Capítulo 9 - Voltando Pro Futuro
A pior coisa sobre morar com homens desconhecidos é que não existe liberdade pra andar pela casa do jeito que eu bem entender. Não posso, por exemplo, descer para tomar café da manhã usando meu pijama de shortinho colado porque eu ia ficar mortificada do Marido Número 3 e suas crias masculinas terem uma ampla visão das minhas coxas.
Mas hoje, eles não estavam em casa.
Eduardo chegara na quinta-feira e seu pai estava tentando passar todos os momentos juntos até ele voltar pro Rio amanhã, no domingo. Hoje, aliás, fazia exatamente uma semana que eu e minha família nos mudamos para Assunção. E, vou te dizer, a sensação é que se passaram dois anos.
Ontem Marido Número 3 chamou meus irmãos para a tradicional Escapada Masculina da família Becker e todos os homens da casa estavam fora desde antes de eu acordar.
O que significa: pijama a manhã inteira!
As gêmeas e Hipólita estavam ocupadas na mesa da cozinha com uma pilha de convites para dobrar e colocar no envelope roxo. Eu passei por elas, espiando o trabalho, e abri a geladeira para pegar um toddynho. Patrícia bufava a cada dois minutos, parecendo não aguentar mais fazer aquilo. Enquanto sua irmã deslizava os dedos rapidamente entre os envelopes e se dedicava com tensão e euforia ao mesmo tempo.
A festa seria em duas semanas e eu já começava a sentir o clima ficando mais pesado dentro da casa.
― Bom dia - eu disse enquanto furava a caixinha com o canudo. Ver Hipólita ajudando em alguma coisa sem reclamar era, no mínimo, suspeito. Ela não fazia nada sem segundas intenções ou que não fosse beneficiá-la de alguma maneira.
E aqui estava ela toda sorridente.
― Bom dia, Cali - foi ela quem me respondeu. Alguém acordou de bom humor. - Você não quer ajudar?
Hã...
― Não precisa. Nós já estamos terminando - salva pela Stella. Ela tinha um jeito de quem gostava de controlar tudo. Ou talvez fosse apenas o efeito da festa. Eu não sei.
O que eu sei é que ela continuava a agir como se eu praticamente não estivesse na sala. Ela mal olhava na minha direção e nunca dirigia a palavra a mim. Veja bem, eu não sou sensível e nem estou interessada em chama-la para fazer as unhas juntas. Mas quando todos os filhos do Marido Número 3 são simpáticos comigo menos uma, a diferença fica gritante.
Ok, talvez nem todos.
Mas existia um motivo para João e eu estarmos nos evitando.
Eu as deixei em sua atividade e voltei para o meu quarto com meu toddynho e um pedaço do bolo de cenoura dos deuses que a Inês havia feito ontem. Finalmente eu poderia fazer minha maratona de De Volta Para o Futuro em paz, aproveitando o silêncio atípico de metade da casa fora de casa.
Mas antes que eu pudesse me instalar na minha cama, o celular vibrou. E eu voei em cima dele achando que era uma mensagem de bom dia do Maurício.
Não era.
Gabriel: O que vc ta fazendo?
De todos os amigos da Patrícia, o Gabriel era com quem eu estava me dando melhor. Ele era fácil de conversar e muito engraçado. Gengibre também era muito legal, mas parecia viver no mundo da lua. E as meninas, bem, eu gostava delas, mas me sentia sobrando quando estava entre elas. Por mais que a Patrícia tentasse fazer parecer o contrário.
Cali: Me preparando pra assistir filme. Pq?
Gabriel: Eu to entediado e ngm ta respondendo. Vamos ao cinema? Rei Leão ainda ta em cartaz.
Pensei por um minuto se era melhor ficar em casa com Marty McFly ou sair para encontrar Gabriel e Simba. Bem, eu poderia fazer os dois. Combinamos de nos encontrar depois do almoço e eu me joguei na cama com meu notebook, meus filmes e meu pedaço de bolo.
― Você comeu muito? Porque eu comprei um pacote enorme de pipoca - Gabriel me mostrou o saco Mega em suas mãos com uma cara de garoto levado quando cheguei ao cinema. Dei um abraço nele e enchi a mão de pipoca com manteiga. - Acho que isso é um não.
