Capítulo 3 - 12 de Junho de 2014
Um tiro ricocheteou perto da porta onde Duda havia se jogado no carro.
— Vai! — ela gritou, apontando sua palma da mão bem perto da cabeça do motorista, que a obedeceu imediatamente.
O pneu do carro patinou na rua, fazendo um grande barulho. O cheiro de borracha queimada invadiu as narinas de Duda, antes do empuxo a jogar contra o banco do passageiro, e o carro disparar nas ruelas daquele bairro residencial. O dia estava quente. O homem dirigia com um foco absurdo, ziguezagueando entre os carros à sua frente; Duda o mandou ir mais devagar pois não pareciam estar sendo seguidos.
— Carlos, que merda é essa?! — a mulher do banco da frente o olhou com olhos arregalados. O homem não respondeu, estava em transe. Seus olhos prateados brilhavam — Pelo amor de Deus, Carlos, me responde! — ela chorava.
Duda não entendia bem o porquê dele não responder, suas ordens não deixavam alguém tão focado assim, normalmente. Porém, ninguém normalmente atirava pessoas através de parques inteiros. Este homem tinha algo, algum poder, definitivamente.
— Quem são vocês? — Duda perguntou, esperando ter se encontrado com mais um casal de superpoderosos.
A mulher a olhou como se tivesse sido ofendida.
— Eu que pergunto isso! — ela gritou. — O que você fez com ele? O que tá acontecendo?
A conversa, no entanto, foi interrompida por um tiro resvalando no retrovisor do carro onde estavam. Duda olhou para trás, e viu as sirenes de dois carros de polícia perseguindo-os. Droga.
— Ai, meu Deus! — a mulher exprimiu, com terror. Duda quase se sentiu mal por ela.
— Calma, Gisele. — o homem disse calmamente. Carlos, ainda com seus olhos brilhando, engatou a segunda marcha e virou o carro bruscamente, se enfiando na frente dos carros que vinham no outro sentido da via de mão-dupla, e, segundos depois, jogando o carro de um lado para o outro para se desviar na contra-mão, Carlos girou o volante com tudo e subiu em uma rua íngreme e estreita. — Aqueles homens, quem são eles? — Duda percebeu que ele estava perguntando para ela, bizarramente calmo.
— Eu... Eu não sei. — ela limpou seus olhos que lacrimejavam, percebendo só então o quanto estava assustada. Segurou firmemente em sua arma e a levantou, tomando cuidado para não apontar para ninguém.
Gisele olhou para aquilo e gritou.
— Ai, meu Deus! Carlos! Meu Deus — ela olhou assustada para Duda.
A garota mordeu os lábios, levemente irritada; decidiu ordená-la dormir. Uma ordem um pouco mais difícil, mas anos na rua a fez ficar bem esperta e preparada. Gisele se acalmou quase que instantaneamente, e dormiu, segundos depois.
— Nossa, isso não deve ser bom pra pessoa... — olhou para Gisele dormindo e suspirou.
Outro tiro, dessa vez batendo na lataria do carro. Duda sabia que policiais comuns nunca atiraram indiscriminadamente em um bairro residencial como esse, então... Ou eles estavam realmente afins de capturar ela, ou essas balas são de alguma forma diferentes. Não importava, na verdade. Ela não podia ser capturada, não queria se sujeitar ao que quer que seja que aquele homem a havia oferecido.
Abriu a janela do carro, pegou sua pistola e tentou se segurar enquanto mirava na direção das viaturas que a perseguiam. Carlos acelerava, dirigindo como se tivesse reflexos e fôlego sobre humanos, Duda não tinha dúvida disso. Agora, para uma simples garota como ela, mirar aquilo e atirar, e ainda por cima se segurar no carro em movimento, se provou uma tarefa muito mais difícil do que estava esperando. Atirou uma vez, acertando a cúpula de plástico que cobria a sirene de um dos carros; nada que danificasse ela, um prejuízo puramente estético. Duda se perguntou como as perseguições em filmes são tão diferentes das da vida real.
Entrou de volta no carro e resolveu confiar puramente no motorista, que sozinho já estava dando conta; ela sentiu um misto de vergonha e medo, não era muito fã da ideia de delegar sua própria segurança para outra pessoa, mas aquele homem, Carlos, parecia com um herói de filme de ação naquele momento, dirigindo como se tivesse anos de experiência em fugas da polícia. O carro derrapava, e a garota conseguia ver o rastro de fumaça deixada pelo pneu, cobrindo as viaturas que ainda conseguiam persegui-los. Quando a distância diminuiu, Duda teve uma ideia que a daria mais conforto.
