Capítulo Único
Sob a atmosfera daquele ar gélido e calmo, transparecendo mistérios, dormia aquela grande cidade.
Era exatamente 1h45min. Aquela espada cortante do tempo, a chamada madrugada, que marcava a transição entre a retirada da noite e o nascimento do astro-rei, costumava ser um enigma até mesmo para o mais sábio dos monges que já habitara na Terra.
Em algum lugar no ponto mais alto daquela região haviam enfileiradas casas que, como um caminho de peças de dominó a desmoronar, tornavam-se inativas uma após a outra. Mas somente naquela pós-noite, naquela frieza urbana mantida pela vigilância das estrelas que tremeluziam no céu, houve, dentre todas as demais, uma exceção.
A residência de Sam permanecia desperta em obediência àquele chamado.
Enquanto a garota apressadamente espremia as últimas peças de suas roupas favoritas dentro daquela enorme mala azul, aquele sentimento outra vez fazia seu coração palpitar de maneira acelerada.
Morava sozinha, por isso, não haviam justificativas lógicas para tamanha atitude tomada. Diversas vezes, ao pensar na loucura que estava prestes a fazer, sorria, porém, não compreendia se era de si mesma ou da insanidade das circunstâncias.
Terminado tudo o que precisara ser feito, apenas esperou. Possuía agora uma caneca de café, que por estar cheia do líquido negro fumegante, avermelhava suas pequenas mãos pálidas criando um contraste de tons na pele com excelência.
Passaram-se dez, quinze, vinte minutos.
Perto dali, dobrando a esquina daquela rua silenciosa, surge um garoto desconhecido por aquelas redondezas dirigindo seu carro. Era Kim Taehyung.
****
O motor daquela enorme máquina esportiva em reverência às construções luxuosas que o rodeava, produzia um ronco preguiçoso enquanto encostava ao lado daquela calçada que fora planejada e decorada com algumas pedras de mármore, parando logo em seguida.
Com as mãos firmes no volante ele ergueu o olhar à sua esquerda, em direção àquela janela aberta que lhe interessava.
O lustre sofisticado do interior da sala estava brilhando em meio a todas as lâmpadas brancas que lhe vestiam o esqueleto, incendiando o cômodo de maneira vitoriosa, de forma que tal esplendor não poderia ser explicado.
Havia ansiedade em seu rosto e uma alma selvagem que tomava posse de seus sentidos e desejos. Mordendo nervosamente o lábio inferior, enfim, apertou a buzina.
Foram necessários apenas alguns segundos que, para Taehyung, pareceram como uma infinidade comprimida em sua própria agonia. Pegou um vislumbre da garota quando a mesma apareceu naquele portal dimensional que os separava no espaço.
Como uma pintura emoldurada de um dos artistas mais renomados do século, ela acenou com um sorriso aberto e um olhar inocente após trancar de maneira desajeitada a porta de sua residência e então começar a se dirigir até o carro.
Sam parecia deslumbrante àqueles olhos, que por sua vez percebia as covinhas da mesma tornarem-se cada vez mais profundas a medida que a distância entre ambos diminuía.
Ela usava um vestido vermelho, por coincidência a cor preferida do garoto, embora não tivesse o conhecimento disso.
Quando os poucos metros que os separavam tornaram-se nulos, a garota dobrou minimamente seus joelhos para ter seus olhos à altura dos dele. Sorriu mais uma vez ao ver aquele rosto de tão perto e rapidamente tocou sua testa com os lábios, deixando um leve beijo na região.
- Você não vai sair desse carro e me ajudar com a mala? -Sussurrou em segredo, embora não houvesse ninguém além deles para ouvir.
- Você está perfeita esta noite, Sam!
As palavras de Kim foram pronunciadas antes de sua majestosa saída daquele dirigível. Ambos eram rei e rainha no momento, ou pelo menos fingiam ser.
