Referências
Tempos atuais...
Mesmo trem, mesma garota, já não tão comportada.
Interações diferentes.
Viviane Lourival observava as pessoas puramente por questões acadêmicas. Estava buscando argumentos para melhor desenvolver a sua pesquisa de mestrado na área de Psicologia e Sociedade. Continuava sem inspiração para os questionamentos necessários à linha de interações interpessoais em espaços públicos.
Seguia em sua viagem de trem para a universidade, catalogando o comportamento ao redor - tinha em mãos um bloquinho de notas e caneta Bic. Ela era adepta das anotações manuscritas, não "celulografadas". Ao menos, não ficavam sujeitas a vírus, malwares, ou panes diversas...
Observar pessoas não era tão chato quanto imaginava ser... A experiência estava se revelando até bem interessante. Passar o tempo entre o embarque e a chegada ao seu destino era uma forma de escape intelectual para ela. Suas melhores análises foram formuladas durante as viagens de metrô, na Big Banana. Isso porque, ao contrário de outras pessoas, ela curtia o confinamento do trem.
De suas observações, depreendeu que parecia existir uma divisão invisível entre os passageiros, inerente ao contexto da própria viagem... De certo como deveria acontecer nos vagões de trem do mundo inteiro, ela supôs...
Havia o grupo privilegiado dos "sentados" e o grupo ordinário dos "não-sentados". Grupos estes, que se alternavam com a rapidez dos dados rolando numa roleta em pleno giro... Os sentados e os não-sentados dependiam da sorte e do azar de chegar antes, ou depois, a fim de ocupar um assento. Todos tinham que aguentar o confinamento; e, com poucas exceções, refugiavam-se em seus pequenos "dispositivos" a fim de passar o tempo.
Viviane estava justamente se perguntando o que se passava na mente dessas pessoas... Se é que se passava alguma coisa. A maioria parecia estar apenas entretida - ou mergulhada num mundo só seu; eram voyeurs de imagens e informações sintéticas (sem fontes garantidas).
Quem não estava entretido, estava dormindo... o que dava na mesma. Mas Viviane notou que durante o sono, a maioria dos dorminhocos se agarrava desesperadamente às suas bolsas. Considerou a possibilidade lacaniana de as bolsas representarem simbolicamente seus mundos pessoais. Fez uma anotação a fim de explorar a ideia. Quem sabe a trilha dá em algum lugar interessante...
A colega de "apertamento", Rafa, teria revirado os olhos diante das suas confabulações sobre divisões sociais dentro do metrô. Já se encontrava saturada, tanto quanto ela própria, das filosofações acadêmicas a que as duas precisavam se submeter... Ainda estavam sob o efeito estroboscópio de destrinchar suas respectivas "perguntas de pesquisa", diante de uma banca de qualificação; o que lhes garantiu, sem dúvida, a aprovação dos respectivos projetos...
Rafaela Salazar estava se especializando em Assistência Social, na área das Relações Familiares Contemporâneas, cuja linha envolvia atendimento a crianças em situação de vulnerabilidade, dentro da família. Viviane, por sua vez, ainda não tinha certeza da escolha da linha. Tudo que tentava propor acabava lhe parecendo vago ou supérfluo. Sua trajetória acadêmica foi construída num trabalho do tipo "sanduíche". Ou seja, o cruzamento entre áreas afins - no caso, Sociologia e Psicologia.
Alguns de seus professores, os mais tradicionais e dogmáticos, não viam com bons olhos a formação "sanduíche". Mas, Viviane não era o que se podia chamar de estudante convencional; embora, às vezes, se considerasse uma Hippie disfarçada de Nerd; ou Punk disfarçada de Yuppie. A Maria do Quarteirão na casa dos De La Vaya, ou, dos Torres-Landias... Bem, já estava misturando as novelas... Enfim, eram todas iguais.
Deus a livrasse se o Doutor Mechas descobrisse que ela assiste novelas mecânicas!
Ela se considerava eclética e holística na maneira como olhava para o mundo. Mas seu pai costumava dizer que havia uma linha muito tênue entre ser eclético e ser superficial. Ele era um acadêmico aclamado no círculo científico do país. Seus artigos eram perfeitos; as pesquisas, de ponta; seu nome era frequentemente citado como referência para os trabalhos de outros acadêmicos.
LOURIVAL, V. (de Venâncio)...
Diferente de LOURIVAL, V. (de Viviane). Isso gerava confusão e ela sempre recebia perguntas de sites acadêmicos: Você é LOURIVAL, V., citado por ciclano ou beltrano? Você tem quinhentas menções....
Lá estava ela tentando trilhar os passos do famoso pai... Caminhando sob a sua sombra...