— Carlos, mantenha mais ou menos assim. — ela abriu a janela de novo, mas, ao invés de apontar a pistola, apontou algo muito mais efetivo.
Pôs-se metade do corpo para fora, com os dois braços apontados para os carros. Suas palmas das mãos, transmitindo uma ordem simples. "Gire o volante". Ela não precisava mandar isso para todos, apenas para o motorista da viatura mais próxima. E, após um tempo, tempo demais em uma situação como aquela, seu poder conseguiu seguir em frente e atingir o piloto em cheio. O pneu da viatura derrapou num som estridente e alto, quando o motorista girou o volante e o carro capotou uma, duas, três vezes, obstruindo o caminho das que vinham atrás, num grande engavetamento. Duda ficou boquiaberta e riu, surpresa pelo tamanho da destruição que causou. Se pôs para dentro do carro e suspirou, largando seu corpo no estofado desconfortável daquele carro velho que havia sido completamente maltratado naquela tarde.
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Depois de uma pequena viagem que durou cerca de uma hora, Carlos parou o carro dentro de uma garagem, num cortiço simples onde ele e mais duas famílias moravam. Seus olhos brilhavam prateados quando ele pegou Gisele no colo e a levou para sua sala como se estivesse levando uma folha de papel em suas mãos. Duda correu para dentro e ligou a televisão.
— Isso!!! — ela ligou a TV no momento exato em que o Brasil marcava seu segundo gol contra a Croácia. — Caramba, 2x1!!!
Ela estava super animada enquanto Carlos, ainda calmo, deitava Gisele desmaiada no sofá e sentava em uma poltrona velha ao lado, que ficava de frente para a pequena TV. Era uma casa bem simples, um bocado escura, com poucas janelas; o quintal e a garagem eram compartilhados, e eles subiram umas escadas estreitas para chegar no pequeno sobrado onde moravam. Os olhos prateados do rapaz se tornaram castanhos subitamente...
— Meu Deus! — ele gritou num súbito de surpresa e terror — O que foi isso?! — ele gritava e ria, do ponto de vista de Duda, ele estava prestes a ter um colapso nervoso. — Eu joguei aqueles caras, eu... Eu dirigi daquele jeito?!
Ele ficou olhando para as próprias mãos, rindo, desorientado. Duda não entendeu. Ele parecia surpreso, como se aquilo nunca tivesse acontecido antes. Ela havia despertado seus poderes aos 7 anos, e isso parecia um padrão; então, como diabos um adulto com aquele nível de força não tinha conhecimento disso?
Ele dirigiu seu olhar para Duda, e a garota pôde ver as engrenagens girando. Dessa vez ela não poderia só fugir de se apresentar como sempre fazia, ela estava curiosa demais sobre ele pra deixar passar a oportunidade. O homem parecia estar buscando um jeito de perguntar para Duda quem era ela, e de forma tímida, ele levantou a mão.
— Eu sou Duda, e tu? Carlos, né? — ela respondeu a própria pergunta com outra pergunta, e Carlos só balançou a cabeça, concordando. Ele parecia estar em conflito.
— Você... Ok, isso vai parecer maluco, mas você fez algo comigo?
E naquele momento, Duda percebeu que ainda estava com a camisa do Brasil, e o rosto pintado. O sangue subiu, estava nervosa por ter perdido o jogo no estádio. Estava tão perto, que se estendesse a mão, ela poderia tocar no estádio; e mesmo assim, lá estava ela, na casa de um estranho poderoso. "Mas, não era de todo ruim, afinal, vocês também viram como ele arremessou aqueles oficiais centenas de metros à frente, ou eu estou maluca?!", pensou Duda.
— Onde é o banheiro? — ela perguntou já andando e procurando — Ah, eu não fiz nada, não posso criar um poder assim, não.
O homem parecia exausto, quando se sentou no sofá, seu corpo apenas afundou, se acomodando. Ele não tinha cara de velho, era um jovem adulto, de uns 20 e poucos anos, cabelo com um corte bem padrão-escritório, castanho, olhos castanhos e pele branca, manchada levemente com marcas de acne na adolescência, e uma barba raspada. Este era Carlos, parecia um menino de 15 anos, mas velho, Duda lembrou de seu antigo colega de classe, que havia duvidado de sua sanidade quando o professor o respondeu, no dia letivo em que ela fugiu de casa.
Duda abriu uma porta, dando de cara com o quarto do rapaz.
— Meu Deus! — ela exclamou, vendo todos os posters da Marvel e DC que o rapaz tinha espalhado pelo quarto. — Tinha que ser! Eca. — ela riu.
