Capítulo 22: Ego.
Capítulo 22: Ego.
A festa estava no auge quando finalmente alcancei a área principal, onde as mesas de madeira rústica estavam cobertas com toalhas brancas e decoradas com arranjos simples de flores do campo. O som de risadas e conversas misturava-se ao ritmo alegre do forró que tocava ao fundo, vindo de uma banda local que parecia animar todos os presentes. O cheiro de carne assada invadia o ar, misturado ao aroma doce de bolos caseiros e doces tradicionais que enchiam a mesa de sobremesas. Era o tipo de festa que só o interior sabia fazer: calorosa, comunitária e, acima de tudo, carregada de vida.
Não haviam comparecido apenas os funcionários da fazenda, mas muitas pessoas da região tinham sido convidadas, a fazenda Braga sempre foi muito conhecida em Itauçu, desde que foi fundada pelo meu bisavô.
Vesti uma calça de alfaiataria bege e uma camisa preta de gola alta, uma escolha que contrastava com o estilo descontraído da maioria ali, mas que ainda parecia adequada. Joaquim, claro, havia feito questão de comentar antes de sairmos de casa:
- Tá um pavão, mas tá bonito, não vou mentir. - Ele disse isso com um sorriso enviesado enquanto ajeitava a gola da minha camisa.
Eu ri e não disfarcei o orgulho. Joaquim estava mais simples, como de costume: jeans bem ajustados e uma camiseta vermelha nova, que destaca o bronzeado de sua pele, mas ele estaria lindo até com sua roupa de trabalho mais surrada. Ele era assim, despretensiosamente encantador, e eu nunca deixava de perder o fôlego ao vê-lo.
Ao chegar, nos misturamos aos grupos já espalhados pela festa. Joaquim rapidamente se afastou para conversar com outros peões, mantendo a distância que, embora necessária, ainda incomodava. Eu, por outro lado, cumprimentei alguns trabalhadores e conhecidos da fazenda, trocando sorrisos e comentários sobre o clima e a boa organização do evento.
Clarice, como sempre, tinha caprichado na comida, ela havia tido ajuda de algumas cozinheiras contratadas para o evento, mas ainda era quem dava as ordens. Haviam travessas de arroz branco e carreteiro, churrasco sendo servido em espetos que não pareciam acabar nunca, e saladas frescas que contrastavam com o peso das carnes. Os doces caseiros, com suas cores e formas variadas, chamavam atenção, mas a minha fome parecia pequena comparada à energia vibrante ao meu redor. Ainda assim, servi-me de uma taça bem cheia de pavê de morango com chantilly, que levei comigo enquanto me encaminhava para a mesa onde meu pai estava.
Roberto, com sua postura sempre imponente, parecia satisfeito com a festa. Ele cumprimentava todos com sorrisos largos e comentários bem-humorados. Quando me sentei ao seu lado, notei um brilho raro de orgulho nos olhos dele.
- Tá bonito isso aqui, hein? Parece que finalmente valeu a pena gastar aquele dinheiro todo. - Ele disse, rindo e acenando para um conhecido do outro lado da festa.
Concordei com um sorriso e mergulhamos em uma conversa leve sobre negócios, sobre os próximos passos na fazenda e até sobre as viagens que ele dizia ainda querer fazer. Parecia um raro momento de paz entre nós, uma dessas pausas em que os conflitos do passado ficavam suspensos no ar.
- Antônio me disse que se eu não for até o Rio nos próximos meses, ele vai ficar com o barco pra ele! Mas não o culpo, já fazem cinco anos que não velejamos. - ele contou, rindo um copo de suco de tamarindo gelado na mão.
- E por que não vai, pai? A vida é muito curta pra você só trabalhar. - comentei, comendo um último morango da minha taça.
A tranquilidade do momento era mais doce que o chantilly, confesso que senti falta demais de simplesmente bater papo com meu pai. Me pergunto quando tudo começou a dar errado na minha vida, até a época em que eu ainda fazia faculdade, passávamos horas conversando todos os dias, quando eu chegava em casa.
