Capítulo 13: Purê de Batata e Uísque.
Na segunda-feira de manhã, me despedi do meu pai mais uma vez, tentando ignorar a expressão de desaprovação que ele exibia. O sermão foi mais curto que o da última vez, mas a mensagem era a mesma: eu precisava "crescer, amadurecer e assumir a responsabilidade pela minha própria vida". Suspirei, acenando, e prometi que estava dando o meu melhor, o que, na maior parte do tempo, eu também tentava acreditar. Mas, agora, a ideia de voltar para a fazenda parecia mais um alívio do que uma obrigação. Com o último olhar do meu pai, saí da casa e joguei a mochila no carro, ansioso para pegar a estrada e esquecer as cobranças dele - ao menos por um tempo.
A viagem de volta para Itauçu passou mais rápido do que eu esperava. Naquele começo de semana, o movimento nas estradas era menor, o que permitia que eu acelerasse um pouco mais, e o vento no meu rosto tinha cheiro de saudade.
O céu estava limpo, o sol a pino, e eu sentia uma leve ansiedade aumentando à medida que me aproximava do destino. Em algum ponto, parei em uma barraca à beira da estrada, um daqueles lugares simples, mas cheio de produtos frescos. Era o tipo de coisa que, até pouco tempo, eu teria ignorado. Mas algo ali, talvez o cheiro de pão caseiro ou a simplicidade dos produtos expostos, me fez parar. Resolvi pegar dois tabletes de requeijão moreninho e um pedaço de doce de leite para levar comigo - era a cara do Joaquim. Ele gostava dessas coisas simples, do tipo que parecia saído direto de uma roça. E, de algum jeito, só a ideia de ver a cara dele ao receber aquilo me fez sorrir.
Cheguei à fazenda mais rápido do que imaginava, sentindo um nervosismo estranho enquanto estacionava. Assim que desci do carro, avistei Joaquim próximo ao galpão, o chapéu empurrado para trás enquanto ele carregava um saco de ração com a facilidade de quem faz aquilo todos os dias. Antes que eu me desse conta, meus pés já seguiam na direção dele, o coração batendo um pouco mais rápido.
- Joaquim! - chamei, e ele se virou para me encarar, franzindo a testa como se estivesse surpreso por me ver tão cedo.
Num impulso, avancei e o abracei, sentindo a rigidez do corpo dele se desfazer um pouco. O cheiro de suor, misturado ao perfume amadeirado que ele usava, me fez fechar os olhos por um segundo. Só me dei conta do que estava fazendo quando ele começou a mexer os ombros, meio sem jeito.
- Ué, menino... o que é isso? - murmurou, dando uma risada abafada.
Afastei-me depressa, sentindo meu rosto esquentar enquanto tentava disfarçar o embaraço.
- É... desculpa - falei, esfregando a nuca. - Só senti falta da fazenda, acho.
Ele me olhou com uma sobrancelha levantada, mas não disse nada. Quando ofereci para ele a sacola no meu braço, o mais velho apenas estendeu a mão para pegar o que eu comprara.
- Trouxe isso pra você - comentei, tentando não parecer sentimental demais.
- Bom saber que aprendeu a parar em barraca de estrada. Quem sabe não tá tomando jeito? - provocou, mas havia um brilho nos olhos dele que indicava que estava feliz com o presente. Sorri sem perceber.
XXX
Mais tarde, o sol já se punha quando Joaquim e eu acabamos nos encontrando sozinhos no campo. Eu acompanhava o ritmo dele com enxada, que estava mais lento do que o habitual. Depois de um tempo de silêncio, tentei puxar assunto ao deitar mais um punhado de mato na terra, curioso para saber mais sobre o homem que parecia ser uma mistura de enigmas e simplicidade.
- E então, Joaquim... você sempre trabalhou com isso? Fazendo serviços em fazenda e tudo mais?
Ele riu, jogando uma pedra suja longe, os olhos castanho claro fixos no horizonte.
- Desde que me entendo por gente, sim. Cresci no cabo da enxada - comentou, com um leve sorriso de canto.
