•Memórias de Pripyat•
[Gênero: Drama]
"Não havia pássaros. As árvores agora sem vida, e a grama já não mais cuidada, completavam o cenário típico do abandono por ali. No parque, a roda gigante nunca usada, o balanço nunca usado, e o cheiro de tinta fresca, ainda marcavam a memória de Adam.
Nas ruas vários carros abandonados e empoeirados pelo tempo. No asfalto já não mais utilizado cresciam vários tipos de plantas secas. Alguns prédios e casas ainda estavam cobertos pelo plástico da quarentena, que mesmo envelhecido, ainda remetia lembranças de dias difíceis."
Pripyat, 25 de abril de 1986.
É uma linda sexta-feira de primavera.
Na cozinha, Adam, prepara o café da manhã para mais um dia de trabalho. Enquanto procura no armário alguns ingredientes que irá precisar, a tv ligada em cima do balcão transmite o noticiário local.
- Vamos meu amor, nós iremos nos atrasar. - Anna diz enquanto desce as escadas desajeitada, tentando pentear os cabelos do garotinho sonolento.
Ela adentra na cozinha carregando o pequeno Denys nos braços. O som inconfundível dos seus saltos se chocando contra o chão, fazem Adam olhar para trás e sorrir. Ela coloca o pequeno sentadinho a mesa e caminha em direção ao esposo, que está de costas, manejando cuidadosamente a frigideira no fogão enquanto prepara as blinis*.
- Bom dia querido. - Ela lhe abraça pela cintura apoiando a cabeça em suas costas.
- Bom dia meu amor. - Ele segura um de seus braços e gira o corpo lentamente, ficando de frente para Anna, dando um beijo carinhoso em seus lábios.
Ela se afasta e senta em uma cadeira ao lado do filho. Adam termina de retirar a última blini do fogo, desliga o fogão, caminha até a mesa e começa a servir o café.
- Está lembrada que hoje irei para Kiev querida? Volto depois de amanhã.
- Me lembro sim. Hoje trabalho somente o período da manhã, então irei aproveitar o resto da tarde para organizar algumas coisas em casa.
Assim que finalizam o café, Adam, pega sua mala que já está arrumada ao lado da escada, suas chaves e carteira que estavam em cima de uma mesinha ao lado da porta e se despede de sua esposa e filho, dando um beijo em cada. Entra no carro e sai em direção a Kiev, onde ficará por dois dias a trabalho.
Serão quase três horas exaustivas de viagem. Ele ajusta o cinto de segurança, e concentra sua atenção na estrada.
Anna por sua vez, termina de acomodar Denys no banco de trás de seu veículo e se prepara para irem à escola, onde ele estuda e ela trabalha como coordenadora.
*Blinis: versão russa de panquecas.
O resto do dia transcorreu normalmente. Adam já instalado em Kiev, passou o dia todo em reunião. E já Anna, após o almoço, voltou para casa com o filho do casal para cuidar de seus afazeres domésticos, enquanto o garotinho de cabelos loiros como o sol, brincava contente.
Já a noite, Adam volta para o hotel onde está instalado, e começa a revisar algumas papeladas importantes. Por volta de 23:00hrs ele finaliza o trabalho e acaba adormecendo.
Usina Nuclear de Chernobyl
26 de abril de 1986 - 01:20 hrs.
Pripyat dorme tranquilamente.
Não muito distante dali está localizada a Usina Nuclear de Chernobyl. Nada de muito extraordinário acontecia, com exceção de uma simulação programada para aquela noite. Os funcionários que cuidam do funcionamento e manutenção do reator 4, estão de prontidão para iniciar os testes no sistema de alimentação automática de combustível.
- Aguardando ordens senhor para dar início aos testes. - Um dos funcionários informa ao seu superior.
- Avgust, início autorizado!
Neste instante, o funcionário desativa os sistemas de segurança e os testes começam. Enquanto conversam, uma sequência de explosões dentro do reator se inicia e o chão da usina começa a tremer. Uma enorme tampa pesando toneladas explode e um barulho estrondoso faz os funcionários se jogarem no chão tapando os ouvidos. Uma quantidade imensa de vapor radioativo começa a jorrar, espalhando urânio e grafite por vários metros em volta da usina.
