•Um Recomeço•
[Gênero: Ação/Suspense]
[Atenção, o conto a seguir contém cenas de tortura física e psicológica.]
"A câimbra em meus braços, consequência de tanto golpear a cabeça dele com a picareta, já estava insuportável. Era preciso segurar cada vez mais forte, pois seu sangue fazia o cabo escorregar, e, por mais que ele já estivesse morto há meia hora e seu crânio não pudesse mais ser diferenciado de uma mera gosma cinzenta e avermelhada, eu não conseguia parar. Caso esteja comendo, peço desculpas por colocá-lo numa cena tão... Nojenta... Mas é que eu não sou mais capaz de fazer tal filtro, e vou te explicar o porquê..."
Era uma linda tarde ensolarada. O céu azul e o vento que soprava sereno, completavam o cenário perfeito. Com as duas mãos firmes no volante, dou mais uma olhada no retrovisor e vejo minhas duas meninas dormindo desajeitadas no banco traseiro. Já estávamos a algumas horas na estrada viajando rumo a nossa nova vida.
Passei por um divórcio conturbado e resolvi me mudar. Depois de muita procura, encontrei uma casa do meu agrado, isolada do mundo e das pessoas sujas que vivem nele. A partir de hoje somos só nós três, vamos recomeçar e eu sou capaz de tudo pela felicidade das minhas filhas: Natalie e Lauren.
Uma última esquina dobrada e entramos na estrada que nos levará até o novo imóvel. O caminho passa por dentro da floresta, pouco iluminada devido as grandes árvores. O único barulho que se ouve são dos pássaros cantando e dos galhos no chão sendo quebrados pelos pneus do carro. Um pouco mais adiante, já avisto o portão de madeira envelhecida.
- Certo, chegamos meninas. - Desligo o carro e tiro o cinto de segurança.
- Finalmente. - Natalie, a mais velha diz enquanto tira os fones de ouvido.
- Já chegamos mamãe? - Lauren, a caçula, pergunta enquanto esfrega os olhos com o dorso da mão, ainda sonolenta.
Desço do carro e caminho em direção ao portão. Uma corrente grossa e pesada que une as duas partes de madeira, está trancada por um cadeado grande. Retiro do bolso o molho de chaves e tento destrancar.
- Não acredito nisso. - Resmungo, balançando a chave enfiada no cadeado velho que parece oxidado e não quer abrir.
Enquanto insisto na tentativa frustrada de destrancar o portão, ouço um carro se aproximar e parar logo ao lado do meu. Um homem alto, aparentemente forte e vestindo um casaco marrom desce do veículo e caminha em minha direção.
- Olá meninas. - Ele cumprimenta as crianças que ainda estão no carro.
- Quem é você? - Natalie, petulante como sempre, pergunta em seguida.
- Sou Dylan. - Acenando para elas, se vira e para de frente ao portão segurando na corrente. - Deve estar emperrado - Ele bate o cadeado com força repetidas vezes na madeira e enfia novamente a chave, girando e forçando algumas vezes. Um clique e o cadeado se abre como mágica.
- Nossa... obrigada! - Exclamo surpresa.
- Sem problemas, é normal acontecer isso por aqui. As casas ficam muito tempo abandonadas. Você é a?
- Rose... E você provavelmente meu novo vizinho?
- E provavelmente o único. Já vivo aqui a um ano sozinho.
- Queria poder fazer isso também.
- O quê, viver? - Ele empurra o portão que range alto pela ferrugem das dobradiças e sorri para mim.
Entro de volta no carro e dou partida. Paro no portão e Dylan me entrega as chaves pela janela.
- Então senhoritas, sejam bem-vindas e aproveitem a casa nova. Pode deixar que eu tranco aqui pra vocês.
- Agradeço a ajuda. Obrigada Dylan.
- Por nada. Se cuidem...
Acelero o carro e entro no jardim do imóvel. É uma linda casa rústica, toda de madeira e cercada pela floresta. Um pouco mais a frente tem um lago enorme de águas serenas. As crianças descem e correm pelo gramado, enquanto eu retiro as malas.
- Meninas fiquem longe da água. - Digo um pouco mais alto, enquanto subo os degraus da varanda que dão acesso a porta de entrada.
