Malucos de Plantão
Gumercindo Lopes-Reis suspirou, antecipando o prazer de degustar o melhor café expresso da Big Banana... Era feito com grãos especiais e selecionados, em uma máquina de café italiana que, segundo ele soube, foi paga em quinhentas mil prestações.
Não que ele fosse um connaisseur... Estava mais para entusiasta e cri-cri adorador do Deus Café. Só de ler as palavras especiais e selecionados, ele já salivava como o cão de Pavlov... Nem precisava ouvir a sineta!
Nicole colocou a bandeja diante dele, Gumer sorriu, agradecido. Ato contínuo, bebeu um gole e o saboreou bem devagar, sentindo-se no paraíso. Foi tomado por uma paz que só desfrutava quando ficava bebericando o seu café. Sentado à mesa preferida – a do canto oposto à porta da rua–onde podia observar os clientes que entravam e saíam. Lá fora parecia um formigueiro humano. As pessoas corriam para seus compromissos – de carro, de ônibus, de trem, a pé... Era uma verdadeira bananaceia desvairada. A De repente funcionava para Gumer como uma ilha de tranquilidade, em meio ao caos cosmopolitano.
Claro que, de repente, sua "ilha de tranquilidade" não era tão calma e silenciosa quanto ele desejava... Não era o ambiente ideal para se escrever; porém, era o único do qual dispunha um escritor gentílico vivendo nos Mananciais.
Sua família veio dos estados gentílicos para a Terra dos Mananciais, quando Gumer tinha cinco anos. Ele cresceu com a consciência que os outros não o deixaram esquecer: que ele era um típico imigrante ousando progredir na vida, mas cuja voz não era ouvida, nem respeitada. Ele ainda tinha a audácia de querer escrever como os nativos cosmopolitas da Big Banana.
Só Deus sabe o desafio de fazer isso em meio à vida social turbulenta de uma terra de exploração, com os fantasmas da escravatura ainda presentes no cotidiano das pessoas. Mesmo que elas não percebam.
A Terra dos Mananciais era uma terra sem memória, que assumiu as dívidas das Marinadas Além-Mar para conquistar uma liberdade ilusória. Ainda hoje envia suas riquezas para sustentar o estilo de vida das terras controladoras – entre elas, as poderosas Terras Alcalinas...
Os tataravôs de Gumer foram alforriados enquanto viviam nos estados gentílicos, mas a família nunca deixou de ser explorada. Toda conquista foi duplamente mais suada do que a das famílias brancas. Adicione-se a isto o desafio de escrever em ambientes turbulentos e se tem a receita de sucesso para o fracasso de um escritor pobre e negro. A não ser que esse escritor seja perseverante...
Gumer não se permitiu acreditar que acabaria desse jeito. Ele lutou e continua lutando.
Lá estava ele... Um imigrante de família ciclônica – aquela que cobra, cobra e continua cobrando – a tentar produzir algo relevante para a sociedade em meio ao caos reinante.
A família o sugava financeira e emocionalmente. Gumer não tinha um instante para si ou para a sua escrita. Exceto... Quando fugia para a cafeteria De Repente. Ali dentro, ele cavava para escrever.
Gumer, claro, não teve chance de se dedicar exclusivamente à escrita. Não possuía um lugar especial e aconchegante, onde pudesse se trancar, esquecer do mundo, com empregados que lhe fizessem todas as vontades, limpassem sua bagunça, pagassem suas contas, e respondessem as mensagens em seu nome, enquanto ele simplesmente viajava para a Lua, Marte, Saturno, com uma breve paradinha na Terra Real de Todos os Dias, só de vez em quando, para variar...
Ah, como ele queria... Ah, como sonhava... Ah, como lamentava...
Assim, aos trancos e barrancos, numa luta diária, sua escrita fluía do jeito que dava... Com momentos melhores e piores, por conta de sua revisão de leigo. (O trabalho de edição o fazia ficar com vergonha de si mesmo.) Com frequência, ele se questionava: Fui eu quem escreveu essa porcaria? Deus do céu!
Sua vida se resumia ao laptop bem equipado, bastante caro – cheio de penduricalhos, que ele encarava como um investimento; utilizava-o tanto para a escrita, quanto para o trabalho na universidade. Gumer fazia das tripas coração a fim de mantê-lo em bom funcionamento. Mesmo que tivesse que esconder o dinheiro suado para que a esganada da tia Vânia não afanasse ou lhe extorquisse na cara dura.
Até parece que ele conseguia ouvir a voz dela em sua cabeça, dizendo, depois de vasculhar o seu armário: – Perdeu, playboy, perdeu!