Nos momentos mais depressivos, Viviane se via como uma fraude; "fazendo tipo" para chegar a algum lugar. Em outras palavras, bancava a intelectual acadêmica sem saber ao certo porque devia insistir na carreira. Era como se estivesse se anulando, como pessoa, como individualidade. Não se via integrando a comunidade científica, com seus modos e etiquetas peculiares.
De uns tempos para cá, começou a se sentir menos acovardada. Talvez porque tenha deixado a casa do pai... Ela alugou um apartamento na zona estudantil da Universidade dos Balangandãs - a UdB. Mesmo que o espaço não fosse só seu e tivesse que dividi-lo com Rafa, era um grande alívio poder viver e fazer o que bem quisesse.
Viviane conseguiu emprego como professora temporária, e ministrava aulas para os estudantes da graduação em psicologia. Sua rotina era pesada: preparar aulas, corrigir trabalhos, estudar para o mestrado... Não sobrava tempo para mais nada. Via-se comendo filosofia, psicologia, e sociologia pelos próximos dois a três anos e meio... Pretendia utilizar o mestrado como trampolim para o doutorado e, depois, prestaria concurso público para professor efetivo da universidade.
Rafa tinha outros planos. Já estava empregada como assistente social da Prefeitura da Big Banana. Ela trabalhava com famílias e crianças em situação de vulnerabilidade. Estava usando toda a experiência de seu trabalho para elaborar a tese. Quando concluísse o mestrado, não pretendia seguir a carreira acadêmica. Queria apenas uma qualificação profissional para melhorar o salário.
Como boas amigas e colegas de "apertamento", elas pretendiam passar juntas por todas as dificuldades acadêmicas - dando apoio uma à outra. A pior parte do curso acadêmico de pós-graduação estava em filtrar os conceitos pertinentes ao estudo que se deseja realizar. Afinal, muitos deles parecem atraentes demais para duas novatas cheias de gás - e por que não? - novatas deslumbradas! Que desejam escrever sobre tudo; pesquisar sobre tudo. Para olhos pouco treinados, todo e qualquer evento do cotidiano, por menor que seja, pode ser dissecado à luz das ciências sociais e filosóficas.
O problema das ciências humanas é que há muitas ciências. Não... Talvez o problema esteja em muitas vertentes e teorias dentro de cada uma dessas muitas ciências. Cada qual negando a existência da outra, criando ou reproduzindo dogmas racionais... Sendo o ser humano multifacetado, complexo e contraditório, como pode a ciência humana entendê-lo por meio de métodos estéreis e reducionistas...?
Por outro lado, há que se considerar que, se não reduzir o escopo de investigação e não utilizar um método, a ciência não pode validar afirmações, teorias ou hipóteses...
O problema de certa forma estava em Viviane, que não aceitava isso. Por causa das suas dúvidas pessoais, ela tinha dificuldade de eleger um único tema dentro do "grande esquema científico".
No campo de batalha das escolhas pessoais, ela optou em estudar a questão da "ordem" e como ela se manifesta na vida das pessoas... Quase como que espelhando na "ordem" que governa a estrutura profissional das ciências.
Por um lado, a ordem era essencial para a construção e manutenção de um mundo civilizado; mas, por outro, era um instrumento de controle...
Algo sufocante demais! Isto posto dentro de uma perspectiva pessoal... Morte lenta em vida - ela se pegou analisando com amargura, enquanto contemplava a multidão docilmente confinada no vagão do trem. De repente, lembrou-se da letra de uma velha canção...
Eh, oh, oh, vida de gado
Povo marcado, eh!
Povo feliz!
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Viviane decidiu aproveitar o tempo da viagem para realizar um exercício de estranhamento, como lhe foi ensinado pela sua antiga professora de Antropologia Cultural, na graduação, Doris Pavlov Pfeiffer... Double P para os alunos. O exercício consistia em se distanciar da cena, numa espécie de "jogo de observação". Afinal, quando as pessoas mergulham na rotina, podem achar natural, ou normal, certas atitudes e comportamentos que se repetem vezes sem fim no cenário cotidiano. Mas, quando se procura olhar de fora, elas conseguem ver com mais clareza.
O estranhamento é um ato simples, porém deliberado, de criar uma atmosfera de novidade para recuperar a sensibilidade das pessoas diante dos acontecimentos. Pode ajudar as pessoas a perceber que, talvez, algumas situações não devessem ser consideradas tão normais e naturais quanto elas acham... Especialmente os atos de violência física e verbal; atos de dominação e exclusão; e as atitudes provocativas e conflituosas que geram desgastes desnecessários. Quando as pessoas se acostumam ao desconforto, à agressão e à injustiça, acabam contribuindo para a escalada da violência, ao invés de combatê-la.