A casa é maravilhosa por dentro. As paredes de madeira são contrastadas pela cor creme das cortinas. A mobília ainda está coberta por lençóis brancos que eu começo a retirar pacientemente, enquanto observo pela janela as crianças brincarem no balanço do quintal.
Depois de um tempo tirando a poeira dos móveis e ajeitando algumas coisas no lugar, decido tomar um banho. Ao entrar no banheiro, me apoio na pia e encaro o reflexo no espelho. Meu rosto está abatido e cansado devido as longas horas de viagem. Retiro então minhas roupas,sapatos e caminho pelo piso gelado até entrar no box. Giro lentamente o registro do chuveiro, deixando a água morna cair pelo meu corpo e fico ali alguns minutos desfrutando daquela sensação.
Após finalizar, me enrolo em uma toalha e caminho de volta para o quarto. Visto um jeans confortável, uma camiseta branca e caminho até a janela novamente para olhar as meninas. O balanço que a pouco elas estavam, agora só vai e vem, vazio.
- Meninas? - Desço as escadas rapidamente chamando por elas. - Meninas? - Passo pela cozinha e pela sala e nenhum sinal das duas por ali.
De repente um barulho oco na madeira, vindo da varanda faz com que eu estagne na sala. Olho em direção a porta e os barulhos aumentam. Ando lentamente pelo piso que range a cada passo dado e levo minha mão a maçaneta girando lentamente. Quando estava prestes a abrir a porta, sinto um empurrão que quase me fez cair.
- Preciso ir no banheiro mamãe. - Natalie passa por mim apressada, correndo em direção as escadas. Logo atrás, Lauren sobe os degraus da varanda, pulando com os dois pés.
Me apoio na porta e levo a mão no coração, suspirando aliviada. Subo novamente para o segundo andar, onde as duas já começam a esparramar os brinquedos da sala de jogos.
- Crianças, já está na hora do banho. Deixei os pijamas de vocês na cama, vistam e desçam, farei pizza para o jantar.
- Pizza!! - As duas comemoram em uníssono. As deixo ali e vou para a cozinha preparar tudo.
A noite estava fria lá fora. O vento soprava forte balançando as árvores e a luz da lua refletia na água do lago. Estamos sentadas no sofá próximo a lareira, enquanto conto uma história para as duas pequenas, elas escoram, uma de cada lado do meu corpo, sonolentas.
"Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde às três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz..."
(Pequeno Príncipe)
- Por hoje, chega meninas. Vamos subir... Já não dou conta mais de carregar as duas. - Fecho o livro me levantando, estendendo a mão para ambas; Subimos em direção ao quarto.
Elas se deitam e eu as cubro. Dou um beijo em suas testas e paro na porta sorrindo.
- Boa noite minhas princesas. - Apago a luz e saio.
- Mamãe... Mamãe...
Escuto a voz de Natalie. Abro os olhos lentamente tentando enxergar alguma coisa no escuro do quarto. De repente vejo seu rosto bem próximo do meu e dou um pulo com o susto.
- Tem alguma coisa errada com a Lauren.
- O que aconteceu? - Levanto num impulso me sentando na cama.
- Ela está na sala de brinquedos, mas não me responde.
Pego na mão de Natalie e caminhamos pela casa com as luzes ainda apagadas.
- Lauren? Querida?
Ela está sentada olhando para a janela sem fazer nenhum movimento. O lugar está parcialmente escuro, iluminado somente por uma lanterna que está no colo de Lauren.
- Filha, tá tudo...
Não consegui terminar a frase. Lauren se curva em direção ao chão e vomita sem parar. Corro até ela e seguro seus cabelos.
- Natalie, acende a luz do corredor, rápido. - Pego Lauren nos braços, que estava suando frio e corro em direção ao banheiro. Mal dá tempo de abrir a tampa do vaso sanitário e ela começa a vomitar novamente.
- Isso é bolo de chocolate? Natalie, onde vocês arrumaram bolo...? RESPONDA NATALIE!!
- Com o Dylan... Ele nos entregou dois cupcakes quando estávamos no balanço.
- Co-mo? O vizinho? E vocês comeram?
- Eu não comi mamãe, eu juro.
- Lauren querida, olhe pra mim. Você comeu o cupcake? - Pergunto para a caçula enquanto limpo seu rosto com um pano úmido. Ela acena com a cabeça que sim. - Tudo bem, venham comigo.
Caminho pelo corredor em direção ao quarto delas.