Por sorte, ele podia trabalhar quando e onde quisesse. Seu trabalho mais constante, junto a outros técnicos de TI, era manter os sistemas funcionando nos departamentos da UdB. Mas ele também auxiliava alunos e professores. O fato de a cafeteria estar situada perto do campus, tornava muito mais fácil fazer o seu trabalho, escrever, e ainda descolar alguns bicos como freelancer.
Ele conseguia unir o útil ao agradável; e ainda fazer sobrar algum tempo para seu novo livro: "As Peripécias do Detetive Chacras". O personagem principal era o seu xodó... Gumer sempre construía seus personagens aplicando bastante das suas vivências familiares. Fazia isso para atingir dois propósitos: desabafar e criar verossimilhança.
Ele sonhava em desenvolver o Detetive Chacras para uma série de suspense policial.
O primeiro livro estava se tornando um best-seller na plataforma Amigável-Auto-Publicação (AAP), da Partenon. Isso lhe favoreceu encontrar um agente literário hábil e – o que era raro e mais importante – honesto! Já havia uma editora de renome sinalizando interesse em publicar as aventuras de Manoel Chacras... Seus esforços começaram a gerar frutos e a escrita estava prestes a se tornar uma profissão viável.
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Entre um café e outro, pode se dizer que Gumer levava a escrita muito a sério. Podia parecer que não, devido ao prazer que sentia ao dedilhar palavras no teclado como um pianista criando música... A mãe Irene lhe incutiu a ideia de que trabalho suado e sofrido era sinônimo de sucesso. Quando a pessoa se divertia fazendo, não era trabalho... Era hobbie.
Pois o seu hobbie estava gerando lucros... Com um sorrisinho, ele cumpriu o ritual diário de acompanhar a posição dos seus dois primeiros livros no ranking da Partenon. O “Acarajé Final” estava em primeira posição e “O Mistério do Elevador Laticínio” ascendia na esteira do sucesso do primeiro. Gumer Reis, como assinava suas obras, recebeu críticas positivas e pulou da quinta para a quarta posição dos autores mais buscados.
Um blogueiro disse que o autor estava se tornando um nome conhecido no mundo literário do suspense.
Gumer havia feito uma promessa à Virgem do Vale. Se o seu primeiro livro decolasse, ele iria ajudar escritores iniciantes a também começar a percorrer o caminho das palavras. Criou um grupo de escrita criativa, com foco nos estudantes do ensino médio, de escola pública, e utilizou a escrita como recurso pedagógico para o desenvolvimento emocional e cognitivo dos adolescentes.
Alguns estudantes logo se destacaram; especialmente Dido, uma garota que enfrentava problemas de saúde que tornavam o seu dia-a-dia um desafio constante.
A família dele não sabia de nada disso, caso contrário, cairia em cima como um bando de urubus na carniça. Gumer estava no começo de uma carreira que podia dar em alguma coisa, como podia dar em nada; já se sentia suficientemente pressionado, por conta própria, a entregar um terceiro volume tão bom quanto os dois primeiros. Não precisava da família sufocando-o além da razão.
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Ele olhou para o título do capítulo e/ou tema, na tela do laptop: “As últimas horas da vendedora de Quindins”. Quando pensou no tema, a estória se desenhou rápido em sua mente. Contudo, não fazia ideia de por onde começar. Achou o título razoável para um capítulo, mas grande demais para colocar como título do livro... Precisava de algo mais curto e impactante.
De repente, duas coisas aconteceram ao mesmo tempo: um desconhecido sentou-se junto a sua mesa e um bate-boca teve início na fila do atendimento, próximo ao balcão. A atenção de Gumer se desviou para lá e ele acabou não cobrando a indelicadeza do sujeito que se sentou sem ser convidado. Aliás, ambos ficaram assistindo, meio que mesmerizados, a estranha altercação entre duas mulheres de meia-idade.
A cafeteria inteira assistiu, na realidade.
– Mas que cara de pau! Você pegou a minha senha!
– Tá falando comigo? – Riu a outra, segurando ostensivamente a ficha de atendimento que arrancou da mão da outra. – Sou cara de pau, mesmo!
A reclamante tentou levar na esportiva.
– Ah, é? Eu também sou cara de pau! Não tenho medo de falar quando vejo gente mal-educada furando a fila.
– Aaah... – a segunda não se deu "por achada"; sorriu, com deboche, antes de dizer: – Então somos duas, queridinha! Eu também não tenho medo de ninguém!
Olhou-a de cima, pois tinha o dobro do tamanho, em largura e estatura. – Ah, que maravilha! – Acrescentou num rompante teatral. – Encontrei alguém tão cara de pau quanto eu! Vamos ser amiguinhas, vem cá e me dá um abraço!
