Capítulo 15
Mirabela não recusara quando Gustavo a abraçou, não tinha forças suficientes para o fazer, mas também queria aquilo. Não conseguia lembrar a última vez em que permitira-se ser abraçada, ou mesmo chorar. Talvez fosse por isso que, quando começou, foi impossível conter as lágrimas e os soluços, como se seus sentimentos estivessem transbordando e não mais queriam ser presos e enjaulados no fundo da sua mente, como se estivessem se libertando todos os sentimentos que ela prendera com tanto afinco durante anos. Desistindo de segurá-los, Mirabela apenas retribuiu o abraço do garoto e continuou soluçando.
Não era possível dizer quanto tempo durou o abraço, mas para a menina, pareceu terem se passado horas chorando, tanto que ela começava a sentir uma leve pontada de dor na cabeça, além de uma breve falta de ar e tontura. Mesmo com os "efeitos colaterais", Mirabela se sentia mais leve de alguma forma, como se um enorme peso tivesse sido tirado de suas costas.
-Ei, você está melhor? –Pergunta Gustavo com um ar de preocupação, provavelmente devido ao tempo em que ela ficara chorando.
Desvencilhando-se do abraço, um pouco envergonhada pelo o que acontecera, ela enxugou as lágrimas na manga da camiseta e respondeu:
-Sim, eu acho. Na verdade, sei que vai soar um pouco estranho, mas estou me sentindo muito melhor do que venho me sentindo a muito tempo.
Ela volta o olhar para ele novamente, esperado ver uma expressão de estranheza em seu rosto, mas o que encontra é compreensão, como se Gustavo já tivesse passado por aquilo inúmeras vezes e entendesse completamente o que ela estava sentindo. Se aproximando dela, ele seca com o dedo uma lágrima que acabara de cair em sua face e, calmamente, responde:
-Na verdade, não, não é estranho. As vezes ficamos guardando nossos sentimentos com medo de senti-los, mas esquecemos que tudo uma hora transborda quando muito cheio.
Percebendo que estavam se encarando, Gustavo ainda com a mão em seu rosto, Mirabela desvia o olhar rapidamente, procurando alguma coisa aleatória ao seu redor. Ao notar seu desconforto, o garoto se afasta e começa a fazer o mesmo, mexendo em algumas prateleiras, enquanto ela remexia em alguns papéis atirados sobre a mesa do laboratório.
Mesmo se esforçando, a garota não conseguia focar no que estava escrito nos papéis, torcendo para que não fosse nada muito importante ou relevante. Só conseguia pensar no que o tagarela e alegre garoto dissera antes, contradizendo tudo o que aparentava ser. Além disso, ela tinha certeza do brilho triste que vira em seu olhar, que o fez parecer muito mais velho e maduro do que realmente era, como se estivesse lembrando do que já passara em sua vida. Mas o que ela tinha a ver com isso? Todo mundo tem seus próprios problemas e ele com certeza não seria uma exceção. Mas Mirabela não conseguia parar de pensar no que o fizera ficar tão triste, não sabia o porquê, mas não entendia e não gostava da forma como estava se importando com ele.
-Ei, Mirabela! –Interrompida de seus devaneios, a garota se virou rapidamente na direção da voz, e encontrou Gustavo, a alguns passos dela, segurando uma caixa, em formato de baú, nas mãos. –Será que não há algo útil aqui dentro? –Dando uma olhada melhor na caixa tentou abri-la, mas sem sucesso. Com um olhar de decepção, ele complementou- O único problema é que precisa de uma chave para abrir e, aparentemente, não temos ela.
-Posso ver o fecho? –Ela sabia que usar grampos só funcionavam em filmes e livros de ficção, portanto nem gastaria seu tempo tentado (além do mais, ela não tinha grampos). Mas outra coisa passou pela sua cabeça. Como um flash, uma lembrança, de alguns meses atrás, lhe veio à mente.
Na lembrança estava ela e seu pai. Mirabela estava debruçada em cima de alguns livros estudando para a prova de química que teria no dia seguinte, mas faziam alguns minutos que ela desistira de tentar entender a matéria e começara a chorar. Seu pai aparecera instantes depois para ver o que estava acontecendo e, lhe tirando os cabelos castanhos que caíam sobre seu rosto, Robert arrancara os livros da mesa e começara a lhe fazer perguntas. Depois de responder todas corretamente, o pai lhe dissera:
-Por que estava chorando? Bela, você está mais que preparada para essa prova!