O quarto era azul, por baixo dos diversos posters, mas seus móveis ainda estavam desorganizados; caixas de papelão no canto, e uma cama de casal desproporcional para o tamanho do cômodo, com cobertores desdobrados como quem havia acordado atrasado.
Fechou imediatamente, girou o corpo e abriu uma outra porta, a do banheiro desta vez. A casa era menor que muitos apartamentos que já havia "alugado" anteriormente, mas tudo bem, resolveu não julgar.
— Se mudou a pouco tempo, foi? — Duda perguntou, limpando seu rosto da tinta verde e amarela que havia pintado.
Ouviu um grito na sala e correu para ver, ainda com o rosto molhado. Brasil 3, Croácia 1. Duda cerrou os punhos num misto de excitação e ódio, queria muito estar lá no estádio agora, gritando, como estaria com seu pai se...
— Sim, eu... Me mudei mês passado — ele respondeu devagar. Estava mais calmo agora, claramente. — Bem, você não fez nada comigo, mas fez com ela, não foi? — disse, apontando para Gisele.
— Ah! — Duda olhou para ela, dormindo no sofá — Sério, não se preocupa. Ela parecia que ia ter um ataque se não dormisse, então eu meio que... Mandei ela dormir? — ela explicou, dando de ombros, como quem não sabe bem o que dizer.
— Essa é a sua parada, você tipo, mandou a Gi dormir e o corpo dela só obedeceu? — ele perguntou, mais curioso do que qualquer outra coisa — Eu definitivamente ouvi você me pedir para te proteger daqueles caras, e bem, do nada, eu pulei aquela distância e arremessei eles longe e... Minha nossa.
Ele olhou para a palma das mãos por pelo menos um minuto, tanto tempo, que Duda não achou que ele fosse falar mais nada.
— Senti minhas mãos pegando fogo, meus músculos triplicando o peso, mas não doeu nada; na verdade, me senti bem pra caralho! — ele continuou, olhando para Duda e rindo.
Ela achou graça, ele claramente nunca havia feito aquilo.
— Sabe que... Esse tipo de coisa não surge assim do nada. — Duda explicou — Você sempre teve essa força, mas, por algum motivo, não sabia até hoje. — ele olhou para ela atentamente — Eu não sou a única com algum tipo de habilidade assim, mas, pelo menos pra mim, começou quando eu era criança. Você nunca arremessou algo com força sobre humana quando era criança?
Carlos pensou um pouquinho antes de falar, se levantou da poltrona e começou a andar em círculos pela sala. Ao fundo, na televisão, o jogo acabava com a vitória brasileira; Duda assistia atentamente.
— Na verdade... Talvez. Não sei. Mas volta a fita; você tá dizendo que é, tipo, algo comum?
— Bem, sei lá! Quem sabe? — ela sentou na poltrona onde ele estava sentado. — Hoje mais cedo, me encontrei com um cara que me pôs numa ilusão maluca, e me fez me sentir num vácuo foda, mal pude sentir meu próprio corpo! Eu escapei atirando no ombro dele, foi nessa que eu acabei trombando contigo.
Carlos a olhava boquiaberto.
— Seus olhos — Duda olhou atentamente para o rosto do homem que estava aturdido — Eles estavam prateados, e do nada voltaram a ficar castanhos. Assim, não sei o quanto disso é novidade pra ti, acho que tudo, mas, nunca vi esse tipo de mudança.
— Eu acordei hoje, fui trabalhar, fui liberado mais cedo por conta da copa, encontrei minha namorada para vermos o jogo juntos, mas ela pediu para voltarmos para casa, porque estava cansada... E agora isto.
Duda pensou no quanto ela remexeu com a vida daquele cara, imaginou o quanto ele estaria irritado com ela, por algum motivo. "Acho que, alguém com um poder daqueles, teria a vida remexida assim alguma hora".
— Carlos, eu...
— Hoje é o melhor dia da minha vida, sério! — seus olhos brilhavam, estava sendo sincero.
Duda não sabia o que responder, Carlos parecia ser realmente uma pessoa legal. Coisa rara. Ele se sentou no braço do sofá, de frente para Duda.
— Me conta, quem é você, Duda? — ele olhou para ela com um genuíno interesse. Duda ruborizou, seus braços começaram a se movimentar e ela começou a falar antes mesmo que percebesse.
