Capítulo 5 - Inimigo de Estado
Vamos dar as mãos e fazer uma corrente de oração pra minha vida poder sair da trilha do mau agouro. Porque tem algo de errado, muito errado, acontecendo.
Certo. Deve haver alguma explicação plausível para tudo isso. Depois de eu me dar conta de que não havia pegadinha alguma, o terror da situação me deixou petrificada. Quer dizer, de zero a dez quais eram as chances de uma coisa assim acontecer? Dentre todos os garotos de dezessete anos que vivem nessa cidade, como é que eu fui esbarrar justo nesse?
Eu estou dizendo, alguém fez um despacho muito do poderoso contra mim. Só pode ser.
Estávamos jantando havia trinta minutos e, enquanto o resto da mesa se perdia entre conversas, eu estava ocupada demais tentando entender como é que pode alguém ser tão azarada desse jeito. João - ou melhor, Guto - parecia tão chocado quanto eu, mas isso não era nenhum consolo. Ele e Stella foram devidamente apresentados a mim e aos meus irmãos, e foi então que eu descobri que seu nome completo era João Augusto.
Oh, certo, agora vocês me dizem isso.
Mas como é que ele não sabia o meu nome? Como é que ele conhece uma carioca perdida em Assunção e não se dá conta de que pode ser um dos quinhentos filhos da sua nova madrasta?
Por acaso ele era retardado?
Em determinado momento, meu choque e completa falta de capacidade de raciocinar como foi possível isso ter acontecido se transformaram em raiva. Sim, raiva pela idiotice do João, Guto, ou seja lá qual for o nome deste infeliz. Respirei fundo enquanto cortava um pedaço da minha lasanha e tentava não fulmina-lo com os olhos.
Eu esperava que ninguém notasse a tensão entre nós dois, mas quando se trata de uma família de doze pessoas, é fácil passar despercebido. Estávamos um de frente para o outro na mesa de jantar e nossos olhares não se desgrudavam. Eu estava sentindo tanto calor que considerei tirar aquele moletom antes que a minha pele derretesse junto com o meu cérebro.
― Cali, você está passando bem? - Hélio, sentado ao meu lado, se curvou na minha direção para perguntar discretamente.
Eu pisquei e me virei para o meu irmão, só então me dando conta de que eu estava segurando o garfo como se fosse um tridente.
― Claro, eu estou ótima, por que eu não estaria bem?
― Talvez porque seu rosto está tão vermelho que parece que seu sangue inteiro está concentrado nele.
Espetei um pedaço da lasanha com meu tridente e apontei para Hélio, com um olhar ameaçador.
― Eu estou ótima - fui clara e coloquei o pedaço na boca. Mastiguei com força e meu olhar foi novamente atraído para o João.
Ele também estava mastigando, mas eu não conseguia ler os seus olhos verdes. Tudo o que eu conseguia fazer era me lembrar de como eles haviam me atraído e do modo como minha barriga ficou infestada de borboletas depois que ele recitou aquele poema. Eu gostei dele. Meu Deus, eu flertei com o meu mais novo meio-irmão.
De repente aquela lasanha começou a me deixar enjoada.
Afastei o meu prato semiacabado e esperei pacientemente até que fosse adequado sair da mesa. Pedi licença e levei o meu prato, alegando uma dor de cabeça qualquer das que sempre me atacam quando estou naqueles dias. Para minha sorte todo mundo começou a se retirar também e eu usei minhas habilidades ninja para ir da sala de jantar para a cozinha e depois para o meu quarto sem ser notada.
Fechei a porta atrás de mim e deixei todo o ar dos meus pulmões sair.
Vamos recapitular o meu glorioso dia de inverno: Acordei no Rio de Janeiro e empacotei todos os bens materiais que tinha na vida. Voei até Curitiba, fiz uma pequena viagem até a minha mais nova cidade, com os meus mais novos irmãos, na minha mais nova casa. Casualmente conheci um garoto por quem me interessei e me senti naturalmente atraída... Só pra descobri que ele é um dos filhos do novo marido da minha mãe.
Tirei o moletom e me joguei de costas na cama. Meu sangue ainda estava quente e veloz, mas eu fechei os olhos na esperança de pegar no sono sem perceber e só acordar no próximo milênio.
Fiquei olhando para o teto e tentando neutralizar o misto de sentimentos dentro de mim naquele momento. Chequei o celular e finalmente Jo... Guto havia lido minhas mensagens. Mas era óbvio que ele não iria responder. Assim como Maurício não respondia, nem Helô nem ninguém que fosse relevante. Aos poucos meus músculos foram relaxando e meus ombros amoleceram, de modo que eu não parecia mais um pedaço de madeira.