Aos poucos, Joaquim foi falando sobre seu passado. O pai dele morreu cedo, e a mãe, que cuidava dele e de mais seis filhos, fazia o possível para criar todos sozinha. Joaquim era o caçula, e, desde muito pequeno, ajudava a mãe e as irmãs com o serviço doméstico nas fazendas onde a família trabalhava. Quando fez onze anos, deixou de lado as vassouras e panelas e passou a segurar a enxada ao lado dos irmãos. Fiquei imaginando o quanto a diferença entre nós era ingrata, enquanto aos onze eu ganhava carrinhos aos montes e brincava na piscina dias inteiros, Joaquim já se encontrava embaixo desse sol quente, trabalhando por uma simples refeição. Senti um aperto no coração.
- E aí, depois que minha mãe morreu, meus irmãos foram cada um pra um canto do país - continuou, a voz soando distante, como se estivesse revivendo aquelas lembranças. - Acabei ficando sozinho por aqui, me virando do jeito que dava.
- E nunca pensou em... sei lá, mudar de vida? - arrisquei, embora tivesse dificuldade em imaginar Joaquim em um ambiente diferente daquele. Ele pareceu refletir por um momento, como se a ideia fosse estranha.
- Acho que a vida é o que é, né? A gente aprende a se adaptar - respondeu, encolhendo os ombros. - Nunca fui de sonhar grande. Queria só trabalhar, ter meu canto e, se desse, uma vida mais sossegada. As coisas nem sempre saem como a gente quer.
Enquanto ele falava, senti uma ponta de tristeza tomando conta de mim. Havia uma simplicidade nas palavras dele, mas também uma resignação que me fazia querer pegar aquelas dores e suavizá-las de alguma forma. Eu me vi com os olhos ardendo, tentando segurar uma emoção que crescia, inexplicável, dentro de mim. Joaquim, notando meu silêncio, olhou para mim e sorriu, ligeiramente desconcertado.
- Eita, não me venha chorar, patrãozinho - brincou, dando um leve tapa no meu ombro. - Já tenho problema demais pra cuidar.
A risada dele ajudou a aliviar o nó na garganta que eu sentia. Joaquim sempre tinha esse efeito em mim, um jeito de transformar qualquer momento pesado em algo suportável. Soltei uma risada junto, meio sem jeito, e olhei para o céu tingido de laranja e roxo pelo pôr do sol. Era um daqueles fins de tarde bonitos demais para serem desperdiçados, e mesmo que estivéssemos no meio do campo, sentados num chão de terra e capim, parecia que nada poderia ser mais certo.
- Sabe, Joaquim, eu fico me perguntando como você aguenta tudo isso - confessei, ainda com os resquícios da emoção na voz. - Digo, todo esse peso. Parece que nada te derruba.
Ele deu de ombros, com aquela simplicidade que eu já conhecia bem.
- Acho que a gente aprende a se aguentar, Gabriel. Não é questão de não sentir nada, mas de fazer o que precisa ser feito - falou, sem qualquer sinal de arrependimento na voz.
Ficamos em silêncio por um momento, cada um perdido em seus próprios pensamentos. Eu tentava absorver cada detalhe da história que ele acabara de me contar, como se pudesse entender cada pedaço da vida dele apenas com o pouco que tinha revelado. Era estranho, mas, de repente, tudo em mim queria conhecê-lo mais a fundo, descobrir cada canto daquele homem misterioso, mesmo as partes que ele talvez quisesse esconder.
- É... você deve achar que eu sou um moleque mimado, né? - murmurei, meio sem pensar. As palavras escaparam antes que eu pudesse segurá-las, e, quando percebi, já era tarde demais para voltar atrás.
Ele virou o rosto para mim, e seus olhos brilharam com uma expressão de surpresa. Demorou alguns segundos até que ele falasse, e, quando o fez, a voz era tranquila, firme.
- Não penso mais assim, não. Você pode ser meio perdido às vezes, mas quem não é? - ele disse, dando uma risada baixa. - Cada um com sua história, Gabriel. O importante é a gente aprender a caminhar do nosso jeito, e eu tô vendo você se esforçar todo dia...
Eu fiquei ali, em silêncio, tentando entender o que ele dizia. Talvez ele estivesse certo; talvez eu só precisasse encontrar o meu próprio ritmo, aprender a lidar com as dificuldades sem me deixar abalar tanto. Olhei para ele, tentando enxergar o homem que estava além das palavras, além das histórias. Joaquim era forte e teimoso, mas também havia algo gentil e cuidadoso por baixo daquela dureza.