― Chamei a Patrícia pra vir, mas ela estava ocupada com coisas da festa.
― Então era por isso que ela não me atendia.
Eu fiquei olhando pra ele e suas covinhas, pensando no quanto ele era cara de pau.
― Você deixou bem claro que eu fui a sua última opção. Isso magoa.
― Isso não é verdade!
Eu estreitei meus olhos, nem um pouco convencida da inocência desse rapaz.
― Tudo bem. Vou fingir que acredito pra não gerar conflitos posteriores.
Nós entramos na sala, que estava metade cheia, e sentamos em nossos lugares. O filme começou, mas nós passamos mais tempo fazendo observações engraçadinhas e imaginando como seria se, na verdade, o Scar fosse o grande herói e Mufasa o vilão que se faz de bonzinho para os outros. O que chegava a ser um sacrilégio, mas a imaginação ainda é livre.
As pessoas nos mandavam calar a boca o tempo todo, até o momento em que Gabriel começou a ter uma crise de risos e eu tentei enfiar pipoca goela abaixo dele para fazê-lo ficar quieto. Sem resultado.
Nós fomos os últimos a sair da sala, recebendo olhares de crítica de todo mundo que passava pela gente. Havia pipoca para todos os lados, inclusive no meu cabelo e dentro da camisa dele, e nós nos limpamos antes de sair, ainda rindo.
― Me lembre de sempre te chamar para ir ao cinema comigo - ele disse, comendo a pipoca que estava no meu cabelo. Eu joguei fora o saco vazio e os copos de refrigerante.
― Eu sempre disse que filmes são a minha praia.
Nós sentamos na beirada do chafariz e continuamos a conversar.
― Minha mãe conseguiu mesmo o emprego. Eu estou aterrorizada.
Gabriel fez uma careta, se compadecendo da minha dor.
― Eu não queria estar na sua pele - ele foi sincero. - Mas ela se casou com Otávio Becker, era certo que conseguiria a vaga.
― Prefiro pensar que ela conseguiu a vaga porque é doutora em História e costumava ser professora de uma das melhores Universidades do Brasil - alfinetei e lancei um olhar desafiador a ele. - Não defina uma mulher pelo marido que ela tem.
― Não foi isso o que eu quis dizer - ele estendeu as mãos, se defendendo. - Mas seu padrasto é praticamente o dono dessa cidade.
Ok, certo.
Eu deixei escapar uma risada, mas quando Gabriel não riu junto eu cogitei a possibilidade de ele não ter feito uma piada.
― O que você quer dizer com dono da cidade? - fiz a pergunta que não queria calar. Finalmente eu teria uma resposta específica.
― Dono do tipo proprietário-de-metade-das-terras-da-cidade. Inclusive todas as casas da rua onde eu moro. O cinema onde estamos. Bem, metade do que existe em Assunção paga aluguel para o seu padrasto. Fora a fazenda.
― A fazenda?
Essa não era mesmo a resposta que eu estava esperando.
― É, ele é dono da maior fazenda da região. Onde você acha que vai ser a festa de aniversário das garotas?
Wow. Eu estava sem palavras.
Quer dizer, ninguém está preparado para descobrir que seu novo padrasto é uma espécie de barão proprietário da cidade onde ele mora. Isso explicava muita coisa, inclusive a obsessão de Stella por essa festa. Todo mundo em Assunção sabia quem eles eram. Todo mundo mesmo.
E isso era assustador.
Porque quer dizer então que todo mundo sabe quem eu e meus irmãos somos?
Estremeci só com a ideia.
― Qual é o problema da Stella? - já que eu estava tirando minhas dúvidas com Gabriel, eu tiraria logo todas de uma vez. - Por que seus amigos não gostam dela?
Ele não parecia muito confortável em falar sobre esse assunto específico. Coçou a cabeça e deu de ombros, provavelmente pensando no que dizer pra mim. Bem, eu era toda ouvidos e não tinha pressa. Curiosidade sempre foi um dos meus maiores pontos fracos.
― Digamos que são problemas passados. A Stella... Bem. Ela não é uma pessoa muito empática - uma forma amena de dizer que ela era egoísta, eu suponho. Gabriel continuou. - Ela e a uma das meninas tiveram um problema no passado. Eu não sei se eu deveria dizer mais do que isso, já que ela é sua irmã agora.