Eu fechei os olhos. Alguém bateu na porta. Abri os olhos e meus músculos endureceram de novo. Levantei da cama como um raio e abri a droga da porta para encontrar Guto do outro lado.
Mas é claro.
Meu coração acelerou enquanto ele ficava ali parado olhando pra mim. Estava usando uma calça de dormir xadrez preto e branco, e uma camisa de flanela cinza. Agora eu me dava conta do quanto, além de toda a altura, os ombros dele eram largos e me faziam sentir minúscula. Ele era magro e tinha a pele clara, mas não era pálido como eu. Notei que eu estava mordendo meu lábio inferior quando o olhar dele parou ali por alguns segundos a mais do que o necessário, me fazendo ficar vermelha. Aqueles olhos eram tão bonitos e estavam interessados na minha boca.
Cruzei os braços na frente do meu corpo, em uma tentativa de cortar a atração entre nós dois. Eu me recusava, eu não era obrigada.
E ainda assim aqui estava eu.
― Precisamos conversar - ele finalmente disse, segurando o portal da minha porta com uma das suas mãos. Que seguraram as minhas fazia menos de duas horas.
― Eu não tenho nada pra dizer - falei. Porque era verdade. E porque a raiva por ele ter sido tão idiota voltava com tudo. Porque isso nunca teria acontecido se eu o tivesse conhecido durante o jantar, o conhecido por quem ele é de verdade. Eu não o veria como um garoto e sim como um ser assexuado, se ele não tivesse se apresentado para mim hoje mais cedo.
E eu certamente não sentiria vontade de saber como era o toque das mãos dele nas minhas de novo.
Que grande filho da mãe.
― Eu não fazia ideia que você era você - ele desabafou. Pela sua cara dava pra ver que ele precisava falar pra poder ir dormir tranquilo. Eu revirei os olhos e o puxei pra dentro do meu quarto, fechando a porta atrás de nós. Me virei pra ele de novo e João estava passando os dedos pelos cabelos castanhos, tão perturbado quanto eu estaria se não estivesse fumegando de raiva. - Isso não deveria ter acontecido.
― Bem, tecnicamente não aconteceu nada - eu sou uma vaca, ás vezes. E eu não me arrependo de nada.
Ele piscou umas duas vezes com aqueles malditos olhos verdes, me encarando como se lutasse pra compreender o que eu estava dizendo.
― Não exatamente - ele concordou, um pouco relutante.
Assenti e quase mordi o lábio de novo, mas me impedi no último minuto.
― Então você pode sair do meu quarto agora - fui seca. Ele merecia. E eu não queria ficar olhando pra cara dele e sentindo meu corpo e a minha cabeça entrarem em ebulição.
― Calíope, eu...
― Como é que você não reconheceu o meu nome? - não aguentei e fiz a pergunta que não saía da minha cabeça. - Quer dizer, quantas Calíopes você conhece? Não é exatamente um nome popular no Rio.
― Eu não sabia que você se chamava Calíope.
Temos um diagnóstico: Ele é retardado.
Nem tentei esconder meu choque com esse absurdo.
― Pela primeira vez vou ter que concordar com o meu pai sobre a necessidade de eu ser mais interessado com as coisas - ele desabafou.
― Não me diga - eu obviamente concordei.
― Você está brava comigo - ele observou. Não, eu não estou brava. Eu só queria que você entrasse em combustão instantânea.
― Não me diga.
― Você podia dizer alguma coisa.
― Acredite em mim, você não vai gostar de nada do que eu tenha pra dizer e eu prefiro evitar a fadiga - minhas palavras saíam como tiros de metralhadora.
As sobrancelhas castanhas dele se juntaram e João pareceu irritado pela primeira vez.
― Você não pode agir como se eu tivesse culpa de alguma coisa.
― Não venha ditar regras dentro do meu reino - reagi, insultada pela petulância do rapaz. - Aqui dentro, se eu quiser eu posso te acusar de abuso sexual e te declarar inimigo de Estado.
Ele arregalou os olhos para mim e disse:
― Você é louca.
― Eu sou muito louca! E seu visto para permanecer no meu reino acabou de expirar. - Me virei e puxei a maçaneta da porta com toda a força, respirando fundo e tentando conter o dragão que existe em mim dentro de mim. Estava difícil. Meus olhos já estavam vermelhos e os ouvidos fumegando.
João intercalou o olhar entre eu e a porta aberta com uma cara de quem gostaria de me ensinar uma lição.
― Ótimo. Você se parece muito mais como uma irmãzinha agora.
Abri a boca para responder, mas João saiu andando como um foguete para fora do meu quarto. Fechei a porta com um estrondo e um som ininteligível de fúria e frustração saiu dos meus pulmões enquanto eu me jogava de volta na cama.
Como ele se atreve.
Irmãzinha é o cacete!
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