- Vocês duas fiquem aqui e não abram essa porta pra ninguém que não seja a mamãe. - Elas acenam concordando.
- Natalie, pegue essas toalhas e ajude sua irmã. Deixe que ela vomite no chão, em qualquer lugar, só não saiam daqui por nada. Tranque a porta querida, eu volto logo.
Vou até o quarto de jogos, pego a lanterna que estava com Lauren e desço em direção a porta da sala; Quando saio para fora, um arrepio percorre o meu corpo devido ao vento gélido da noite. Ando até o carro e abro a porta do motorista. Passo a mão pela ignição; Só então me recordo que tirei as chaves e guardei na mala.
Começo a caminhar em direção a entrada da casa, onde vimos o Dylan pela última vez; A noite está silenciosa e o único barulho que se ouve são dos meus pés pisoteado as folhas secas no chão.
Finalmente chego ao portão e jogo a luz da lanterna. Nesse instante o medo toma conta de mim. Pelo lado de fora, o carro do homem continua parado no mesmo lugar e as correntes estão presas ao cadeado, trancadas pelo lado de dentro. Em uma das estacas de madeira, rabiscos feitos com algum objeto pontiagudo, formavam as palavras: Ninguém Sai Daqui.
Começo a andar de costas com as duas mãos na boca incrédula.
- Ele ainda está aqui... Meninas... - Sussurro.
Me viro e saio correndo em direção a casa; Sinto a bile invadir minha garganta devido ao nervosismo. Subo na varanda correndo e abro a porta da sala bruscamente. Pulando de dois em dois degraus chego ao segundo andar e paro de frente ao quarto das crianças.
- Natalie pode abrir, é a mamãe. - Bato na porta repetidas vezes. Assim que ela abre, entro desesperada. - Venham, precisamos sair daqui.
- Eu não quero ir, estou com medo mamãe.
- Está tudo bem querida, mas temos que ir. - Digo pegando Lauren no colo e puxando Natalie em direção ao meu quarto. - Rápido filha, eu preciso pegar as chaves.
Descemos as escadas em direção ao carro. Abro a porta traseira e coloco as meninas sentadas, travando o cinto das duas rapidamente. Antes de entrar, vejo jogado no chão, ao lado da casa, uma picareta. Corro até lá, pego o objeto e volto para o veículo, jogando a ferramenta no banco do passageiro.
Dou partida e manobro rumo a saída. Deixo o motor ligado, e desço rapidamente para abrir o portão. O cadeado está mais uma vez emperrado e a chave simplesmente não gira.
- Merda! - Bato uma, duas, três vezes o cadeado na madeira, até que finalmente ele destranca.
- AHHHHH... - Grito alto empurrando o portão pesado com toda força que tenho. Volto para o carro e acelero.
Enquanto seguimos pela floresta, a todo instante olho no retrovisor. As meninas choram e se abraçam apavoradas. De repente uns solavancos no carro e uma luz vermelha piscando no painel chamam minha atenção.
- Não, não ... merda... merda - Piso no acelerador várias vezes que já não me responde mais. O carro começa a perder força e o ponteiro que marca o combustível para no último risco.
- Mamãe porque estamos parando? - Natalie pergunta entre soluços.
- Eu não sei - Grito assustada tentando dar partida, mas sem sucesso. - Droga. - Apoio a cabeça no volante, respirando fundo.
Desço do carro olhando em volta. Só então sinto o cheiro da gasolina vindo da estrada. A floresta está escura; Nada se ouve além do cricrilar constante dos grilos e o piado desordenado das corujas por entre as árvores. Vou em direção as meninas e abro a porta traseira.
- Fiquem aqui tá bom? A mamã... - Alguém agarra meus cabelos me fazendo cair. Levo as duas mãos na que me puxa, tentando amenizar a dor; Começo a me debater, enquanto sou arrastada pelas folhas secas no chão.
- Me solta!!! Socorro! - Começo a gritar desesperadamente. As meninas choram e chamam por mim repetidas vezes.
- Boa noite vizinha... Onde vocês estavam indo sem me avisar? - Dylan me joga sobre um amontoado de galhos, que se quebram debaixo de mim. - As meninas gostaram dos cupcakes? VOCÊS GOSTARAM PESTINHAS? - Ele grita em direção ao veículo onde as crianças estão.