Eu fingia que era feliz com o curso, com a vida perfeita e pronta nas minhas mãos, só precisava ter continuado. Porém, eu sentia um vazio tão grande no meio daquelas pessoas frívolas. A bebida foi aos pouquinhos se tornando meu refúgio, quando eu estava tonto não pensava em mais nada, mas eu me perdi no personagem.
Meu pai ficou quieto por alguns instantes, tão pensativo quanto eu.
- Eu não sei, filho... - ele murmurou, parecendo abatido de repente, ficou quieto por mais algum tempo até finalmente olhar para mim, seus olhos não pareciam tão inexpressivos quanto o costume - Eu queria te contar uma coisa, Gabriel... Não sei se é o melhor momento, mas acho que você merece saber que eu estou...! - ele acabou se interrompendo, o celular tocando no bolso.
Foi então que tudo começou a desmoronar.
A ligação foi desligada antes dele atender, e o som de uma notificação no celular dele quebrou de vez o ritmo da conversa. Roberto pegou o aparelho distraidamente, mas assim que desbloqueou a tela, sua expressão mudou. O sorriso desapareceu, dando lugar a um olhar de puro choque e repulsa.
- Mas que diacho é isso...? - Ele murmurou, baixo, mas com uma intensidade que me fez gelar.
- O que foi? - perguntei, inclinando-me para tentar entender o que ele tinha visto.
Foi então que ouvi.
O som era inconfundível. Gemidos. Mas não gemidos quaisquer. Eram gemidos com uma voz que eu reconhecia de imediato. A voz do Joaquim.
Meu pai ficou pálido, os olhos arregalados, e virou o celular para mim. A tela exibia um vídeo que, sem dúvida, tinha sido gravado sem o nosso consentimento. No fundo dos gemidos, meu nome escapava entre suspiros e palavras abafadas. A noite de ontem na minha casa.
- Gabriel... - Ele finalmente me encarou, horrorizado, como se fosse difícil acreditar no que acabara de ouvir.
Senti como se o chão tivesse desaparecido debaixo dos meus pés. A visão começou a embaçar enquanto minha mente corria em círculos, tentando desesperadamente encontrar uma explicação, qualquer explicação. Tudo parecia acontecer em câmera lenta, enquanto a música da festa e as risadas ao redor pareciam distantes, como se viessem de outro mundo.
Tentei abrir a boca para falar, mas nada saiu. Meu pai não precisou dizer nada. O olhar dele, misturado com nojo e decepção, dizia tudo. Por mais que ele tivesse tentado melhorar, a homofobia que ele lutava para abandonar parecia ainda arraigada nas reações mais instintivas.
Olhei ao redor, na esperança de que ninguém mais tivesse percebido, mas era impossível saber. Não sabia quem tinha feito aquilo, como o vídeo havia vazado ou o que aconteceria agora. O pânico tomou conta de mim, e naquele momento, a festa que até então parecia tão alegre e acolhedora tornou-se sufocante, um lugar onde todos os olhares pareciam julgadores, mesmo que talvez ninguém soubesse de fato.
De alguma forma, eu sabia que essa noite, que começara tão bem, nunca seria esquecida. E não pelo motivo certo.
Meu pai estava ali, congelado, segurando o celular como se ele fosse uma bomba prestes a explodir. Eu não conseguia nem respirar direito, esperando que, de alguma forma, isso fosse um engano, um pesadelo.
- Pai... - minha voz saiu fraca, quase inaudível.
Mas então, como se algo dentro dele tivesse sido aceso, Roberto se levantou de repente. Antes que eu pudesse reagir, senti o impacto de um soco direto no meu rosto, forte o suficiente para me fazer cair da cadeira e quase no chão. A dor foi instantânea, um latejar abaixo do meu olho esquerdo que me deixou zonzo.
- SEU DESGRAÇADO! - ele gritou, tão alto que a música parou de tocar, e o silêncio da festa foi substituído pelo eco de sua voz. - EU NÃO ACREDITO QUE VOCÊ VIROU UMA PIRANHA AO INVÉS DE TRABALHAR!
Levantei a mão ao rosto, o calor da pele começando a inchar onde ele tinha acertado. Minha visão estava turva de lágrimas que eu segurava com força. Meu coração parecia prestes a explodir no peito, e eu não conseguia nem abrir a boca para me defender.