O sol já estava quase sumindo, e a noite começava a se espalhar pelo céu. Sem pensar muito, estendi minha mão para ele. Joaquim olhou para mim, surpreso, mas logo colocou a mão morna calejada sobre a minha, a envolvi num aperto de mão respeitoso. Não havia mais palavras para dizer, mas naquele momento parecia que não precisávamos delas.
Senti que talvez, só talvez, eu pudesse encontrar algo maior que eu mesmo naquela fazenda - e que esse algo pudesse incluir Joaquim.
Olhei para Joaquim, os olhos ainda um pouco úmidos pelo momento que tínhamos compartilhado, mas uma nova curiosidade crescendo dentro de mim. O homem já havia me surpreendido tantas vezes desde que cheguei, e cada revelação parecia desconstruir um pouco mais da imagem de "capataz durão" que eu tinha criado. Resolvi fazer graça para amenizar o clima.
- Joaquim... você sabe cozinhar mesmo? - perguntei, meio desconfiado. - Não parece, não.
Ele arqueou a sobrancelha grossa e fez uma expressão de indignação exagerada, soltando minha mão e cruzando os braços.
- E por que é que eu não pareceria saber cozinhar, hein? - perguntou, em um tom que fingia irritação, mas que escondia um toque de diversão. - Tá achando que só porque sou "brutamonte" não consigo fazer comida boa, é?
Eu dei de ombros, soltando uma risada desafiadora.
- Sei lá... Não consigo imaginar você em uma cozinha. - Olhei para ele com um sorriso malicioso. - Aposto que você nem sabe fazer um arroz direito.
Ele riu, balançando a cabeça, claramente se divertindo com a minha provocação.
- Ah, é? Então por que você não vem jantar comigo hoje, pra ver se eu sei ou não? - disse ele, com aquele tom que deixava claro que estava me desafiando a recusar.
A ideia me pegou de surpresa, e senti o rosto esquentar.
Um convite para jantar?
Sozinhos...?
Joaquim não parecia perceber, ou talvez essa fosse sua intenção, mas só a ideia já me deixava nervoso. Fiquei sem resposta por um segundo, o que, claro, não passou despercebido por ele.
- E aí? Vai amarelar? - provocou, com um sorriso de canto.
Não tive escolha a não ser aceitar, mesmo que estivesse me sentindo desconfortável e um tanto ansioso. Joaquim me lançou um olhar satisfeito, como se tivesse acabado de ganhar uma aposta silenciosa.
- Tá bom, tá bom... eu vou - falei, tentando soar indiferente, mas o sorriso dele deixava claro que ele sabia bem o efeito que aquele convite tinha em mim.
Eu sabia que seria apenas um jantar, mas havia algo nesse simples convite que fazia o coração disparar. Enquanto ele voltava o olhar para o horizonte, comecei a imaginar como seria a noite. Por trás daquela fachada rude e meio teimosa, Joaquim estava me deixando ver algo mais, e eu não tinha ideia de onde aquilo ia parar.
Saí do trabalho ansioso, tentando conter o nervosismo que borbulhava. Quase corri para minha casinha; a única coisa em que pensava era chegar logo e me arrumar. Parecia bobo, mas o pensamento de jantar com Joaquim era mais intenso do que qualquer coisa que já imaginei. Ao entrar, quase voei para o banheiro, querendo estar perfeito para o encontro.
Tomei um banho longo, esfregando o sabonete duas vezes, lavando o cabelo com cuidado, como se estivesse me preparando para algo além de um simples jantar. Depois, passei gel no cabelo, tentando mantê-lo num estilo entre casual e arrumado - embora ele insistisse em ficar mais rebelde. Tentei quatro combinações diferentes de roupas, desde as mais elegantes até as mais simples. Só depois de muito me olhar no espelho, percebi que estava exagerando. Optei por uma camisa básica e jeans, algo confortável, que não gritasse "desespero". E, para compensar, caprichei no perfume.
Quando finalmente cheguei à casa de Joaquim, fui recebido com uma visão surpreendente. A construção era um pouco maior que a minha e, ao redor, havia uma pequena selva de plantas espalhadas em vasos, cada uma mais verde e vibrante que a outra. Pequenas flores coloridas pipocavam nos cantos, enquanto cactos e suculentas criavam um contraste. Entre as flores, notei grandes rosas brancas, que abriam pétalas quase como se exibissem sua pureza. Parecia que, por onde se olhava, algo verde brotava, como se a natureza fosse extensão do próprio Joaquim. A horta não ficava atrás: pés de tomate robustos, alfaces verdinhas, e pimentões de cores fortes se erguiam no solo bem cuidado. Aquilo era mais que um jardim; era um oásis escondido, uma demonstração discreta do quanto ele tinha uma mão boa para a terra.