Kiev, 26 de abril de 1986 - 05:40 hrs.
Logo nas primeiras horas do dia, Adam se levanta, escova os dentes, faz a barba e resolve descer para tomar o café da manhã. Assim que chega no saguão do hotel, uma estranha movimentação de pessoas ao redor da televisão chama sua atenção.
Quando se aproxima, tenta focar no que está sendo noticiado e mesmo com um pouco de dificuldade, olha atentamente para a tv.
"Estamos sobrevoando agora uma enorme cratera na usina de Chernobyl. É um cenário chocante. O tamanho do estrago e a quantidade de fumaça é surreal. As primeiras notícias que temos, é que houve uma explosão durante a noite em um dos reatores. Ainda não se sabe o motivo e nem a gravidade da situação. Militares e bombeiros estão se deslocando neste exato momento para Pripyat."
Adam fica paralisado olhando para a tv, piscando repetidamente, e então se desespera. Sem pensar duas vezes, sobe as escadas, pulando de dois em dois degraus até chegar em seu quarto. As mãos tremiam e suavam tanto, que com grande dificuldade, consegue girar a chave na porta. Ele entra, e começa a juntar rapidamente o que vê pela frente. Joga tudo dentro da mala, e desce as escadas com a mesma rapidez que subiu.
Ele sai do hotel apressado, entra no carro, jogando a bolsa grande no banco traseiro, e percebe que toda cidade de Kiev se movimenta com certo desespero. Ele sai dirigindo pelas ruas e a cada esquina dobrada, pessoas correndo... Uma movimentação um tanto quanto incomum para um sábado de manhã.
Já na estrada principal, Adam é ultrapassado por diversos carros do corpo de bombeiros. O barulho constante e estridente das sirenes, fazem com que Adam se apavore cada vez mais. Serão quase três horas nessa angústia, até finalmente conseguir chegar em Pripyat e confirmar que sua família está bem.
O trânsito está caótico. Vários carros parados, buzinas e gente gritando para todo lado. Adam tenta manobrar para sair daquele engarrafamento, mas sem sucesso. Com certeza toda aquela gente ali, buscam notícias de Pripyat.
Após horas angustiantes na estrada, Adam chega em seu destino. Da entrada principal da cidade já não é mais possível seguir de carro. Ele abandona o veículo ali mesmo e sai correndo desesperado pelas ruas.
A cidade está um caos. Militares e bombeiros tentam, sem sucesso, acalmar a população. Vários ônibus do exército e escolares chegam a todo instante. Enquanto as pessoas correm buscando se protegerem de alguma maneira, jatos e mais jatos de água estão sendo jogados por todos os lados: na população, nas árvores e no gramado. Em alguns pontos da cidade, existem alto-falantes instalados, que a todo instante, repetidas vezes, ecoa o aviso de evacuação, transformando a pacata cidade de Pripyat em um ambiente de guerra.
"Atenção! Atenção! Caros amigos, devido a um acidente na usina nuclear de Chernobyl, a radioatividade alcançou níveis extremos. Membros do exército e da polícia estão tomando as medidas necessárias. Neste instante, para garantir a absoluta segurança da população e em especial das crianças, é necessária a evacuação temporária de todos os moradores para pontos próximos a cidade de Kiev. Por esta razão, ônibus escolares e militares escoltados, estarão fazendo o transporte da população. Se desloquem rapidamente para os pontos de encontro. Por favor, mantenham a calma e a organização."
Adam corre o quanto pode, já quase sem fôlego e cansado. Ele vira uma última esquina e entra na rua da sua casa. O cenário é aterrorizante... Há carros de polícia e jipes do exército em cada canto da cidade, pessoas saindo de suas casas e deixando tudo para trás.
Um pouco mais adiante, finalmente, ele chega em sua residência. A porta estava entreaberta e em questão de segundos ele entra desesperado.
- Anna? - Ele grita, passando pela sala e indo em direção a cozinha. - Anna?