Estava bastante empolgada, talvez mais do que se estivesse no estádio agora. Contou como fugiu de casa, seu relacionamento com seus poderes — Carlos perguntou todos os detalhes com curiosidade —, e Duda, pela primeira vez em sua vida, contou tudo o que descobrira sobre o assunto com ânimo. Falou sobre seus anos na rua, sobre como viveu muito bem, mas sempre alerta. Contou sobre as pessoas que conheceu em suas viagens, um caso rápido com uma garota que encontrou em Curitiba — o dia em que descobriu que não era a única com poderes, "essa garota conseguia colorir coisas só de tocar nelas!" —, disse. Contou também sobre o homem que encontrara hoje, o Vazio, que a dominou numa ilusão e fez os poderes dela serem inúteis pela primeira vez na vida. Contou por fim, o grande motivo de espera, a Copa do Mundo, que prometeu ver com seu pai bem de perto, antes dele morrer, motivo de estar tão chateada de não poder ter entrado no estádio hoje. Carlos a ouviu atentamente o tempo inteiro, e eles conversaram por mais de hora, foi o maior tempo que Duda passou falando nos últimos... Na verdade, na vida toda.
— Então, esse homem não vai parar de te perseguir, certo? — ele perguntou, quando Duda comentou sobre o Vazio — Esse Hospital, já ouvi falar de algo com esse símbolo que você comentou. Esse 'H' vermelho é a marca de uma escola muito prestigiada. Faz sentido ser uma fachada, imagina! Um lugar que se disfarça de bom e se esconde atrás dessa aparência de escola número 1, mas é um lugar onde o Governo ou sei lá, esconde pessoas com poderes para fazer sei lá o quê.
— Deixa de ser nerd, Carlos. — Duda respondeu, rindo. — Não deve ser nada disso, mas com certeza eu não quero ir lá descobrir. Já não me bastava minha mãe usar meus poderes pra conseguir coisas de graça, agora tenho que ir pra algum lugar, me tornar alguém como... Como aquele cara esquisito.
Um calafrio percorreu a espinha dela quando se lembrou do acontecimento, algo recorrente quando o assunto era o homem de sobretudo.
— Bem, para ser seguro então, eu trabalho perto do aeroporto. Te levo amanhã quando eu tiver indo trabalhar! — ele disse confiante, Duda se sentiu estranhamente mais segura. — Você dorme aqui hoje; a gente só precisa arranjar uma boa desculpa pra Gi.
— Se eu quiser, ela nem vai saber que eu estive aqui. — Duda revirou os olhos, não queria lidar com a mulher chorona de novo.
— Não... bem, não precisa, eu converso com ela; ela vai se amarrar.
Ele se debruçou sobre a mulher deitada, ela dormia como se não tivesse acabado de viver uma tarde maluca. Estava com uma camisa social branca e calça social preta, ela com certeza tinha um emprego mais sério — Duda conseguia ver um grande crachá no bolso de sua camisa social —; seu cabelo era preto e liso, e sua pele escura contrastava com a luz da lâmpada incandescente do sobrado. Carlos a acordou lentamente, acariciando seu cabelo.
— Você tá bem, Gi? — ele perguntou, com uma voz mais suave e calma.
A mulher olhou para ele fixamente por alguns segundos, antes de arregalar os olhos e "pular" deitada, de susto. Carlos a abraçou, acariciando suas costas, enquanto ela chorava.
— Seu idiota! O que foi aquilo, hein? Queria me matar do coração? O que foi que aconteceu, quem era aquela garota? — ela perguntou mil coisas com uma voz quebrada de choro, Duda só suspirou, já irritada.
Foi nesse momento que a mulher percebeu que a garota ainda estava ali, com o rosto levemente manchado de tinta verde e amarela, a olhando com um leve olhar de desprezo.
— O que você tá fazendo aqui, pirralha? Sai fora, antes que eu chame a polícia. — a mulher disse bem séria, segurando nos braços de Carlos.
— Calma amor, ela vai dormir aqui hoje, mas amanhã eu levo ela pro aeroporto. — ele explicou com uma voz compreensiva, sem se exaltar.
Gisele o olhou sem entender, parecia a ponto de explodir e xingar até a bisavó do rapaz. Duda levantou a palma da mão direita, e nesse momento, Gisele se calou. Ou, melhor dizendo, seu corpo obedeceu a ordem da menina, e se calou. Duda olhou para Carlos, como quem dissesse "Assim é mais fácil, viu?", mas libertou a mulher, quando Carlos a respondeu com um olhar reprovador.
— O... O que foi isso?
— Bem, temos muito o que explicar — Carlos respondeu, acomodando Gisele no sofá e se levantou, se aproximando de Duda.
Duda arfou, cerrando os lábios e se preparando para mais discussão.
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