A bagagem do garoto já havia sido milimetricamente organizada nos bancos de trás do conversível, para que houvesse agora lugar para os pertences da namorada. Esta riu fraco ao notar tamanho exagero manifestado em bolsas e caixas empilhadas ali.
- Tae... Não seria melhor buscar suas coisas aos poucos depois que nos estabilizarmos em algum lugar fixo? - Perguntou fingindo estar assustada.
- Querida, nós iremos para tão longe que será impossível voltar. - O garoto que sorria quadrado respondeu. - Logo que eu estiver estabilizado e em paz com você, apenas será impossível voltar...
O ambiente apresentava-se no momento com uma baixa temperatura. Isso não impediu, no entanto, que os braços de Taehyung circundassem o corpo da garota à sua frente e se tornassem o mais quente e confortável dos cobertores.
Abraçados ali, ambos logo fizeram com que seus lábios se encontrassem.
Enquanto permaneciam juntos imortalizando aquela cena, os pequenos fios soltos da franja despojada de Sam bailavam em uma perfeita sincronia com o vento, fazendo cócegas no rosto tranquilo do garoto. O mesmo serpenteava seus dedos por aquele emaranhado de mechas rebeldes que pareciam mais macias do que nunca.
No momento em que suas respirações tornaram-se difíceis, houve um distanciamento dos seus rostos embora seus corpos continuassem juntos.
Sam descansou sua cabeça sobre o tórax de Taehyung, que respirava de maneira intensa. Ouvia com atenção aquela máquina incansável dentro do peito do mesmo pulsar freneticamente realizando os processos de sístole e diástole. O movimento a envolvia, fazendo-a fechar os olhos por um instante.
Alguns especialistas afirmam que quando captamos uma canção agradável aos ouvidos, logo seu ritmo influencia fortemente em nossos batimentos cardíacos, o fazendo fluir com a mesma frequência.
A maneira com que ambos os corpos se tornaram apenas um só, em perfeita simultaneidade, apenas servia para confirmar aquela tese: O som que o coração de Kim Taehyung exercia sob o contato delicado de Sam era a canção favorita da mesma.
- Você não vai levar mais nada, além disso? - O garoto perguntou referindo-se a mala com estranheza.
Ela apenas negou com a cabeça.
- Entendi. Nômade moderna que chama? - Ele provocava com um riso irônico.
- Observe a situação e responda a si próprio. - a garota respondeu, encarando o seu oppa nos olhos.
Sam tinha a noção que vez ou outra perdia-se naquelas circulares orbes castanhas, as pupilas expressivas de Taehyung. Como impressões digitais, aquelas listras quase microscópicas que rachavam suas íris eram únicas e poderiam ser identificadas dentre todas as outras pela garota.
Aqueles olhos lembravam-na de toda a singularidade das vastas galáxias que se expandem lá fora, longe do alcance de sua compreensão e de todas as inúteis espeluncas tecnológicas até então criadas com tal propósito pelos mais egocêntricos dos cientistas.
E lá estava ela novamente, aventurando-se, mesmo leiga, no campo astronômico que só aquele par de universos poderiam a proporcionar. E esse era um dentre centenas, talvez até milhares dos efeitos Taehyung.
- Querida... - A voz suave e rouca do garoto ecoou naquela rua silenciosa. - Acho melhor nos apressarmos. Está ficando muito frio aqui e não podemos perder tanto tempo. -Pronunciava estas palavras como quem temia que algo desse errado. E não daria.
- Tem razão, vamos. - Sam concordou em resposta, despertando de seu transe.
Ambos apressaram-se em entrar no carro.
****
Foi com singela elegância que aquele automóvel começara a deslizar pelo asfalto exageradamente plano que cobria as ruas. Seus pneus quase não encontravam força de atrito nenhuma e àquelas alturas, o garoto já se perguntava se as leis da física costumavam falhar em redenção aos apaixonados.
