Capítulo 3 - Pedra no Caminho
Veja bem, eu não estou interessada no dinheiro do Marido Número 3, mas eu também não sou de ferro. Seu precioso dinheiro pôde comprar um quarto só pra mim e pela primeira vez na minha vida eu não terei que dividi-lo com Hipólita.
Fizemos um tour pela nossa nova residência recém-reformada por Otávio. A cozinha e a sala de estar eram gigantescas e nós agora tínhamos uma sala de jantar e uma biblioteca. Chique.
No segundo andar ficava a suíte do casal, o quarto dos gêmeos, o das gêmeas e o das crianças. O meu, o de Hipólita, o do Leo e o do Guto ocupavam o terceiro. Nós pegamos nossas malas no carro e levamos para nossos respectivos cantinhos sagrados e eu não consegui esconder o quanto estava feliz com a privacidade repentina. Pela primeira vez.
Uma garota pode degustar a vitória iminente de conseguir ficar sozinha em uma casa de doze pessoas. Ah, pode sim.
Mas eu não tinha muito que fazer, já que não estava afim de desfazer as malas e o caminhão com o resto das nossas coisas só chegaria amanhã. Tirei meu notebook da mala e o coloquei em cima da escrivaninha, assim como minha luminária em formato de boca que jamais viajaria para outro Estado dentro de um caminhão de mudança. Tentamos não ficar ofendidas com a insinuação da minha mãe sobre isso, mas felizmente estávamos superando juntas.
Olhei ao redor das quatro paredes satisfeita demais por tudo ali dentro ser apenas meu. Ele ainda estava praticamente vazio, fora a cama, a escrivaninha, a estante e a porta do armário embutido, mas em breve teria toda a minha personalidade. Não era o quarto mais espaçoso da casa, mas a enorme janela dava para o telhado em cima da pequena varanda do segundo andar. De modo que eu poderia sair e sentar no telhado, se eu quisesse.
Bem, essa era uma teoria que eu iria testar assim que voltasse para casa. Porque o cinema da cidade me esperava.
Desci as escadas saltitando e cruzei com Hipólita antes de sair.
― Aonde você vai? - ela questionou.
― Se mamãe perguntar, eu fui dar uma volta.
Não esperei que minha irmã respondesse e bati a porta na cara dela. O condomínio do Otá... O nosso novo condomínio era grande, mas eu não estava interessada nele no momento. Dei um sorriso ao porteiro quando saí e refiz o caminho que percorremos do cinema até aqui na minha cabeça. Era pertinho. Eu segui adiante com um olho na cidade e outro no celular - caso Maurício resolvesse, sei lá, me mandar uma mensagem dizendo que a vida dele jamais seria a mesma sem mim.
Passei pelo Skate Park, cheio de garotos e garotas fazendo manobras, e pela pracinha da cidade. Apressei o passo quando cheguei perto das barras de ferro dourado do cinema, até passar pelo portão. Era fim de tarde e as mesas do quiosque estavam metade cheias - principalmente de jovens. Algumas crianças corriam pelo pátio e um casal flertava sentado na borda do chafariz. Havia um segurança na porta de vidro que levava para dentro do prédio em formato de L.
Fui até lá e o cheiro de pipoca com manteiga me invadiu no momento que pisei no carpete vermelho. A bilheteria ficava de um lado e a bomboniére do outro. Dei uma olhada nos filmes e fiquei surpresa por serem os mesmos dos cinemas das cidades grandes. Ponto para Assunção.
Li todos os cartazes: os das próximas estreias, os sobre as sessões especiais de filmes franceses, os sobre as sessões especiais de filmes antigos. O Rei Leão passaria nesse domingo e eu soube naquele momento que precisava vir assistir. As luzes e as cores abundantes me deixaram impressionada, como se eu estivesse no meio de um desses cinemas de rua tão raros hoje em dia. Na verdade, eu estava. O que me impressionava mesmo era o cinema ser em Assunção.
Marido Número 3 era o cara.