-Mas isso é agora e com você, amanhã na prova tenho certeza de que vou travar e ...
-Bela -Robert corta a filha -sugiro que vá dormir, afinal já está tarde e estar cansada não irá ajudar nos resultados de amanhã. –Mesmo relutante, a garota obedece o pai e se deita em sua cama, pois no fundo sabia que ele estava certo e sentia que sua cabeça poderia explodir caso olhasse para mais uma fórmula.
Robert estava em seu caminho para fora do quarto quando de modo abrupto para na soleira da porta, como se de repente tivesse se lembrando de algo extremamente importante.
-Acho que já está na hora de passar isso adiante –Ele fala ainda de costas para a filha. Voltando-se para ela, Robert retira de seu pescoço uma corrente onde, em uma das extremidades, descansava a silhueta de um anjo- Sabe Bella, desde muito pequeno eu uso essa medalhinha como "amuleto", talvez ela realmente não faça nada de extraordinário, como nos livros que você lê, mas durante todos esses anos, fazia com que eu me sentisse confiante e ajudava em certos momentos, como um verdadeiro anjinho da guarda. –Entregando o objeto a ela, complementou- Entendo se você não o quiser usar por acha-lo um pouco brega, mas o guarde mesmo assim, talvez venha a ser importante algum dia. Quem sabe te ajude a lembrar da matéria amanhã.
-Ah pai, eu nunca acharia "brega"! Muito obrigada por me dar algo tão importante para você –Com isso, ela levantou da cama e deu um breve abraço em seu pai- Eu vou sempre usá-lo, quem sabe ele realmente tenha algum "poder celestial" como o anjinho mecânico de Tessa Gray*?
-Você e seus livros. Agora, já para a cama minha feiticeira! –Dando um beijo em sua testa, ele enfim vai embora, fechando a porta atrás de si e deixando a garota sozinha. Aquela noite foi fácil dormir e a ansiedade sequer a incomodou, como se o anjo realmente oferecesse algum conforto e, no dia seguinte, a prova não era mais "um bicho de sete cabeças".
Mirabela já se habituara a usar o colar, muitas vezes nem lembrando de sua existência, por mais que em momentos de nervosismo ela costumasse ficar mexendo nele, como se assim pudesse invocar o "espírito da confiança" presente no pingente. A verdade é que apenas naquele momento ela lembrara da frase que o pai lhe dissera: "o guarde mesmo assim, talvez venha a ser importante algum dia."
Pegando a caixinha das mãos de Gustavo, a garota não precisou de muito tempo para constatar que estava certa. O anjo entrou sem dificuldade no buraquinho da chave, permitindo que a caixa se abrisse. Mirabela não negava que sempre achara um pouco estranho a forma do anjo, mesmo que fosse óbvio de que se tratasse de um. Agora ela entendia o porquê do formato estranho: o pingente era uma chave.
Quando ela abriu o baú, outra frase lhe veio à mente: "Desde muito pequeno eu o uso como amuleto". Dentro do objeto estavam vários cadernos, ou melhor, vários diários do pai de Mirabela. Olhando rapidamente ela constatou que os diários datavam desde a infância de Robert e, o mais superficial, desse último ano.
Ela sentiu como se tivesse encontrado um pote de ouro, ou algo extremamente valioso. Na verdade, ela realmente tinha. Se os Turners não poderiam mais contar o que estava acontecendo, o que seria melhor que o próprio Robert o fazer através de seus textos escritos nos diários? Não podendo conter a empolgação, Mirabela soltou um gritinho que veio do fundo da garganta e deu um pulinho. Gustavo começou a gargalhar de sua reação, o que a deixou totalmente constrangida e triste, pois aquele não era seu irmão e ela não poderia lhe tacar um tênis.
-Vejo que é algo realmente importante que está dentro desta caixa, não é? –Perguntou ele, ainda tentando abafar o riso- Já me agradeceu por tê-lo encontrado?