Ela simplesmente agarrou a outra, dando-lhe um abraço à força (abraço entre aspas, pois o que Gumer estava vendo era um estrangulamento mal disfarçado).
Para os demais que assistiam a ridícula cena, poderia parecer um abraço fraternal e cômico; mas, na verdade, era quase um golpe de lutador de MMA, para o qual, a mulher agarrada não podia se defender... Ou assim acreditava a "lutadora" cara de pau. Só que ela não esperava que a outra fosse virar uma fera e reagisse, livrando-se dos braços de ferro e empurrando-a com uma bela cotovelada.
– Quem você pensa que é, sua doida varrida, pra vir me agarrando desse jeito? Sua mãe não lhe deu educação? – Por coincidência, a mãe da "lutadora de MMA" estava junto.
O queixo de Gumer caiu. Quer dizer que a mulher de meia-idade escandalosa tinha uma mãe. E esta mãe se encontrava "escondidinha" perto da saída do caixa... A pobre idosa se afastou à francesa para não ser associada ao vexame provocado pela filha.
No entanto, a auto proclamada "rainha cara de pau" parecia não se convencer do seu erro, nem queria sair levando a pior numa discussão que ela própria provocou. Em termos julianos, queria parecer honesta, cheia de razão frente aos outros que assistiam a cena grotesca.
De certo estava acostumada a ganhar suas batalhas no grito e na intimidação. Não esperava que fosse encontrar alguém que não tivesse medo de barraco. A "lutadora de MMA" de certo acreditava que estava arrasando na passarela.
– Olha... – disse a parte ofendida, querendo encerrar a questão,mas não sem antes colocar a criatura em seu devido lugar. – Acho que lhe faltou uma boa surra na infância.
Imbuída dos pensamentos de vitória, sucesso e estrelato, a parte ofensora riu.
– Ah, me desculpe, querida, mas achei que você estivesse precisando de um abraço, sabe como é... Falta de amor – destilou ironia.
Ainda mais furiosa, a parte ofendida lhe apontou o dedo.
– Se me agarrar de novo, vou lhe mostrar o que é “amor”. O “amor” que você não teve na infância, sua coroa infantilóide. Pode deixar, vai receber muito amor de mim! – Ato contínuo, agarrou a sujeita e a sacudiu, com vigor.
Finalmente, a rainha da cara de pau começou a se assustar... Não esperava ser sacudida! Olhou para o público, que a encarou de volta em silêncio. Tentou angariar simpatizantes com sua expressão de susto, do tipo “olha só essa louca me sacudindo”. Finalmente entendeu que não estava agradando. As pessoas a avaliaram com reprovação.
A mãe dela pegou as encomendas, pagou e as duas se mandaram do estabelecimento. Já a coitada da mulher que fora agarrada e espremida como uma laranja, apoiou-se no balcão por causa da dor no pescoço e na coluna.
Tentou articular as palavras para fazer seu pedido. Estava com a voz trêmula de nervosismo e constrangimento. Mas, antes, para desabafar o mal-estar que sofrera, comentou:
–É a primeira vez na vida que sou agarrada por uma estranha.
Vitório, o dono da cafeteria, perguntou:
– Quer dizer que não conhecia aquela mulher?
– Eu não! – e riu, espantada pelo fato de ele não ter percebido o que rolou ali.
Logo entendeu que se fazer de João-sem-braço era uma habilidade que os comerciantes mais espertos aprendiam. Não existe cliente errado, porque todos eles compram...
– Quando ela a abraçou – Vitório disse em tom ameno – pensei que fosse sua conhecida...
– Nunca vi aquela louca na vida! Furou a fila, pegou a minha ficha de atendimento e quase tirou uma das minhas vértebras do lugar. Disse que queria me dar amor... Pode uma coisa dessas?
Vitório riu com incredulidade, mas não comentou.
Depois que a parte ofendida também saiu, ele foi até um quadro de giz, pegou o trapo velho e apagou o número 112.
Então, escreveu um grande e redondo zero. Na mesa de Gumer, o homem desconhecido riu e lhe concedeu uma explicação não solicitada: – Zero dia sem incidentes na cafeteria.
O ambiente desanuviou. As pessoas comentaram o episódio como quem comenta o final de um filme, de uma novela, ou mesmo de uma partida de futebol. O ambiente voltou à descontração e normalidade de antes.
– Coitada – disse o cara sentado junto à mesa de Gumer. – Mas eu compreendo... Às vezes também sinto que tenho uma placa escrita na testa “Malucos, eis me aqui”.
Gumer ficou olhando para ele por um longo momento.
– Não me diga! – Foi tudo o que disse.
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