- Fique longe delas seu monstro! - Tento me levantar, mas sou golpeada com um chute no estômago que tira todo o meu ar.
- Você acha que eu sou um monstro Rose? - Ele se agacha perto de mim, sussurrando baixo. Eu mal consigo abrir os olhos pela dor... O vejo retirar uma faca da cintura e passar lentamente a ponta pelo meu rosto, arrancando um filete de sangue. - Você não imagina o quão monstruoso eu sou.
Dylan se levanta e me dá chutes sem parar, acertando dessa vez minhas costelas que estralam a cada golpe. Grito e me encolho no chão tentando me proteger dos ataques, mas acabo perdendo a consciência.
Abro os olhos lentamente e com a visão ainda turva o vejo caminhar em direção as meninas. Sem um resquício de piedade, ele as arrasta para fora do carro e as deixa próximo a uma grande árvore.
- Sabe - O homem começa a dizer puxando uma corda que estava no chão - Eu nunca gostei de crianças. - Ele as empurra para o tronco, enrolando a corda ao redor delas. - Vocês são irritantes e mimadas. - Dylan continua falando e caminhando em círculos, amarrando Natalie e Lauren, que choram e se abraçam.
Mesmo com muita dor, começo a me arrastar por entre as folhagens, cravando meus dedos na terra fofa. Os galhos secos arranham minha pele, mas nada se compara a dor de imaginar, que ele possa fazer alguma coisa com as minhas filhas.
- Pode ficar quietinha aí Rose. Você não vai conseguir ir longe... - Ele diz agachado, de costas para mim, enquanto dá algum tipo de nó na corda. - Se eu acertei bem os chutes, te deixei pelo menos com umas três costelas quebradas.
Mas eu me arrasto... só me arrasto lentamente, enquanto lágrimas se misturam com a terra em meu rosto.
- Primeiro eu vou matar vocês pestinhas...
Continuo a me arrastar enquanto ele ameaça e amarra as meninas... Eu respiro fundo e dói, tudo dói. Franzo o cenho e mordo os lábios na tentativa de amenizar alguma coisa.
- E sua mamãe vai assistir...
Finalmente me aproximo e agarro uma pedra no chão, buscando apoio para me levantar. Mas dói... As pernas não respondem.
- Depois, eu vou ter uma conversinha com ela, afinal ela não é de se jog...
Acerto Dylan na cabeça e solto a pedra, que faz um barulho abafado ao se chocar com o chão. Meu peito sobe e desce com a respiração pesada enquanto olho o homem caído diante de mim. Pego a faca que está ao seu lado e corto rapidamente a corda, soltando as crianças.
Seguro no ombro de Natalie, e as levo para o carro. Elas entram, e se encolhem.
- FIQUEM AI. - Dou a volta e vou em direção a porta do passageiro. Abro e pego a picareta que estava sobre o banco.
Arrasto a ferramenta pelas folhas secas, enquanto caminho mancando e trêmula em direção ao corpo de Dylan, que está desacordado. Seguro firme o cabo de madeira com as duas mãos, erguendo os braços para cima.
- FECHEM OS OLHOS NATALIE E LAUREN, E SÓ ME ESCUTEM. A MAMÃE VAI CONTINUAR A HISTÓRIA DO JANTAR... - Falo alto para que elas me ouçam.
Meu semblante está tão frio quanto a noite, e meu rosto treme como os galhos das árvores. Desço os braços num impulso, acertando em cheio a cabeça do homem com a primeira estocada.
- SEMPRE HÁ UMA OUTRA CHANCE
O sangue espirra na minha cara enquanto grito a história para que as meninas não escutem o barulho dos golpes. Subo novamente os braços...
- UMA OUTRA AMIZADE, UM OUTRO AMOR.
Desço a picareta mais uma vez que fica presa no crânio de Dylan, me fazendo puxar mais forte para que ela se solte. Limpo a boca com o dorso da mão e volto a falar.
- UMA NOVA FORÇA
O cabo começa a escorregar. Levanto os braços uma última vez, respirando fundo. Acerto sua cabeça com tanta força, que preciso virar o rosto para me esquivar dos pingos de sangue que voam em minha direção.
- PARA TODO FIM, UM RECOMEÇO.
Solto a picareta no chão e suspiro cansada, enquanto meu corpo convulsiona entre soluços, lágrimas e sangue.
Fim...
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