― Oh, ela não é minha irmã - fui mais enfática do que eu gostaria. Mas, bem, ela não era. Nenhum dos filhos do Otávio era. Nenhum.
Mas eu entendi que a conversa estava encerrada ali e eu precisaria sanar minha curiosidade de outra forma, se quisesse. Gabriel não queria fazer fofoca e eu entendia o lado dele.
Nós continuamos a conversar sobre coisas triviais e ele me contou sobre como me invejava por ter tantos irmãos, porque ser filho único podia ser muito solitário. Eu acreditava que sim, mas ele não sabia o que estava dizendo. Ter irmãos é uma coisa, ter cinco é outra bem diferente.
Ter cinco irmãos mais outros cinco agregados é de outro mundo.
Mas eu não entrei nesses detalhes.
Já estava escuro quando eu e Gabriel nos despedimos. Cruzei meus braços apertados contra o peito, sentindo frio, pra variar. Meus passos faziam barulho no asfalto da calçada e eu levei um susto quando um carro preto parou ao meu lado. Apertei o passo, desconfiada, mas o carro continuou a me seguir. Ele buzinou e eu parei, dando uma conferida direito no carro. A janela do carona se abaixou e João apareceu no banco do motorista, olhando pra mim.
― Qual é o seu problema? - perguntei, botando a mão no peito. Ele havia me dado um susto. Era por isso. Minha pulsação não estava acelerada por nenhum outro motivo.
― Sua mãe está louca atrás de você. Disse que seu celular está desligado.
Tirei o celular do bolso e constatei que eu estava sem sinal. Minha mãe era uma mulher paranoica então eu imaginava que ela tinha entrado em crise quando tentou falar comigo e não conseguiu. Principalmente porque na cabeça dela eu podia me perder a qualquer minuto em um ambiente novo.
― Meu pai me pediu pra vir te procurar no cinema, já que a Patrícia disse que você estava lá - ele explicou. - Então eu vim.
Assenti e João destravou a porta. Eu fiquei olhando pra ele lá dentro, sem a mínima vontade e com muita vontade de entrar naquele carro ao mesmo tempo. Eu poderia ir andando tranquilamente, mas ele havia saído de casa só pra me procurar. Além do mais, estava absurdamente frio e o meu casaco não estava sendo suficiente para me manter devidamente aquecida.
Puxei a maçaneta da porta e sentei no banco do carona, dando graças a Deus por estar menos congelante lá dentro. João reparou no modo como eu alisava minhas mãos uma na outra e ligou o aquecedor do carro. Ele usava o aquecedor do carro, meu Deus, e nós vivemos no mesmo país? No Rio, ter uma fritadeira de batata frita no carro seria mais útil do que um aquecedor.
Eu fitei-o de soslaio enquanto o ar ao nosso redor começava a esquentar e minha mandíbula parava de tremer. Respirei mais devagar, relaxando no banco do carro o máximo que eu conseguia com João ali do meu lado, derramando seus olhos verdes na minha direção. Ele apertava o volante com força, mas não parecia ter pressa de ir embora. Os músculos do seu braço estavam tensos, eu notei, e a linha do seu maxilar estava saltada. Eu não sabia no que ele estava pensando, mas não parecia nada que ele gostasse de ter na cabeça.
Disso eu entendia muito bem.
E a ideia de que ele pudesse estar pensando o mesmo que eu... Sobre a última vez em que estivemos sozinhos em um carro...
Nós definitivamente não podíamos ficar sozinhos.
Uma das mãos dele foi para a marcha. Eu estava alerta a todos os seus mínimos movimentos, até mesmo o subir e o descer do seu peito. O ar estava abafado, misturando-se à minha respiração e à dele, embaçando o vidro do carro. Eu tombei a cabeça no encosto do banco e virei o rosto para ele, totalmente imprudente.
João encontrou meu olhar e foi como se as células da minha pele tivessem ganhado vida. Agitaram-se tanto quanto uma descarga elétrica.
― Que filme você viu?
Fui pega de surpresa pela voz grossa dele cortando o silêncio. Tive que piscar umas duas vezes para processar a informação e poder responder.
― O Rei Leão.