Quando finalmente me aproximei da porta, Joaquim estava lá, esperando. Tinha um sorriso pequeno e tímido, um misto de surpresa e de... algo mais, talvez. O calor que subiu no meu rosto me deixou envergonhado, mas não pude evitar. Ele me cumprimentou com aquele olhar penetrante, o suficiente para fazer meu estômago revirar.
Ao entrar, me vi cercado por um aconchego que jamais senti, nem mesmo na mansão do meu pai em Goiânia. A casa de Joaquim era simples, mas trazia aquele conforto de lar. Tapetes macios no chão, móveis de madeira escura, sólidos e robustos, e detalhes rústicos que davam uma sensação acolhedora. No meio disso, as paredes exibiam fotos antigas de família, uma em particular chamando minha atenção: Joaquim jovem, provavelmente com uns vinte e poucos anos, tinha o cabelo escuro na altura dos ombros. Naquela imagem, ele parecia diferente, o sorriso mais solto, os olhos brilhando com uma intensidade que eu não via com frequência. Meus olhos percorreram a foto, o corpo dele mais magro, mas já com ombros largos e aquele porte confiante. O calor voltou a subir, dessa vez em ondas pelo meu corpo inteiro, e senti um calor no rosto que dificilmente esconderia. Parecia que o ar na sala ficou mais pesado.
- Aceita um suco de tamarindo? - A voz grave dele vindo do outro cômodo cortou meus pensamentos e quase me fez pular.
- Ah, claro! - consegui responder, com a boca seca. Ele trouxe o copo gelado e uma tigela de biscoito de polvilho.
Acomodado no sofá, tentei relaxar, mas meus olhos continuavam a explorar o ambiente. No canto da sala, uma caixa cheia de novelos de barbante de várias cores chamou minha atenção. A curiosidade me venceu, e olhei para Joaquim, que tentava ignorar minha descoberta.
- Ué, Joaquim... você faz crochê? - provoquei, segurando um sorriso.
Ele ficou sem graça na hora, o rosto assumindo um tom rosado.
- Eu? Crochê? Que isso, moleque... isso aí é só... coisa velha. - Tentou disfarçar com rispidez, mas a desculpa saiu tão ruim que me deixou ainda mais intrigado. Ele se levantou rápido, pegando a caixa e levando para o quarto. Voltou com o semblante emburrado, mas um sorrisinho no canto da boca, como se achasse graça na minha provocação.
Sentei-me novamente, respirando fundo, tentando disfarçar o nervosismo. A cada segundo, a casa dele me parecia mais confortável, mais acolhedora, mais... ele. Fosse pelos móveis rústicos, pelos detalhes ou até pelas plantas que insistiam em crescer cheias de vida, estar ali era como entrar num pedaço do próprio Joaquim.
Com o copo de suco de tamarindo em mãos, dei um gole cauteloso, mas fui pego de surpresa pelo sabor refrescante e levemente azedo, perfeitamente equilibrado. A bebida escorregava na garganta, gelada, limpando qualquer tensão que ainda restava do dia. Ao lado, os biscoitos de polvilho eram leves, crocantes, dissolvendo-se na boca com uma textura quase viciante.
- Que suco bom... E os biscoitos então! - comentei, pegando mais um, meio sem cerimônia.
Joaquim soltou uma risadinha discreta, aparentemente satisfeito com a aprovação.
- Fico feliz que goste. Fui eu quem fez.
A informação me pegou desprevenido, e eu ergui as sobrancelhas, encarando-o com certa incredulidade.
- Você que fez? - perguntei, um pouco cético, olhando para ele dos pés à cabeça, aquele homem com mãos calejadas e expressão sempre durona.
- Acha que não sou capaz, é? - Ele fingiu uma indignação ofendida. - Agora vai ter que me ajudar no jantar.
A exigência foi tão repentina que eu não pude evitar uma risada, balançando a cabeça. Mesmo assim, me levantei, disposto a colaborar, embora minhas habilidades culinárias fossem quase nulas. Enquanto ele mexia em algumas panelas, cozinhando feijão e mexendo em uma travessa com temperos, me mandou ir buscar algumas coisas na horta.