- OLHEM PRA ELE! - continuou meu pai, agora se dirigindo a todos os presentes. - VOCÊS ACHAM QUE ESSE MOLEQUE É HOMEM? NÃO, NÃO É! EU FIZ DE TUDO PRA TE CRIAR E EDUCAR, DEI TUDO DO BOM E DO MELHOR, E ELE ME AGRADECE DANDO PRO PRIMEIRO PEÃO QUE APARECE BEM EMBAIXO DO MEU NARIZ! COMO SE FOSSE UMA PUTA!
As palavras batiam como golpes, cada uma mais pesada e dolorosa que a anterior. Eu sentia o olhar de todos na festa sobre mim. Alguns com pena, outros com desprezo, e outros ainda rindo, aproveitando o espetáculo. Meu estômago revirava, e meu peito queimava com uma mistura de vergonha, raiva e desespero. No fundo eu já havia imaginado uma reação assim vinda dele, mas nem nos meus piores pesadelos foi de forma tão humilhante que meu pai descobriu. Eu queria morrer.
- CHEGA! - ouvi a voz do Joaquim cortar o ar como uma faca, até eu me assustei com seu grito.
Meu pai virou para ele, mas Joaquim já estava avançando.
- O senhor foi um LIXO de pai nos últimos tempos! - Joaquim gritou, os olhos fervendo de raiva. - Trata o Gabriel como se ele fosse só um cachorro seu! Olha pro que cê tá fazendo na frente de todo mundo! Olha pro SEU FILHO!
Roberto ficou vermelho de ódio, apontando o dedo na cara do Joaquim.
- Cale essa boca, peãozinho de merda! Você tá demitido! Pegue seus trapos esfarrapados e caia fora da MINHA fazenda antes que eu te jogue daqui a pontapés!
As tão palavras saindo da boca dele me doeram mais do que aquele soco, no final eu realmente consegui, estraguei a minha vida e a do homem que eu amo. Mesmo assim, Joaquim deu um passo à frente, encarando meu pai sem medo.
- Eu vô embora, sim, mas vô levar o Gabriel comigo! Ele não precisa d'ocê nem do seu dinheiro!
Roberto riu, seco e cheio de desprezo.
- Gabriel é MEU filho. E ele vai pra cidade comigo, onde eu posso ensinar ele a ser um homem de verdade. Se ele for com você, nunca mais vai ver um tostão meu. Nunca mais!
As palavras dele ecoaram em minha mente como um sino quebrado, e era como se tudo ao meu redor estivesse girando. Era demais. Eu não sabia o que fazer, como reagir. Só conseguia sentir o peso dos olhares, das risadas abafadas, dos cochichos maldosos, a culpa de ter feito Joaquim perder o emprego.
Os peões riam, alguns murmurando comentários malvados que faziam meu estômago virar do avesso. Ouvi em algum momento a voz daquele homem - o mesmo que me ameaçou dias atrás.
- Óia a bundinha branca dele! Os puteiro tão perdeno! - ele gargalhava, vários peões em volta rindo junto e tentando assistir também.
Meu coração parou. Era real. O vídeo... todo mundo sabia. Todo mundo tinha visto.
Não consegui suportar. Meu corpo reagiu antes de minha mente, e eu saí correndo, atravessando o terreiro e ignorando os gritos do Joaquim chamando meu nome.
Eu só queria desaparecer.
XXX
Fiquei parado ali uns segundos, parecendo que o chão queria me engolir, enquanto a multidão ficava num silêncio desconfortável, só quebrado por cochichos e risadinhas de deboche. Meus olhos ficaram presos na direção por onde o Gabriel tinha corrido, mas ele já tinha sumido no escuro. Meu peito tava um nó de raiva e preocupação.
- Dois viados... Isso não tá na lei de Deus. - ouvi alguém resmungar perto, seguido de umas risadas abafadas.
- Devia era ter vergonha... - outro soltou, com aquele sorriso nojento.
Senti o sangue subir direto pra cabeça. Cada palavra, cada risadinha, cada olhar atravessado era como uma faca me cortando por dentro. Nem pensei direito.