Com os faróis acesos iluminando seus caminhos, tornava-se claro a vista daquela furiosa cidade os cuspindo com arrogância e orgulho. Como imigrantes em uma região de hábitos nacionalistas e regimes patriotas, os que não pertenciam e amavam aquela terra deveria ser enxotados sem pudores.
Vez ou outra, enquanto guiava o automóvel com fiel determinação por aquelas ruas revestidas de soberba, Kim sentia a necessidade de trocar de marcha e o fazia. Ainda com a mão sobre a extremidade arredondada daquele objeto, de propósito, esperava o toque suave da garota ao lado. Sam deslizava seus dedos sobre os de Taehyung até que juntos, estivessem enfim formando nós bagunçados com o descanso estabelecido após o ato.
E embora toda a vizinhança aquela hora já repousasse há tempos, embora a mais ágil das garotas de programa já tivesse os fitado com tédio aquela madrugada e os bêbados perdidos não mais os insultassem com dizeres sem sentido, havia a testemunha de tal proeza noturna que cintilava em sua majestade prateada no céu enegrecido. A lua julgava em silêncio embora não houvessem acusações condenáveis contra seus rés.
E em meio à quietude, muitas vezes cortadas por risadinhas fracas, suspiros indecisos ou assobios descontraídos de ambos, o caminho a ser seguido mudava a cada esquina.
Não havia um trajeto fixo em suas mentes, nem um endereço a ser encontrado. Apenas dois amantes mergulhados nas veias daquela cidade, à procura de um destino decidido por alguma força do universo.
- Esta com certeza será a estória que contaremos aos nossos futuros filhos enquanto tentamos os fazer dormir... - Sam sorria.
- Eu estava pensando exatamente nisso agora.
- Sim, você está exatamente pensando sobre essas coisas a todo o momento, Tae...
****
A estrada a ser descoberta continuava a prolongar-se, insaciável, assim como a melancólica vibração do casal que, ausentando-se de palavras por grande parte da viagem, rezava em pensamentos que a liberdade fosse encontrada em meio a todas aquelas prisões mundanas que certamente encontrariam lá fora.
Sam lembrara de uma música que costumava ouvir em segredo enquanto pensava em Taehyung. Do I Wanna Know do Arctic Monkeys. Havia um verso que declarava "que as noites foram feitas principalmente para dizer coisas que não se podem dizer no dia seguinte". Ela não concordava com aquilo. Não mais.
A partir daquele momento, ao olhar de canto para o garoto que dirigia concentrado à sua esquerda, prometeu a si mesma que em hipótese alguma esperaria o sol se pôr para ter a coragem de declarar-lhe todas as pequenas coisas que sentisse vontade. E em hipótese alguma permitiria que a ascensão daquela mesma estrela incandescente a repreendesse da decisão tomada.
O dono daquele sorriso quadrado era e continuaria sendo o menino dos olhos de Sam. Havia algo faiscando em seu interior que a fazia acreditar nisso.
O cenário que circundava aquele veículo transformava-se aos poucos, de uma sequência de construções caras e impostas em superioridade a natureza que antes havia, ao mais sublime e simples dos ambientes que retratavam, confiáveis, a filosofia do carpem diem em sua total pureza.
Era como se houvesse um retorno no tempo em que aquelas edificações modernas não existissem em meio aos campos verdes que agora surgiam vagarosamente ao longe.
Seria um dia bom, afinal. Bastava esperar alguns minutos.
A serenidade daquele tribunal celeste que acompanhara e tentara condenar aquele romance amador em primeira mão, agora fracassava com sucesso.
Um a um, cada astro suspenso naquela margem acinzentada, desaparecia em decorrência à chegada das primeiras manchas claras que se infiltravam ali, combatendo aquela negritude.
Como uma batalha que divergia as trevas com a luz, a tentativa fútil daqueles corpos celestiais que pouco cintilavam, agora tornava-se oprimida pela autoridade da fantástica chegada daquele seu superior. Além da linha do horizonte, o astro que torna possível todas as diversas formas de vida ativas na Terra, agora tendia a se exibir.
