Capítulo 114
CAPÍTULO 114
Conforme Asia tinha previsto, 2020 estava sendo catastrófico. Como se não bastasse a possibilidade de uma Terceira Guerra Mundial, devido as tensões entre Estados Unidos e Irã, um vírus assustadoramente contagioso e letal havia se espalhado pelo mundo e chegado até o Brasil.
Era 16 de março de 2020 e Gareth e Simonetta estavam desesperadamente tentando arranjar uma forma de entrar na Itália. A terra natal de Simão era, até então, o país europeu que pagava o preço mais alto devido ao novo Coronavírus: os mortos já passavam de 2000. Já no Brasil, haviam cerca de 200 casos confirmados do vírus ceifador. O pior: o presidente do país subestimava até demais a nova doença letal.
Assim, diante o cenário preocupante que se instalava, Gareth e sua esposa decidiram convidar poucas pessoas para o lançamento do livro de Eden. Sim, após tanto tempo da promessa feita do primogênito de Maria Marta para a filha de Isaías, Eden finalmente conseguira reunir relatos reais de pessoas autistas e misturar com a ficção que havia planejado. Estranhamente, Simonetta havia negligenciado os cuidados de sua terceira gestação, que se aproximava do sétimo mês, para acompanhar e apoiar o primo na finalização de seu projeto.
Liberada de tais reflexões, Asia decidiu se atentar ao lançamento, mesmo não conseguido controlar seu coração palpitante ao avistar qualquer pessoa desconhecida entrando no recinto.
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Luís Cláudio estava surpreso com sua evolução material, espiritual e ética. Anos atrás jamais teria se imaginado dando ouvidos para as falações de Eden, muito menos casado e feliz com uma bruxa ou simplesmente amando Simonetta independente de suas escolhas.
– Foi difícil, muito difícil conseguir esses relatos. Eu pensei que a maior parte dos autistas que entrariam como personagens nesse livro teria o pensamento semelhante ao meu e eu tiraria isso de letra. Mas não. Eu precisei ouvi-los para que o meu protagonista, meu homônimo óbvio, não fosse uma cópia exata do meu autismo. Tive que mudar tantas coisas... Em alguns quesitos, o Eden de Espectro é muito mais parecido com meus irmãos do que comigo: prefere ficar no seu canto, interage pouco, fala poucas palavras, se comunica em várias línguas; em outras partes é idêntico a mim, especialmente nas crises. – Pronunciava o jovem. – Espero que quem se disponibilizar para ler goste realmente do que fiz. Por fim, queria agradecer à Marina, que me propôs esse desafio; à Mona, minha prima amiga de outras vidas. Ela se dedicou bastante a esse lançamento. E, especialmente, ao meu pai. Ele foi um dos primeiros, senão o primeiro a dar ouvidos às minhas necessidades e diferenças. Espero que ele esteja em um lugar muito melhor que a Terra. – Concluiu o filho de Marcelo, sendo acompanhado por uma salva de palmas.
– Tenho orgulho de tê-lo como primo! – Confessou Stella.
– E eu de ser seu tio. – Completou Luís Cláudio.
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Simonetta quase pediu para Eden para participar das entrevistas que dariam origem ao livro Espectro. Quase. Embora tivesse certeza que o primo agiria naturalmente ao saber do autismo de Gabriel e Olívia, não era garantia que alguém mal-intencionado soubesse e tentasse usar disso para pintar Gareth e Simonetta como um casal irresponsável e não merecedor da criação dos filhos. Sim, o autismo tinha causas genéticas. Sim, Gareth e Simonetta fizeram um teste que afirmava que os filhos nasceriam sem qualquer sequela. Sim, o parentesco próximo e ascendência quase idêntica pode ter sido determinante para o nascimento das crianças com o transtorno.
– No livro Histórias Vividas deparei-me com uma imagem de uma jiboia engolindo um elefante. Desenhei-a e mostrei-a para os adultos. Eles confundiram meu desenho com um chapéu! – Falava Gabriel como se fosse um pequeno adulto.
O primogênito de Gareth e Simonetta preferia, obviamente, repetir tudo que estava escrito em O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry. Contudo, Olivia insistiu tanto que a peça falasse de misticismo que Marina teve que escrever uma própria inspirada na obra clássica: O Pequeno Príncipe Místico. Sim, o mesmo nome que Luís Cláudio apelidara Gareth.