- Mais alguém aqui quer falá alguma coisa? - gritei, a voz saindo firme e alta, como um trovão. Me virei, olhando de cara feia pra cada um dos peões, um por um. - Só mais uma bobeira sobre o Gabriel, e juro por Deus que eu não vou me segurar!
O silêncio foi mortal. Uns abaixaram a cabeça, outros deram um passo pra trás, mas sempre tem um ou outro que não se manca e fica com aquele risinho no canto da boca.
- Tô falando sério! - rosnei, dando um passo pra frente. - Quem aqui acha que tem moral pra abrir a boca, hein? Quem nunca fez cagada na vida? Quem nunca escondeu nada? O que o Gabriel fez ou deixou de fazer não é problema de nenhum d'ocês!
Minha respiração tava pesada, o coração batendo forte no peito.
- E tem mais. Ocês tão rindo dele, né? Se acham no direito de pisar em quem tá sozinho, quem não tem ninguém pra defender? Pois agora tem! Qualquer um que encostar no Gabriel ou abrir a boca pra falar mal dele de novo vai ter que acertar as contas comigo!
Depois disso, virei as costas e saí dali sem olhar pra trás. Não queria nem saber se acreditaram ou não, ou se iam continuar debochando. Eu só queria achar o Gabriel.
Minha cabeça tava a mil enquanto eu andava pela fazenda, procurando ele por tudo que é canto. Passei pelos curral, pelo galpão, até na casa dele. Nada.
- Gabriel, onde cê tá, menino? - murmurei pra mim mesmo, sentindo o medo apertar ainda mais no peito.
Não tava em lugar nenhum, e o desespero começou a tomar conta. Eu precisava achar ele, precisava dizer que ia ficar tudo bem, que eu tava do lado dele, que a gente ia resolver isso junto. E, acima de tudo, precisava tirar ele daqui antes que aquele miserável do Roberto aparecesse de novo pra ferrar ainda mais o próprio filho... O meu menino.
XXX
O chão parecia não estar mais sob meus pés. Cada passo que eu dava era como pisar no vazio, um abismo invisível que me puxava para um lugar cada vez mais escuro. Meu coração batia rápido, descompassado, como se quisesse sair do peito, e eu não conseguia respirar direito. Era como se o ar ao meu redor tivesse sido roubado, substituído por algo denso e sufocante.
As palavras do meu pai ainda ecoavam na minha cabeça. "Piranha... desgraçado...deu pro primeiro que apareceu." Ele gritou para que todos ouvissem, e eles ouviram. Eles riram. Alguns cochicharam. Outros me olharam como se eu fosse uma coisa nojenta, uma aberração que não deveria estar ali.
Meus passos me levaram sem rumo, e eu não sabia para onde estava indo. Só sabia que precisava sair dali, longe dos olhares, longe das risadas, longe de tudo. Meu corpo tremia, os músculos tensos, e as mãos formigavam tanto que parecia que não eram mais minhas.
Eu tentei me controlar. Juro que tentei. Respirei fundo, como vi na internet. "Enche o peito, conta até quatro, solta devagar." Mas não conseguia. O ar entrava rápido e saía ainda mais rápido, como se meus pulmões não fossem capazes de segurá-lo. Minha cabeça girava, e comecei a sentir náusea.
Cheguei ao lago sem perceber. Era um lugar calmo, bonito, que costumava me trazer paz enquanto eu pescava com Joaquim. A lua refletia na água, as cigarras cantavam ao longe, e a brisa era fria contra minha pele quente. Mas nada disso me alcançava. Dentro de mim, tudo era tempestade.
Sentei na beira, abraçando as pernas com força, tentando me agarrar a mim mesmo, como se pudesse impedir minha de se quebrar. Meu peito doía tanto que parecia que ia explodir. A dor não era física, mas era real. Era como se meu coração estivesse esmagado, como se minha essência vital estivesse sendo sugada de mim.
Por que tudo isso? Por que amar alguém é tão errado?
Minha mente não parava. Eu me lembrava de cada piada que ouvi quando era mais novo, cada comentário maldoso, cada vez que alguém disse que Deus ia punir quem fosse gay, que isso era pecado. E agora, eu era o alvo desse coro de preconceito.