E ele estava certo, o lugar estava cheio. As filas e o barulho abafado eram grandes. Eu sabia que não poderia assistir nada hoje de qualquer maneira, então saí de volta para o pátio. Um garoto estava se exibindo com o skate para os seus colegas e uma criança estava voltando chorando com o joelho ralado para a mesa onde os pais conversavam com outros adultos. O sotaque sulista ecoava para todos os lados e o vento de inverno estava gelado. Eu suspirei, pegando meu celular e mandando uma mensagem para Helô. Era mais fácil lidar com um novo e desconhecido lar enquanto eu conversava com a minha melhor amiga.
― Tinha uma pedra no meio do caminho - falou uma voz na minha frente e eu levantei a cabeça.
Um garoto muito mais alto do que eu estava parado na minha frente com uma cara inegável de skatista. Ou seja, cabelo bagunçado, tênis adidas, bermuda caindo da cintura e um casaco de moletom. Skatista escrito de cima a baixo.
― O que você disse?
― Tinha uma pedra no meio do caminho - ele repetiu e abriu um sorriso de lado como se estivesse achando graça de uma piada que eu não entendia.
Eu estava prestes a perguntar qual era o problema dele quando o raio da sabedoria me atingiu. Olhei para baixo, para minha própria camisa com a frase icônico do Drummond: No meio do caminho tinha uma pedra. Soltei uma risada e minhas bochechas coraram quando meus olhos se encontraram com os dele novamente.
― Muito bem, o poema está na ponta da língua.
Ele estendeu um dedo me pedindo para esperar um minuto e começou a abrir o zíper do seu casaco. Eu congelei. Ele estava se despindo bem na minha frente, será que esse era algum tipo de saudação sulista que eu desconhecia? Eu não sabia para onde olhar, mas quando ele afastou o casaco a frase na camisa dele ficou visível.
Tinha uma pedra no meio do caminho.
― Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas fatigadas - ele continuou e meus olhos saltaram para fora. - O resto do poema - ele explicou, balançando a cabeça e fechando o zíper do casaco de volta. - Pelo visto eu sou o único que o tem na ponta da língua - ele me provocou, rindo de mim.
― Ora, me desculpe pela minha ignorância - respondi, um pouco mais nervosa do que eu gostaria. E não soube mais o que dizer. Ele era bonito, eu notava agora. Não um galã de novela mexicana, mas... Bonito. E alto. E falando comigo. Cocei a garganta. - Na verdade você pode culpar o próprio Drummond por escrever uma frase tão icônica que ofusca as outras.
― A maioria das pessoas nem se lembra de quem é o autor, então eu te perdoo por isso - ele disse. - E também porque meu pai só me deixava andar de skate se eu recitasse um poema pra ele quando eu era criança.
― Que pai legal você tem - fui sincera. - Até mesmo os esportistas precisam de cultura.
Ele ficou me olhando por um segundo inteiro que fez todo o sangue do meu corpo migrar para minhas bochechas.
― Obrigada por reconhecer que skate é um esporte.
― Na verdade eu só não consegui pensar numa palavra melhor - as palavras saíram da minha boca rápido demais e o meio sorriso estava de volta no canto dos lábios dele.
― Essa doeu.
Eu dei de ombros, como se não pudesse evitar o inevitável.
― É o meu jeitinho - eu disse. - E já que estamos agradecendo, obrigada por notar a minha camiseta. Estou lisonjeada.
― Na verdade - ele levantou uma sobrancelha, feliz por ter a sua vingança - foram meus amigos que notaram. Eu perdi uma aposta e precisei vir recitar o resto do poema pra você.
― Você é bom em revidar - admiti, mas não consegui evitar o sorriso no meu rosto. Pisquei e me recompus quando me dei conta de que deveria estar parecendo uma idiota. E disse: - Bem, mas você não cumpriu a aposta.
Ele enrugou a testa, sem entender como é que ele poderia não ter cumprido se estava falando comigo.
― O poema. Você não recitou o poema inteiro. - Fiquei muito satisfeita em explicar. - Estou esperando.