- Traz tomate, pimenta amarela porque de nome você não conhece, cebolinha e coentro. Vou te ensinar a fazer uma janta decente hoje.
Saí, ainda rindo baixo, e fui em direção à horta. O jardim estava iluminado pela luz baixa que vinha da janela da cozinha, e as plantas pareciam mais vivas ainda. Logo encontrei os tomates, todos maduros e vermelhos, pendurados nos galhos, e as pimentas coloridas, com cebolinha e coentro crescendo verdejantes ao lado. Não sabia se era o jeito de Joaquim cuidar ou a qualidade da terra, mas era bonito ver tudo ali, próspero, numa fartura que eu nunca via nas lojas da cidade.
De volta à cozinha, entreguei tudo, e Joaquim começou a cortar os tomates com precisão, enquanto eu observava, tentando gravar os movimentos dele. Mas logo ele me empurrou uma faca e mandou cortar as cebolinhas.
- Devagar, senão acaba com um dedo a menos - ele brincou, jogando um sorriso de canto de boca que me fez sentir o estômago revirar. Joaquim estava mais relaxado essa noite, e eu não podia evitar sentir meu coração acelerar um pouco ao vê-lo assim, descontraído, no meio dos ingredientes, quase como se pertencesse àquele espaço tanto quanto as próprias plantas.
Tentei cortar os legumes como ele indicava, mas estava claro que minha habilidade não chegava nem perto. Em uma distração, acabei derrubando a faca e logo em seguida queimei a mão numa panela quente, quando fui tentar lavar o objeto caído. Gritei na hora, quase havia deixado um pedaço do couro pregado na panela de pressão que repousava na pia.
- Cuidado! - Joaquim pegou minha mão com firmeza, e o toque dele, quente e firme, me arrepiou. - Você tá tentando se machucar de propósito, é?
Ele me puxou até a pia, e antes que eu pudesse responder, colocou minha mão debaixo da água corrente, me segurando com delicadeza. O jeito dele, focado, me deixou quase sem palavras, e eu tentava desviar o olhar dele enquanto a água fria acalmava o ardor na pele.
- Pronto. Tá melhor? - Ele me olhou de canto, e o tom suave de voz quase me fez esquecer do que eu estava reclamando.
Assenti, gaguejando um agradecimento, e ele voltou ao trabalho, agora mais atento aos meus movimentos desajeitados.
- Agora deixa que eu cuido do resto, antes que você derrube a cozinha toda - ele provocou, me entregando um garfo para mexer o purê de batatas enquanto ele fritava pedaços de batata-doce. A comida toda parecia sair das mãos dele de forma natural, como se ele já soubesse o ponto exato de tudo. O cheiro de costelinha de porco assada misturava-se com o aroma do feijão cozido e a manteiga derretida do purê, criando uma combinação tentadora que parecia quase festiva.
Quando finalmente nos sentamos, a mesa estava posta com a costelinha de porco suculenta, o purê de batatas cremoso, o arroz soltinho, a salada fresca e colorida, o feijão quente com pimenta e as batatas-doces crocantes. Até havia vinho para acompanhar. Joaquim pôs meu prato e o dele, e eu percebi que ele não só era um excelente cozinheiro, mas também tinha um carinho incomum pela comida, quase como se cada prato fosse uma obra que ele entregava com orgulho.
- Tá, não vou mentir... Você é "O Cara" na cozinha, quase um masterchef. Nunca comi nada tão bom em qualquer restaurante de Goiânia. - comentei, meio sincero, meio provocador.
Ele soltou uma risada leve, quase envergonhada, e levantou o copo para brindar.
- Talvez você só não tenha conhecido pessoas que realmente saibam aproveitar a simplicidade.
Brindamos, e por um momento, enquanto bebíamos o suco e experimentávamos a comida, o silêncio foi confortável, cheio de uma conexão silenciosa.
O primeiro pedaço de costelinha praticamente derretia na boca, e o tempero de Joaquim era tão bom que me peguei esquecendo de qualquer contenção. Estava ali, à vontade, comendo mais do que o normal, sem me importar com as pequenas provocações de Joaquim sobre o meu apetite crescente. O purê de batatas estava suave e bem cremoso, o feijão perfeito e apimentado na medida certa, e a salada tinha o frescor exato para balancear os sabores mais fortes do prato. No final das contas, eu estava surpreso - não só com a habilidade culinária de Joaquim, mas com o quanto me sentia bem em sua companhia, como se aquele fosse o lugar certo para eu estar.