As lágrimas começaram a descer, quentes, incontroláveis. Eu não queria chorar. Queria ser forte, homem não chora, mas era impossível. Estava destruído. Não conseguia pensar em outra coisa além da vergonha, da humilhação. O vídeo... todos eles viram. Cada detalhe, cada parte minha que deveria ser só minha e do Joaquim. Agora, eu era uma piada infame.
Olhei para a água. Tão calma, tão silenciosa. Diferente de tudo que eu sentia. Um pensamento frio atravessou minha mente, e eu me levantei.
Talvez fosse melhor assim.
Dei um passo à frente. A água tocou meus pés, gelada, mas eu não recuei. Não tinha para onde recuar. Mais um passo, e o frio subiu pelas minhas pernas. Meu corpo tremia, mas era como se minha mente estivesse desligada.
- Vai acabar logo... - murmurei para mim mesmo, tentando acreditar.
Fechei os olhos e me deixei cair. A água me envolveu, gelada, sufocante. Era como se ela finalmente entendesse o que eu queria. Soltei o ar dos pulmões e me deixei ser puxado para baixo, onde não havia dor, nem vergonha, nem ninguém para me julgar.
A última coisa que senti foi o peso da água, uma mistura de paz e desespero, enquanto o silêncio me engolia.
XXX
O peso no peito ficava pior a cada segundo. Eu corria pela fazenda, os olhos varrendo tudo, cada canto, cada sombra, mas nada do Gabriel. Tentei gritar o nome dele, mas a voz saiu fraca, mais um sopro que um grito. O coração batia com força, mas não era de correr, era de medo. Medo daquele ruim que a gente sente quando sabe que coisa feia tá pra acontecer.
Quando passei perto do lago, foi que vi. Só um fiozinho das costas dele... e então ele afundou.
- Não! - berrei, mas parecia que minha voz sumiu no vento.
As pernas dispararam sozinhas. Corri o mais rápido que pude, sem ver mais nada, só o lago e Gabriel sumindo na água. O barulho das cigarras, o cheiro da terra molhada, tudo apagou.
Quando cheguei na beira, nem pensei. Pulei direto, a água tava gelada, mas o frio não importava. Meu corpo já sabia o que fazer, os braços cortando a água enquanto eu mergulhava, tateando no escuro, procurando ele. O coração quase parou quando finalmente toquei nele.
Agarrei Gabriel com força e puxei ele pra cima. Ele tava mole, sem reação, e a cor dele... Meu Deus. Parecia morto. Não. Não podia ser.
Arrastei ele pra margem, o corpo tremendo, de cansaço e desespero. Deitei ele no chão e comecei a soprar ar na boca dele.
- Num faz isso comigo, porra! - resmunguei, empurrando o peito dele, tentando trazer ele de volta.
O tempo parecia parado. Cada segundo durava uma vida. Soprei mais ar, pressionei o peito dele, rezei - coisa que não fazia desde moleque. As mãos tremiam, e senti as lágrimas queimando o rosto.
- Volta pra mim, Gabriel, pelo amor de Deus!
De repente, ele tossiu. O som mais bonito que já ouvi na vida. Tossiu de novo, forte, botando pra fora a água que engoliu. Virei ele de lado, segurando enquanto ele lutava pra respirar.
- Graças a Deus... graças a Deus... - murmurei, a voz toda cortada pelo choro.
Eu, Joaquim, que nunca chorava, que engolia tudo, desabei. Ver ele ali, vivo, foi como se tivesse estourado uma represa dentro de mim. Solucei igual menino, agarrado nele, sentindo aquele corpo gelado no meu.
- Nunca mais faz isso, cê tá ouvindo?! Nunca mais, Gabriel! Eu te amo, porra! Eu num sei viver sem ocê!
Ele tentou falar, mas só tossiu de novo, fraco, os olhos quase fechando, cheios de dor. Mesmo assim, vi uma lágrima escorrer do rosto dele.
Foi ali que jurei pra mim mesmo: ninguém, nem Roberto, nem o mundo, ia tirar Gabriel de mim.