– Mas que tipo de chapéu é esse? – Indagou Olívia, sem olhar nos olhos do irmão. – Uma quipá, dos judeus? Uma chéchia, dos muçulmanos? Uma dupatta, dos hindus? Ou um chapéu cônico das bruxas? Ou o solidéu do papa?
– Não sei. Talvez se eu desenhar um avião possa procurar o dono desse chapéu, isto é, se isso for realmente um chapéu. – Propôs Gabriel, decorado.
– Vamos! – Respondeu sua irmã.
Durante a apresentação da peça os irmãos visitava os "planetas" de cada religião ou cultura citada nos questionamentos de Olívia. Ágatha, irmã de Simonetta, se propôs a ser a portadora do chapéu cônico; Maria Joaquina escolhera a quipá para ser o seu chapéu e Maysa, que já havia vivido na Índia, tomara posse de uma dupatta; os gêmeos, embora fossem grandes demais e comparação com os primos ficaram com os outros dois chapéus: Caim com a chéchia e Abel com o solidéu.
– Cada pessoa disse que o teu chapéu, Gabriel, representava a cultura deles... Mas, eu acredito na verdade que seja um chapéu de cowboy. – Disse a garota atuando. – Pois eu assim prefiro que seja e prefiro manter o chapéu neste planeta que vivo, que se chama Terra!
A apresentação acabaria com Marina, em um vídeo previamente gravado, explicando as analogias feitas. Desde do bullying que sofrera na UFES, a namorada de Mônica evitava fazer apresentações em público.
Estranhamente, quando Simonetta fora procurar tal vídeo, homens altos e desconhecidos a seguiram. O vídeo estava no "cantinho" de Gabriel e Olívia dentro daquele espaço físico da Mercúrio Retrógrado. Sim, Gareth e Simonetta foram babões o suficiente para fazer isso.
– Por favor, senhora, permita-nos acessar esta estante de vídeos. – Pediu um dos homens estranhos.
– Mas por quê? Essa é a estante dos meus filhos, não tem nada de errado aqui. – Respondeu.
– Se não tem nada de errado, a senhora vai nos permitir acessá-la. – Justificou-se. – Por favor, senhora. – Concluiu.
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Stella seguira, desconfiadamente, os seguranças que acompanharam Simonetta. Aquele ano de 2020 estava tão ruim que Stella esperava qualquer coisa dele, inclusive a concretização completa da profecia da guerreira Joana d'Arc: "Se você, minha xará, entrar pra essa família terá que se conformar em viver entre espadas e impedir nossas irmãs de irem pra fogueira ao mesmo tempo que deverás salvar os discípulos de Roma de queimarem no fogo do Inferno." Por enquanto, sua entrada sorrateira na família dera à Alasca e à Asia a chance de serem olhadas com olhos menos julgadores, inclusive da parte sacerdotal dos Garuzzi. Mas, em qual Inferno, os filhos de Roma poderiam entrar? Inferno pior que a morte de Marcelo e as armações de Mikhael? Ou pior que o atentado a Gareth e a quase falência da empresa da família?
Com essas reflexões, Stella decidiu acompanhar qual checagem os seguranças fariam na Mercúrio Retrógrado. Sua intuição lhe dizia que o verdadeiro inferno para os Garuzzi estava preste a começar. Suas suspeitas foram confirmadas quando imagens de sexo entre Gareth e Simonetta apareceram no DVD em que deveria estar o filme de O Pequeno Príncipe.
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Gareth jamais desconfiara que seria olhado com aquele olhar novamente. Depois de esvaziar pouco a pouco o alojamento físico da Mercúrio Retrógrado, o geminiano teve liberdade de questionar a si mesmo: "Quem teve a audácia de colocar a minha transa com a Mona no dia em que geremos o Miguel?" José Miguel era o nome que Gareth e Simonetta tinham escolhido para o terceiro filho, que era um menino, em homenagem a São Miguel Arcanjo, que havia derrotado todos os demônios do casal em 2019.
– Eu posso ter sido o cara mais sacana do mundo, o pior de todos os filhos, mas pedófilo? Eu não sei como essa merda de vídeo foi parar aí. – Desabafou Gareth. – Eu e Simonetta nunca gravamos nenhum momento íntimo nosso. Isso só pode ser, me perdoe minha mãe, bruxaria e das grandes! – Exclamou Gareth, que lançou um breve olhar para sua mãe.