Um sorrisinho surgiu no canto dos seus lábios e eu baixei o olhar, de repente me sentindo muito tímida. Eu não sabia o que diabos estava acontecendo comigo, cada hora uma reação diferente. Eu não tinha o mínimo controle sobre mim mesma quando ficava perto dele assim.
― Meu pai me contou que você gosta de cinema. Qual o seu filme favorito?
O que ele estava fazendo?
― O que você está fazendo? - não consegui me conter. E o rosto de João ficou sério de novo. Eu quase me arrependi de ter falado. Mordi o lábio e os olhos dele desceram para a minha boca, muito rápido. Ele fez questão de desviar, mas não antes de me fazer ter ideias.
― Seria bom se a gente conversasse e pudesse se entender. Já ficou claro que não dá pra gente ficar se evitando.
Eu sabia que ele tinha toda a razão, mas eu não tinha muita certeza de que conversar sobre nossos gostos cinematográficos resolveria o problema.
Mas talvez, conhecendo-o, fosse mais fácil de lidar com esses sentimentos que ele causava dentro de mim. Talvez, conhecendo-o, ele finalmente se transformasse no Guto, aos meus olhos. E deixasse de ser o João que recitou o poema do Drummond só pra mim.
Eu não tinha nada a perder.
― Eu gosto de muitos filmes. Não consigo escolher um favorito - pensei no assunto. - Mas De Volta Para o Futuro é um dos meus queridinhos.
A cara do João caiu como se eu tivesse dito alguma coisa errada. Repeti na minha mente a minha fala e não compreendi qual era o problema.
― Eu amo De Volta Para o Futuro. Tenho um pôster no meu quarto e tudo.
Foi a vez da minha cara cair. Quer dizer, quais eram as chances? Eu estava muito surpresa com a coincidência.
Se é que eu ainda acreditasse nessa palavra.
― Não brinca! Eu também!
João sorriu de novo, dessa vez um sorriso largo, de ponta a ponta nos lábios. E isso me fez derreter só um pouquinho.
― Qual pôster?
― Do segundo filme, é óbvio. Adoro o modo como eles imaginaram o futuro naquela época. - O segundo filme da trilogia é quando McFly vai para o futuro. Mais precisamente, para 2015.
― O meu pôster é do terceiro. Mas sim, eu gostaria que o futuro fosse como eles imaginaram. Não ia reclamar de ter um Hover Skate - disse o skatista. E eu, obviamente, ri.
Hover Skate: Um skate voador que as pessoas usam no 2015 do filme.
― Acho que seria mais fácil de aprender do que esses que você anda.
― Ei, você lembra que o McFly vem pra 2015 né? O ano em que estamos. Em outubro.
Eu assenti, empolgada. Ele parecia tão elétrico quanto eu, como se o Marty McFly realmente fosse aparecer aqui em 2015 a qualquer momento.
― Vai ter um evento no Rio sobre isso. Tipo uma convenção de fãs, sabe? Eu com certeza iria, mas agora...
Eu ainda não tinha pensado nisso, mas agora que me dava conta de que não poderia mais ir ao evento... Isso dói.
João e eu engatamos uma conversa interminável sobre De Volta para o Futuro e viagens temporais que me fez esquecer totalmente de que estávamos dentro de um carro, parados na rua, com minha mãe louca de preocupação esperando por mim em casa.
A verdade era que eu não queria parar de conversar com ele e eu não queria ter que ir pra casa porque lá dentro eu não sabia se essa bolha de paz iria continuar.
E eu não queria que ela se estourasse.
Mas nós precisamos voltar e nós paramos de falar no momento em que chegamos à garagem, como se tivesse sido combinado. Eu olhei para João e ele olhou para mim e, por um segundo, esqueci totalmente de que ele era filho do Marido Número 3.
Mas ele era.
SURPRESA!!!!!!!!!! Hoje não é quinta, mas hoje tem capítulo.
E o motivo? SOMT alcançou hoje mais de 10 mil leituras e ACABOU de bater a marca de mil votos. EU TO FELIZ. TO LOUCONA AQUI. BORA COMEMORAR COM CAPÍTULO.
Porque vocês merecem <3
Muito obrigada por estarem escalando esse telhado comigo e continuem votando/comentando/sendo lindos pra eu poder postar mais capítulos surpresa em pleno sabadão como esse.
Beijos e queijos, câmbio desligo.
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