Segurei ele nos braços como se fosse feito de vidro, mas o coração queimava por dentro. O corpo dele tava mole, ainda tremendo, os olhos vidrados. Cada passo até a casa grande parecia mais pesado, mas eu não ia parar. Ele precisava de ajuda. Agora.
Quando cheguei na entrada, vi o Roberto saindo apressado pela porta, com o rosto branco feito papel, misturado de confusão e medo. Ele me olhou, viu o estado do Gabriel, e já veio perguntando:
- O que aconteceu com ele? - a voz dele tinha preocupação, mas aquele jeito autoritário que me tirava do sério não sumia nunca.
Nem olhei direito pra ele.
- Vai pro inferno, Roberto! Cê já fez merda demais por hoje.
Passei direto, com ele ainda tentando falar alguma coisa. Não tinha tempo pra briga. Fui até a caminhonete do Gabriel, abri a porta e ajeitei ele no banco do passageiro o mais devagar que consegui. Mas mesmo assim, ele gemeu baixinho, tremendo de frio, com o rosto pálido de dar dó.
- Aguenta firme, amor. Tô aqui com ocê - falei baixinho, apertando a mão dele antes de correr pro lado do motorista.
Roberto tava lá ainda, mas nem dei bola. Entrei na caminhonete, bati a porta e liguei o motor. Saí cortando o chão, deixando ele pra trás junto com a poeira. Roberto podia gritar o quanto quisesse, porque naquele momento só o Gabriel importava.
No meio do caminho pra cidade, o Gabriel começou a se mexer, agitado. De repente, ele inclinou pra frente e vomitou no chão da caminhonete.
- M...Merda...! - ele murmurou, com a voz fraca, antes de começar a chorar igual criança.
Segurei o volante firme, tentando não perder o controle.
- Tá tudo bem, Gabriel. Pode botar pra fora o que precisar. Eu tô aqui, vou cuidar de você. Não precisa se preocupar, tá? - Falei manso, mas meu peito parecia que ia explodir de tanto aperto.
Ele soluçou, a voz falhando:
- Joaquim... eu não queria... eu só queria... Desculpa...!
- Eu sei, eu sei. Tá tudo bem agora. Você tá comigo e eu não vou deixar nada de ruim acontecer com você nunca mais.
O resto da viagem foi só ele soluçando baixinho e eu olhando pra frente, sem conseguir pensar em mais nada além de chegar logo. Quando parei na entrada do hospital, pulei da caminhonete e fui pro lado dele, tirando ele com todo o cuidado. Gabriel tava tão fraco que nem andar ele conseguia direito, então carreguei ele no colo até dentro da emergência.
- Alguém ajuda aqui! - gritei.
Uma enfermeira veio correndo com uma cadeira de rodas. Ajeitei ele ali, mas minhas mãos tremiam tanto que quase não consegui.
- O que aconteceu? - ela perguntou, olhando ele de cima a baixo.
- Acho que ele teve uma ansiedade ou sei lá o quê, e quase se afogô. Só ajuda ele, por favor - minha voz saiu mais alta do que devia.
Levaram ele pra dentro e me deixaram na recepção. Minhas pernas pareciam que iam dobrar, mas eu me obriguei a ficar de pé. Não era hora de fraquejar.
Tentei ir na recepção perguntar, mas a mulher atrás do balcão me olhou meio estranho quando eu falei que era o companheiro dele. Não tava nem aí, mas ela deixou claro que só podia entrar depois que dessem remédio pra ele.
Fiquei andando de um lado pro outro, lembrando de tudo. Do Gabriel tremendo nos meus braço, da água escorrendo dele depois do lago, do jeito que ele chorava no carro. Aquilo virou raiva, tanta raiva que eu mal conseguia respirar. Raiva do Roberto, dos peões, de quem espalhou aquele vídeo. Não tinham o direito de tratar ele assim.
Quando me chamaram pra falar com o médico, corri até lá. Ele explicou que o Gabriel tava melhor, mas que precisava de acompanhamento psicológico. Eu só conseguia pensar em ver ele.
No quarto, ele tava deitado, com os olhos fechados, todo abatido. Peguei na mão dele e falei:
- Tô aqui, amor. Não vou sair do seu lado, nunca mais.