O lençol infinito que recaía sobre aquele globo flutuante em meio ao caos solitário do espaço, transitava magicamente do seu tom enferrujado e áspero para um espectro de cores laranja, amarelo, vermelho, rosa e azul. Todas as tonalidades marcadas por uma expressão de dádiva e glória.
Kim Taehyung contemplava aquilo transmitindo elevada sensação de paz de espírito. Seus olhos voltados para a obra de arte mais antiga já existente, a intocável e indestrutível metamorfose temporal irradiava o poder para pintar o telhado mundano com todos os tons definidos pelo Maior dos Artistas, o Pai da Graça e de Toda a Poesia, cujo nome e assinatura não necessitara ser cravada em espaço algum para todos reconhecerem a obra como sendo derivada unicamente de Deus.
A maneira com que aqueles raios dourados delicadamente cintilavam sobre a pele branca de Sam cooperavam para a formação que Kim tinha do que seria o Paraíso. A garota possuía características angelicais que agora se destacavam de forma exagerada quando em conjunto com aquela grande aquarela captada pelos olhares de ambos. O garoto lembrara que não costumava ser um crente em qualquer coisa relacionada a um ser divino e suas preciosas criações até o dia em que a conheceu.
- Sam... - Calmamente Taehyung pronunciou.
- Sim, Tae?
- Lembra quando assistimos ao nosso primeiro nascer do sol, juntos?
- É claro que eu me lembro. - A garota agora tinha sua atenção dedicada ao namorado. - Como eu poderia esquecer? Você pergunta coisas meio absurdas de vez em quando, Tae.
Um sorriso discreto havia se formado em ambos os lábios.
- Gosto quando você me chama assim...
- Assim como?
- ...Tae.
O garoto a observou por alguns segundos. O suficiente para que as bochechas da mesma começassem a corar.
Cruzando agora as fronteiras de uma cidade não tão conhecida, o casal contemplava o espetáculo que marcava a chegada da manhã enquanto a pequena população do local ainda permanecia inerte em seu sono.
****
Foi impressionante a maneira com que a noite mudou tão sorrateiramente.
Sam e Taehyung possuíam suas próprias residências, seus próprios empregos e planos individuais para seus futuros. Tudo isso há cerca de três horas. Agora possuíam apenas alguns pertences baratos, um carro esportivo, nervos a flor-da-pele e em ambas as mãos o coração um do outro. E isso era mais que o suficiente.
Ao tomarem a decisão de se arriscarem por todas aquelas estradas até então inexploradas pelos mesmos, o único objetivo a ser alcançado era a fuga eficaz de todas aquelas hipocrisias e negatividades que os rodeavam.
A toxicidade daqueles ares de amargura não permitiam a fluência do crescimento daquela rara semente encontrada dentre várias outras já apodrecidas.
A semente denominava-se amor, e estava sobre todo o ser de ambos. E embora ainda pudesse germinar heroicamente no meio de campos minados e em meio a lavas de fogo ardente, ainda assim a honravam e apreciavam como a mais delicada das pepitas de esmeralda. Decidiram então, carregá-la até algum lugar de esperança e harmonia e plantarem ali para que crescesse exponencialmente. E esse lugar era o resto do mundo inteiro.
- Eu amo você, Sam... - A frase soou grave e rouca.
- Eu também amo você, Taehyung... De verdade.
E entre todas as mudanças de hábitos que certamente teriam que se submeter, entre todas as escolhas indecisas tomadas e perante as centenas de dúvidas que os afligiam no momento, havia apenas uma certeza que era soberana a todos esses fatos: mesmo que a noite mude, ela jamais mudaria Sam e Kim Taehyung.
Porque alguns momentos da vida são breves, mas alguns sentimentos imutáveis. E de alguma maneira ambos sentiam que isso era verdade quando, como diriam os hippies, iniciavam a jornada do primeiro dia do resto de suas vidas. Juntos.
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