– Se o senhor não sabe, nós, que recebemos a acusação, sabemos menos ainda. A única coisa que sabemos é que encontramos um conteúdo inapropriado no lugar do DVD de O Pequeno Príncipe, que é um filme que seus filhos assistem por conta própria, como o senhor e sua esposa disseram. Só podemos deduzir que se até agora não perceberam a "troca" é porque sabiam o conteúdo que estava ali. – Revelou um dos seguranças.
– Seu policial, me desculpa, mas o senhor realmente acha que qualquer pai ou qualquer mãe deixaria um vídeo adulto de propósito no "cantinho" de seus filhos? – Indagou o geminiano, quase saindo do controle.
– Quaisquer pais não, mas vocês eu acredito plenamente que sim. – Respondeu o representante da lei.
Antes contudo que os policiais dessem o veredito final, Simonetta sugeriu que aquela seria a hora de contar aos seus filhos o que era tão doloroso para ambos.
– Gare, a gente precisa conversar seriamente com os nossos filhos antes que alguém mal-intencionado faça isso e fale a verdade de uma maneira cruel. – Interferiu Simonetta. – A gente precisa contar para eles sobre a nossa árvore genealógica maluca.
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Simonetta estava se preparando para ser mais forte do que nunca tinha sido. Sim, só aquele instante requeria o triplo de força que a primogênita de Ruthy tivera que tirar de si durante toda a gravidez de Gabriel. Ela esperava, agora, que Miguel pudesse sobreviver a toda pressão que sua mãe teria que passar naqueles próximos meses: o modo com que tudo aconteceu não permitia terceiros acreditarem na inocência dela e de Gareth.
– Meus amores, papai e mamãe precisam ter uma conversa muito importante com vocês. – Dizia a gestante, enquanto acariciava a barriga.
– Por que aqueles homens entraram aqui dentro de casa? – Perguntou Olívia, a tagarela.
– Eles vão fazer alguma peça para a livraria? – Sugeriu Gabriel, inocentemente.
– Não, eles não foram convidados do papai e da mamãe. – Respondeu Gareth. – O papai e a mamãe vão precisar passar uns meses longe de vocês, só por precaução, tá? Vocês vão ficar com a vovó e com o vovô aqui em casa.
– A vovó e o vovô voltaram? E a Stella? – Questionou Olívia. – Acho que o vovô não gosta muito da gente.
– Vocês estão com o "conovid" para se isolarem? – Achou Gabriel.
– Não. Os avós que vão ficar com vocês é a vovó Asia e o vovô Simão. – Revelou Simonetta. – Papai não gosta de falar muito, mas o vovô Simão é papai do papai.
– Eu só sabia que ele era papai do seu papai, mamãe. – Confessou o pequeno virginiano.
– Quando o papai e a mamãe se conheceram, o papai ainda não sabia quem tinha plantado a sementinha na vovó para que o papai pudesse nascer. – Completou o pai de três. – O papai... – Tentou dizer o homem, sendo impedido pelo choro.
– A mamãe e o papai só souberam que eram o papai do papai quando você, Biel, era uma plantinha miúda no solo dentro da barriga da mamãe. – Relembrou a gestante.
– Se o papai do papai é papai do vovô, você e o papai são o que, mamãe? – Disse Olívia, chegando na questão central.
– O papai está para a mamãe assim como a Ágatha está para vocês dois. A bisa Gina não é mãe do papai assim como a Stella também não é minha mãe. – Concluiu Simonetta.
– Certo. É por isso que vocês têm que ficar longe da gente? – Adivinhou Gabriel.
– Essa configuração não é comum e é associada com coisas más, sabe? – Respondeu o economista. – Mas independente de tudo, o papai e a mamãe amam muito vocês e nós vamos voltar pra cá pra pegar as malas e ir pra Itália, tudo bem?
– Eu também amo vocês. – Disse a pequena escorpiana, com um abraço raro em ambos os pais.
– Usem máscaras! – Avisou Gabriel.
Por fim, Simonetta e Gareth foram conduzidos pela polícia, deixando os filhos ao cuidado de Asia. Ela esperava reencontrá-los um dia.
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