Ele abriu os olhos devagar, tentando sorrir, mas o rosto dele tava inchado no lugar do murro.
- A gente vai passar por isso junto, tá? Eu não vou deixar ninguém mais te machucar.
Ele assentiu e apertou minha mão. Aquele aperto, mesmo fraquinho, me deu a certeza de que eu faria qualquer coisa por ele, porque ele era tudo pra mim.
De manhã, quando ele teve alta, prometi que ele não ia ficar mais um dia sequer naquela fazenda. E era isso. Comigo, ele ia ter paz, nem que eu tivesse que brigar com o mundo inteiro.
De manhã, Gabriel finalmente teve alta. O médico pediu mais uns exames, mas disse que, com o descanso e ajuda de psicólogo, ele ia melhorar. Enquanto ele terminava de se vestir, ainda um pouco abatido, segurei as mãos dele e olhei fundo naqueles olhos verdes.
- Vâmo pra fazenda buscar minhas coisa e depois resolvemo o resto. Você não precisa ficar lá nem mais um segundo, tá bom?
Gabriel assentiu, ainda sem muita força pra falar. Sua pele estava pálida, e ele parecia cansado demais pra discutir.
No caminho de volta, o silêncio tomou conta da caminhonete. Gabriel olhava pra a janela, os olhos perdidos no horizonte. Eu sentia que ele estava tentando disfarçar, mas dava pra ver que não tava bem. Por dentro, meu coração se apertava.
Quando paramos na frente da casa grande, vi Roberto na varanda, bebendo café e olhando os peões. Saí do carro com Gabriel e o ajudei a subir os degraus. Roberto se virou quando viu a gente, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, eu explodi:
- Cê tem noção do que fez? - minha voz saiu mais alta do que eu esperava, carregada de raiva e de dor.
Roberto franziu a testa, se.
- Do que você tá falando, Joaquim?
- Gabriel tentou se matar ontem à noite! - gritei, sem conseguir mais me conter. - Ele quase morreu porque você não conseguiu ser um pai decente por um minuto sequer!
Roberto ficou branco, os olhos arregalados. Sua xícara de café caiu no chão e se espatifou.
- O quê? - Ele olhou pro Gabriel, que tava quieto, os braço cruzado como se quisesse se esconder. - Isso é verdade, filho?
Gabriel apenas desviou o olhar, sem responder. Roberto tentou chegar perto, mas eu me enfiei no meio e não deixei.
- Não adianta tentá se fazer de besta agora, Roberto. Tudo isso é culpa sua.
Antes que ele pudesse responder, a Clarice saiu da cozinha, onde tinha acabado de organizar as tarefas do dia. Assim que ouviu o que tinha acontecido, parou no meio do corredor, o olhar cheio de raiva.
- Isso tudo é por causa da sua ignorância?! - ela perguntou, já indo pra cima do Roberto. - Cê destruiu seu filho, homem!
Roberto tentou se explicar, meio engasgado.
- Eu... eu não sabia que...
Plaf!
O tapa veio tão rápido que ele nem teve tempo de pensar. O barulho seco foi alto, e os peões que tavam por perto largaram tudo pra assistir a cena, de boca aberta.
- Isso foi por todas as vezes que eu me calei quando ocê foi injusto, Roberto - Clarice falou, arrancando o avental e jogando no chão, bem nos pés dele. - Eu me demito! Não vou mais passar pano pras suas merdas.
Roberto ficou parado, sem ação, com a mão no rosto onde o tapa pegou. Clarice passou por mim e pelo Gabriel, tocando de leve no ombro dele.
- Força, menino. Cê merece coisa muito melhor que isso.
Quando ela saiu, peguei a mão do Gabriel. Ele tava quieto, mas o rosto dizia tudo.
- Vamô lá pegar minhas coisas e sair daqui de vez. Não quero nem olhar mais pra cara desse homem - falei, com a voz dura.
Roberto ainda tentou abrir a boca, mas dessa vez quem falou foi o Gabriel. Ele ergueu a cabeça, firme, e encarou o pai.
- Eu não sou mais seu problema, pai. E nunca fui sua vergonha. - A voz dele tava baixa, mas cheia de uma coragem que até me arrepiou. - A vergonha aqui é você.