Quando terminamos de comer, ele me chamou para a sala, oferecendo um copo de uísque. A bebida descia quente pela garganta, e aos poucos, o calor do álcool misturava-se com o clima já descontraído. Tomamos o primeiro gole em silêncio, mas depois do décimo gole, eu já sentia o efeito leve do uísque relaxando os ombros, me deixando solto. Era como se, entre a comida e o clima da casa, qualquer tensão do dia tivesse desaparecido.
- Você faz mais do que eu imaginava, Joaquim. Até cozinha bem demais... Sabe que eu nem esperava gostar tanto - comentei, sorrindo, sentindo a língua solta.
Ele apenas riu, o canto da boca se erguendo com aquele sorriso torto que me deixava intrigado.
- Achei que fosse dar um jeito de reclamar, mas já vi que gostou mesmo - ele brincou, tomando outro gole do uísque.
O álcool já subia à cabeça, e as palavras saíam fáceis demais, sem filtro. Me recostei no sofá, observando Joaquim de canto, e me peguei encarando o jeito como ele segurava o copo, o formato das mãos fortes e a linha da mandíbula tensa, como se tentasse se manter contido. O jeito dele era sério, mas percebi que, quando ficava relaxado, havia uma elegância suave nos movimentos dele que eu nunca tinha notado.
- Sabe, você... é mais interessante do que aparenta - murmurei, o sorriso brincando nos meus lábios enquanto ele me olhava, claramente surpreso com o comentário.
- É o uísque falando ou é você mesmo? - ele perguntou, divertido, mas com os olhos fixos nos meus, tentando decifrar.
- Talvez os dois - respondi, tomando outro gole e inclinando-me para ele, sem medo de parecer ousado demais. O calor no ambiente parecia aumentar a cada segundo, e a proximidade dele me fazia querer testar os limites daquela noite.
O silêncio entre nós se prolongou por um instante, mas o olhar de Joaquim era intenso, como se tentasse ver além do que eu deixava escapar. Ele desviou o olhar, umedecendo os lábios com a ponta da língua, mas o gesto quase inconsciente só intensificou a minha vontade.
- Acho que devia ir devagar com o uísque, ou vai acabar falando coisas que vai se arrepender - ele comentou, com um tom mais baixo.
Aquela voz grave, acompanhada de um sorriso meio cínico, só fazia a provocação crescer, e, sem pensar muito, soltei:
- E quem disse que vou me arrepender?
O calor do uísque corria por minhas veias, e cada gole parecia me deixar mais solto, mais... quente. O ambiente ao redor parecia se fechar, deixando apenas Joaquim e o olhar penetrante que ele lançava de tempos em tempos. Senti meu corpo arrepiado, uma febre que já não vinha apenas do álcool, mas da presença dele ali, tão perto. Me aproximei mais no sofá, e o espaço entre nós parecia cada vez menor.
- Sabe, Joaquim... - comecei, minha voz ligeiramente arrastada, hesitante, mas com uma coragem impulsiva que o álcool dava - eu até já tive uns sonhos... bem quentes com você.
Ele arqueou uma sobrancelha, claramente surpreso, mas também curioso. O canto da sua boca se ergueu num sorriso contido, como se tentasse entender até onde eu iria com aquilo.
- Sonhos, é? - Ele me lançou um olhar intenso, a voz baixa e carregada de uma malícia que só aumentava minha ousadia, acho que o álcool falava por ele também. - E o que exatamente eu fazia nesses sonhos?
Engoli em seco, minha garganta seca e meu corpo inteiro em chamas. Estava ficando difícil manter a compostura, mas algo me dizia que era agora ou nunca.
- Bom... - Comecei, desviando o olhar por um instante antes de encará-lo de novo. - Você não fazia nada que já não quisesse fazer.
Ele ficou quieto, seus olhos avaliando cada detalhe do meu rosto, como se pudesse ver algo que eu tentava, em vão, esconder. A tensão crescia entre nós, cada segundo parecia se arrastar, cheio de expectativas.