Revirando os olhos de forma irônica, ela respondeu:
-Oh, muito obrigado gentil cavalheiro, por achar essa raridade e me apresenta-la, mesmo que com um pouco mais de tempo eu provavelmente poderia encontra-la sozinha.
-Ui, mal-agradecida –Falando isso ele lhe deu um tapinha em seu braço- Mas e então, o que há de tão empolgante aí dentro para você ter, literalmente, pulado de alegria? –Gustavo riu novamente e, como forma de vingança, ela também lhe deu um tapinha, mas um pouco mais forte do que o que recebera.
-Na verdade, são diários do meu pai. Pelo que estou vendo, há alguns de quando ele era criança, mas esse primeiro... –Ela pega o caderno na mão e coloca o baú em cima da mesa ao seu lado- Parece ser o mais recente. –Mirabela o abre na última página escrita- A última data é exatamente a mesma que está em sua carta...
-Carta? –Mirabela xinga a si mesma pelo descuido. Ela pensara estar falando apenas em pensamento, não em voz alta quando disse a última frase. Seria prudente falar sobre a carta para um desconhecido?
-É que antes de meu pai desaparecer, ele nos mandou uma carta...
-Como assim desaparecer? Por isso estava chorando mais cedo quando entramos no laboratório?
-Sim, foi por isso que chorei. Não apenas por isso, mas principalmente.
-Não vou dizer que entendo, mas.... Não está curiosa para ler?
-Oh, claro que estou! Há tantas coisas que posso descobrir sobre meu pai que estão, literalmente, na palma de minha mão!
-Então, o que está esperando para ler?
-Não sei se é o lugar e o momento mais adequado para isso. Além do mais, acho que deveria mostrar para meu irmão e para minha mãe antes de ler.
-Concordo que talvez não seja um bom lugar para ler, mas não acho que deva mostrar, ao menos não tão cedo, à sua família.
-O quê!? E por que não?
-Bem, em primeiro lugar: para quem foi dado a chave desse baú? Para você.
-Sim, mas isso não me impede de contar para eles.
-Não, não impede. Mas parou para pensar que ninguém mais sabia desses diários? Talvez a chave estivesse com você porque seu pai gostaria que você os encontrasse e os lesse.
-Ou porque ele sabia que eu já tinha vindo aqui e que viria novamente, sendo a mais provável para encontra-los
-Talvez... –Desistindo da discussão, ele apenas deu de ombros e voltou a vasculhar o local.
E se Gustavo estivesse certo? E se realmente o pai gostaria que fosse ela a ler o conteúdo dos diários? Realmente, qualquer um poderia entrar lá e encontrar o baú, mas somente ela, portadora da chave, poderia abrir e ver seu conteúdo. Mais tarde Mirabela pensaria sobre isso, agora estava na hora de ver se encontravam mais alguma coisa rapidamente e ir embora, pois já fazia algum tempo que estavam ali e, se chegasse tarde em casa, sabia que Eliza não seria compreensiva quanto ao castigo.
Eles encontraram muitas coisas interessantes, mas não havia como ela levar consigo todas elas, sendo assim decidiu que voltaria outro dia, dessa vez acompanhada por uma mochila, e levaria tais coisas. Além disso, seria uma ótima desculpa para poder encontrar com Gustavo novamente. Mirabela não podia negar que havia gostado muito da companhia do garoto e que gostaria de vê-lo novamente.
-Bem, até mais então –Disse o garoto se despedindo, depois de já estarem longe da casa e das teias de aranhas- Volte mais vezes para outras aventuras em casas sombrias –continuou ele com tom irônico- Realmente gostei muito de passar esse tempo com você.
-Até mais, Gustavo...
-Guga, por favor.
-Até mais Guga. Não fique triste com minha ida, pode ter certeza que voltarei para te arrastar para casas mal-assombradas e laboratórios de cientistas malucos novamente.
Com um sorriso eles se despediram, Mirabela entrando no carro de Isabelle, que acabara de chegar, e Gustavo voltando para a casa onde vinha morando durante as últimas semanas.
*Tessa Gray é uma feiticeira do universo dos Caçadores de Sombras e protagonista da trilogia As peças Infernais, de Cassandra Clare.
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