer nada sobre o pai dele. Foi necessário esconder Gareth dos olhos das víboras, mas o Simão não merece tamanha rejeição do Gareth. – Comentou a futura avó.
– Queria que o papai tivesse 5% do discernimento da Asia, mas infelizmente ele não tem. – Comentou Simonetta. – Bem, eu acho que é hora de entrarmos. Me desejem boa sorte, meninas.
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Helionora gabava-se de ser uma psicóloga competente principalmente pela extensão de seus variados contatos. Wanderson era um deles. Mais que colega de profissão, o psiquiatra era seu amigo e Helionora precisava mais do que nunca de amizades por perto.
– Obrigada por ter vindo. – Agradeceu Helionora a Wanderson. – Eu preciso que você me ajude a convencer o Isaías que a Marina pode fazer uma faculdade aos poucos e também preciso de sua ajuda com o Abel e o Caim.
– Será um prazer continuar a trabalhar com pessoas no Espectro, mas eu não sei se eu seria capaz de ser imparcial em uma avaliação clínica do seu irmão mais novo. – Respondeu o psiquiatra.
– Você vai superar esse passado recente terrível. E, claro, cada caso é diferente... – Dizia Helionora quando foi interrompida por Leônidas.
– Onde está a Simoninha? – Perguntou o estudante de Administração. – É urgente.
– Está fazendo ultrassom, por quê? – Indagou a loira.
– Quanta coincidência. Eu tenho uma notícia que vai deixá-la mais feliz ainda. – Começou. – O Gareth despertou do coma!
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