Minha mão, quase sem perceber, foi parar no antebraço de Joaquim, os dedos explorando devagar cada linha, cada músculo esculpido pelo trabalho árduo de anos na fazenda. A textura da pele dele era áspera, marcada, mas eu nunca tinha sentido algo tão intrigante. Era como se toda a força e dureza dele estivessem concentradas ali, e eu não conseguia afastar minha mão e tinha certeza que algo estava ficando duro nos meus jeans.
- Cara... você tem uns braços fortes... - murmurei, minha voz embriagada saiu estranha, os olhos fixos na pele dele, que me queimava sob os dedos. - Tipo... de verdade.
Joaquim riu baixo, uma risada grave que reverberou no meu peito e me fez sentir algo que ia além do simples nervosismo. Eu estava grogue, mas sentia cada detalhe, cada suspiro que ele soltava, como se estivesse amplificado.
Sem pensar muito, deixei minha cabeça cair de leve no ombro dele, sentindo o calor do corpo ao meu lado. O cheiro familiar de suor leve misturado ao aroma de cigarro e algo só dele, algo que eu estava começando a associar a conforto, me invadiu e trouxe uma sensação estranha, mas acolhedora.
Ele ficou em silêncio, mas senti o músculo do ombro se tensionar sob minha cabeça. Se queria me afastar, não fez nenhum movimento, então fiquei ali, quase em paz, aproveitando o contato.
Tomei mais um longo gole do uísque, sentindo o líquido quente escorrer pela garganta, e o gosto forte, quase queimando, só pareceu acentuar o aperto que eu sentia no peito quase o tempo inteiro. De repente, todo o calor da bebida foi se transformando em algo diferente, mais sombrio, mais pesado, e, sem pensar, encostei meu rosto no ombro de Joaquim, tentando me esconder.
- Eu... - sussurrei - Eu tô tão... cansado, Joaquim. De tudo. Eu venho tentando me encaixar aqui, na fazenda... mas, parece que não importa o quanto eu tente, nada faz sentido.
Eu senti o ombro dele se mexer, um gesto provavelmente involuntário, mas não me afastei. Os pensamentos se atropelavam, as palavras saíam sem filtro, uma coisa levando a outra, e quando me dei conta, já estava falando de tudo.
- Na cidade, eu achava que tinha amigos, sabe? Mas eles... eles me deixaram pra trás. Eu não sei se fiz alguma coisa, se sou... insuficiente pra eles. - Minhas mãos tremiam levemente, e os olhos ardiam. - Na festa, riram de mim, me deixaram sozinho e passando mal. A gente cresceu junto, cara, mas agora parece que... só me veem como alguém pra fazer piada.
O peso de tudo que eu vinha segurando parecia me esmagar de uma vez só, e Joaquim permaneceu quieto, escutando. A presença dele, sólida e imperturbável, era como uma âncora que me impedia de me perder de vez.
- E aqui... - continuei, a voz falhando. - Eu me sinto tão... inútil. Parece que eu sou um peso morto, atrapalhando mais do que ajudando. Sei que não sou como você, nunca vou ser tão bom nisso tudo. Mas... Deus, como eu queria ser. Como eu queria que meu pai olhasse pra mim e... e sentisse orgulho, sabe?
Senti a mão dele tocar levemente meu ombro, como um gesto de conforto. Era um toque firme, e isso me fez soltar o ar em um suspiro pesado, o que só me deixou mais vulnerável. Eu estava desabando ali, com Joaquim como único suporte, e não sabia se isso era bom ou ruim, mas precisava desse momento.
Ele puxou-me de leve, e de repente eu estava envolvido pelo abraço firme, um calor silencioso e acolhedor, que dizia tudo sem precisar de palavras.
- Ei, garoto... - a voz dele soou quase suave, o tom mais afetuoso do que eu imaginava ser possível. - Ninguém aqui é perfeito, sabe? Nem eu. Você ainda vai encontrar seu espaço, sua utilidade. E o que aconteceu na cidade... você vai ver, um dia, que quem te deixa de lado não merece o que você tem pra dar.
Seus braços apertaram um pouco mais ao meu redor, e eu me entreguei ao conforto, as palavras dele caindo como um bálsamo para a dor que eu nem sabia que carregava tão fundo. O silêncio que se seguiu foi como um alívio, e, por um instante, fiquei ali, sentindo a segurança daquele abraço e imaginando, talvez pela primeira vez, que alguém realmente me entendia.
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