Ele esquivou novamente uma das sobrancelhas grossas e seus olhos se fixaram nos meus. Resisti ao impulso de desviar o olhar, mordendo o lábio e mexendo os dedos dos pés dentro do tênis. Por um segundo pareceu que o olhar dele se desviou para os meus lábios, mas não sei se foi só impressão. Ele coçou a garganta e deu um passo para trás, estufando o peito.
― No meio do caminho tinha uma pedra - ele começou.
"tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra."
Fiquei ali olhando para aquele garoto estranho e inegavelmente atraente recitando um poema pra mim e não soube exatamente o que fazer além de continuar encarando. Meu peito batia forte, preenchido por uma sensação quente e assustadoramente boa. Ele recitava tão bem quanto se lembrava das palavras, fazendo o sentido dado a elas ser ainda mais impactante. E eu fiquei sem saber se aquilo estava mesmo acontecendo ou era alguma fantasia louca.
Porque esse tipo de coisa definitivamente não acontece na minha vida.
― Uau - foi o que eu consegui enfim dizer. Ele não se intimidou. - Isso foi...
― Impressionante? Eu sei.
Eu estreitei os olhos e ele deu um passo de volta para frente. Suas mãos estavam nos bolsos da bermuda e o pomo de adão subiu e desceu quando ele engoliu.
― Meu pai fez um bom trabalho.
― Eu estou vendo que sim.
― Eu me expus pra você e ainda não sei nem o seu nome. Isso não é justo.
Estendi minha mão em um impulso e ele a encarou por um segundo ou dois antes de apertá-la. Sua mão era grande e quente, não tão branca quanto a minha palidez. Ele não era pálido, ele explodia saúde. E seus olhos verdes estavam me matando.
Malditos sejam esses olhos que insistem em ser verdes.
― Calíope.
― João.
― Esse sotaque não é daqui - ele apontou, mas eu não conseguia pensar em nada além do fato de que as nossas mãos ainda estavam se tocando. Apertadas. Eu rezei para não começar a suar, mas sabia que era isso o que aconteceria. Quando me dei conta eu já estava puxando meu braço de volta e cruzando-os na frente do peito.
As mãos de João voltaram para os seus bolsos enquanto ele esperava pela minha resposta, sem desviar os olhos do meu rosto.
Meu coração acelerou.
― Por que você acha uma coisa dessas? - brinquei, em uma tentativa frustrada de imitar o modo dele de falar. O que o fez rir de mim. Mais uma vez.
Isso é bom, certo?
― Eu tenho um sexto sentido.
― Você tem talentos demais pra ser verdade.
― Oh, mas é verdade - ele garantiu e balançou a cabeça pra jogar o cabelo castanho. - Você está só de passagem?
Eu me encolhi, balançando o pé direito e apertando os braços cruzados porque o vento estava me deixando com muito frio.
― Não. Eu vim pra ficar - respondi, mais séria do que eu gostaria. Era a primeira vez que eu dizia aquelas palavras e elas surtiram um efeito dentro de mim.
Mas João pareceu gostar da notícia, o que me deixou com vontade de sorrir novamente. Ele deslizou aqueles olhos verdes pelo meu rosto e engoliu de novo, fazendo seu pomo de adão subir e descer mais uma vez.
― Talvez eu possa te mostrar a cidade, então. Se você quiser - ele ofereceu.
Ele queria me mostrar a cidade?
Isso realmente não é o tipo de coisa que acontece na minha vida.
Mas é o que dizem, existe uma primeira vez pra tudo.
― Eu adoraria - foi o que respondi.
Porque era verdade.
E porque eu não deixaria essa primeira vez passar em branco.
Hey, Folks!!! Vou contar uma curiosidade pra vcs: escolhi a música Everything has changed - Taylor Swift ft. Ed Sheeran pra esse capítulo porque na época em que eu estava começando a escrever SOMT ela me inspirou muuuito. Eu lembro de escutar ela sem parar no ônibus voltando da faculdade pra casa e pensando em Jolíope, doida pra chegar e poder escrever mais. Espero que gostem <3
Beijos e queijos, câmbio desligo.
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