A vulnerabilidade social não é assunto apenas para os sem teto e desempregados, como se convencionou estudar. Vulnerabilidade social pode envolver toda e qualquer relação que gera a desigualdade entre as pessoas, a perda de empatia, e a infelicidade coletiva. Trata-se da vulnerabilidade de um ou mais indivíduos perante outros. No entender de Viviane, o tema inclui questões micro e macrossociais. Como quando ocorre uma relação desigual entre empregado e chefe; marido e mulher; e entre países explorados e países opressores.
As pessoas se acostumam a essas relações de desigualdade, mas não deveriam.
Viviane se perguntou de repente: O que leva as pessoas confinadas em um trem a ignorarem umas às outras, mesmo estando plenamente conscientes de sua presença? Isso era contraditório. Alguém pode reparar na roupa de alguém, se lhe agrada ou desagrada, mas não se interessa em saber quem aquela pessoa é... Não quer conhecê-la realmente.
Passando os olhos pelas figuras quase estáticas, Viviane se deparou com uma garota destoante do grupo. Ela estava fazendo o mesmo: observando as pessoas. Parecia um ponto de calor e cor em meio a um mar cinzento de robozinhos. Viviane a estudou, por um momento. A garota não se vestia de um jeito lá muito convencional, mas também não estava tão fora dos padrões, exceto pelos brincos artesanais, com penas e pedras coloridas; Ah, sim, os anéis e pulseiras cintilantes... "Tilintantes", na verdade. Produziam um som delicado a cada vez que ela mexia os braços, em meio ao silêncio ruidoso do vagão. Ela se movia de vez em quando...
Foi então que Viviane percebeu que a garota observava a multidão de uma maneira diferente da sua. Com vívido interesse e deslumbramento. Como alguém que gosta de gente. Diante de tal compreensão, Viviane levantou as sobrancelhas, num misto de ceticismo e surpresa. Mas eu gosto das pessoas... Não gosto? Ficou perturbada, por um instante...
Considerando a experiência profissional que teve como professora de uma faculdade particular - mais para pesadelo do que experiência, ela de repente duvidou... Duvidou da sua fé na Humanidade. Isso poderia comprometer a visão e a abordagem que faria durante as observações. Talvez tendesse a ver o copo "meio vazio" ao invés de "meio cheio".
Viviane suspirou, lembrando de tudo o que passou naquela faculdade. Uma descida ao inferno de Dante, no mínimo.... Tentou reorganizar os pensamentos.
Quando os olhares de Viviane e Alegra se encontraram, e esta lhe deu um tchauzinho com a mão, Viviane reagiu como a maioria das pessoas - desviando bruscamente o rosto. Foi quando se deu conta de que estava perto do ponto onde costumava descer. Levantou-se e foi para junto da porta.
O condutor freou; o anúncio foi feito; a porta se abriu.
Viviane saiu do vagão para a plataforma, aborrecida por ter sido flagrada em sua observação calculista (e com isto, correu o risco de atrair atenções indesejadas). Costumava dizer que nasceu com uma placa colada à testa, onde se lia: "Vinde a mim, os malucos de plantão". E se a moça do trem pensasse que ela está interessada? E se fosse uma doida varrida? Se fosse como a aluna que conheceu na faculdade e se revelou "cria" da Glenn Close, em "Atração Fatal"...!?
Ah, talvez estivesse paranoica, traumatizada... Desde aquele episódio lamentável, passou a ter muito cuidado com as pessoas com quem se relacionava, fossem amigos, fossem colegas.
Via de regra, ela fugia dos malucos de plantão. Mas sabia que nem todos eram perigosos ou nocivos... Havia os tipos que rendiam as melhores inspirações, pois quebravam as regras dissimuladas e hipócritas da sociedade. Infelizmente, não tinha como saber de antemão qual maluco era nocivo e qual não era. Além do mais, estava sem tempo, nem disposição, para dar vazão às suas inspirações. Em outro momento, quem sabe, adoraria investigar uma figura exótica num vagão de trem e escrever a respeito...
O seu segredo, que escondia de todos, era a vontade de escrever longe das amarras acadêmicas. Ela quase seguiu o exemplo de Gumer, seu colega na Universidade. Ele trabalhava como técnico de TI, mas nas horas vagas escrevia sob pseudônimo... E dava vazão às suas inspirações.
Com um suspiro resignado, Viviane saiu da estação e caminhou rápido rumo aos estabelecimentos comerciais ao redor do campus. Parou diante de uma porta dupla, com placa espalhafatosa, onde se lia:
Cafeteria: De Repente.
O Melhor Café da Big Banana.
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