Sem esperar resposta, virei as costas e levei ele pra dentro, pra juntar o que precisávamos. A gente sabia que nada mais prendia a gente naquele lugar.
Quando chegamos na casa da fazenda, o silêncio parecia até pesar mais que o cansaço. Gabriel foi direto pro sofá, se sentando devagar e soltando um suspiro que parecia carregar o mundo inteiro. Eu me sentei do lado dele, puxei ele pra perto e abracei. Ele se encostou no meu peito, e ficamos assim, quietos, como se aquilo fosse o único jeito de segurar tudo.
Minha cabeça não parava de pensar. Eu trabalhei naquela fazenda por mais de dez anos. Era o único lugar que conhecia como casa desde que virei homem feito. E, por mais que sair de lá fosse o certo, parecia que eu tava largando uma parte de mim pra trás.
Gabriel me olhou, os olhos vermelhos ainda, mas tentando disfarçar a dor.
- E agora? - perguntou baixinho, a voz meio rouca.
Eu queria ter uma resposta pronta, uma solução mágica. Mas a verdade é que eu tava tão perdido quanto ele. Passei a mão no cabelo dele, tentando passar uma calma que eu mesmo não sentia.
- A gente dá um jeito. Sempre dá.
Ficamos mais um tempo em silêncio, o peso da situação esmagando a gente. Foi aí que me veio uma ideia, quase como um reflexo de desespero.
- Tenho uma irmã... - comecei, meio sem jeito. - Das mais velhas. Ela foi quase uma mãe pra mim quando eu era piá, cuidava de mim enquanto nossa mãe tava no batente.
Gabriel levantou a cabeça, me olhando com atenção.
- E você acha que ela pode ajudar?
Dei de ombros, tentando mostrar confiança que nem eu sentia.
- Não sei. Faz tempo que não falo com ela. Mas ela sempre foi boa gente. Mora na cidade, tem espaço. Talvez a gente possa ficar lá até eu resolver as contas com o Roberto.
Gabriel parecia ponderar, os olhos procurando alguma segurança no meu rosto.
- Vale tentar. Eu confio em você, Joaquim.
Aquilo me pegou de um jeito que eu nem esperava. Depois de tudo o que ele passou, ele ainda confiava em mim. E isso me deu coragem.
- Tá certo. Vou ligar pra ela agora.
Peguei o telefone com a mão tremendo e disquei o número que eu ainda sabia de cor. Fazia tempo que não falava com ela, e, enquanto o telefone tocava, me perguntava se ela atenderia.
- Alô? - A voz dela, firme e calorosa, veio do outro lado.
- Cristiane? Sou eu, Joaquim.
Houve um silêncio, e então ela respondeu, surpresa:
- Joaquim? Rapaz, que surpresa! Que que aconteceu?
Respirei fundo, tentando organizar as palavras.
- É uma longa história, mana. Eu... eu tô precisando de ajuda. Não dá pra explicar agora, mas preciso de um canto pra ficar uns dias... E tem uma pessoa comigo.
Ela ficou quieta por um tempo, como se ponderasse.
- Você sabe que minha casa tá sempre aberta pra você, meu irmão. Mas o que aconteceu? Sua voz parece cansada, triste...
Olhei pro Gabriel, que me observava, cheio de expectativa.
- Eu te explico quando chegar aí. Só me promete que vai escutar antes de julgar.
Ela suspirou, daquele jeito que só irmão mais velho faz.
- Tá bom, Joaquim. Vem. Vou preparar um quarto pra vocês.
Quando desliguei, olhei pro Gabriel.
- Ela aceitou.
O alívio nos olhos dele era visível. Ele tentou sorrir, mas a tristeza ainda tava lá, pesando.
- Obrigado, Joaquim. Por não desistir de mim.
Eu segurei ele firme, dando um beijo no topo da cabeça dele.
- Nunca vou desistir d'ocê, Gabriel. Nunca.
E com isso, a gente começou a juntar o que dava. O recomeço era incerto, mas naquele momento, a gente só precisava de uma chance. E a Cristiane podia ser o começo disso tudo.
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