- Denys? - Continua gritando, agora já subindo as escadas, indo para o segundo andar. - Anna, Denys?
Ele vasculha cada metro quadrado da casa, e tudo que encontra são portas e armários abertos. Mas nada foi levado, absolutamente nada.
Ele sai para a parte externa e então nota que o carro de Anna não está na garagem. Resolve ir até um dos pontos onde estão sendo feitas as evacuações.
Adam já exausto, avista de longe o aglomerado de pessoas em volta dos ônibus. Os militares tentam organizar uma fila, que naquela altura do campeonato, se tornou impossível, em uma cidade com mais de quarenta e cinco mil habitantes.
Ele começa a correr novamente, e quando chega no meio da multidão, vai se adentrando com dificuldade, em meio aquela massa de gente.
- Com licença, por favor. - Empurrões para todos os lados.
- Com licença! - Ele diz mais uma vez. Mulheres e crianças chorando copiosamente, e vários homens já enfurecidos.
Com muito esforço ele consegue entrar no primeiro ônibus, desviando das pessoas em pé com dificuldade, analisa cada espaço, em busca de Anna e Denys, mas eles não estão ali. Nem no primeiro, nem no segundo, nem no terceiro ônibus. Não há sinal deles na cidade... Adam, já esgotado, se senta na calçada, e coloca as duas mãos no rosto.
Após descansar alguns minutos, e colocar a cabeça no lugar, ele caminha até um oficial que tenta organizar um pequeno grupo de crianças.
- Bom dia senhor. - Adam o cumprimenta. - O senhor poderia por gentileza me dizer para onde estão sendo levadas as pessoas aqui da cidade?
- Neste primeiro momento para Kiev, algumas para abrigos outras direto para hospitais.
- Hospitais?
- Isso meu jovem, já tem muita gente passando mal, e está se tornando algo assustador. As pessoas aqui foram expostas a níveis altíssimos de radiação.
- E quantos ônibus já saíram?
- Acho que até agora três, com prioridade, mulheres e crianças.
Foi como se o mundo de Adam tivesse desmoronado em baixo de seus pés. Em segundos, ele se vira e corre novamente em direção a entrada da cidade onde deixou seu carro.
Assim que o encontra, ele entra, dá partida e sai cantando pneu pelas ruas, acelerando o máximo possível, em direção a Kiev.
Depois de mais algumas horas na estrada, Adam chega a Kiev e vai diretamente para o hospital da cidade. De longe, já avista a grande massa de pessoas, polícia e jornalistas.
Ele passa por todos. O desespero e a adrenalina já haviam o cegado para qualquer outro tipo de movimentação. Caminha a passos rápidos em direção a recepção do hospital.
-Boa tarde senhorita, eu gostaria de algumas informações. Estou procurando minha esposa e filho.
-Senhor, todos aqui estão procurando alguém. Não temos como passar informações neste momento. Mais da metade dessas pessoas estão sem documentos.
-Eu só preciso sab...
- Com licença senhor - Ela o interrompe saindo de trás do balcão. - Eu preciso ir até a enfermaria. Me desculpe, não posso ajudá-lo.
Haviam pessoas em todos os corredores: Macas, cadeiras, bancos, chão... Adam olhou ao redor, e tudo ali era desesperador. Pessoas vomitando, algumas desmaiadas pelo pânico, crianças chorando, e pais angustiados assim como ele.
O jovem vai caminhando, olhando com atenção cada possível lugar que Anna e Denys possam estar. De repente ele para e fica estagnado... Em uma sala com uma grande janela ele vê sua esposa e filho, juntamente com mais duas senhoras, isolados e plugados a vários aparelhos. Ele apoia as duas mãos no vidro e já não consegue mais se segurar. Encosta a testa na superfície gelada e lágrimas escorrem por seu rosto instantaneamente...
Prypiat, 29 de abril de 2016.
É uma manhã fria e vazia em Pripyat.
- Você está pronto Adam? - A jornalista pergunta.
- Quando quiser.
Ela então aperta o botão do gravador, e coloca o pequeno aparelho em cima da prancheta em seu colo.
Eles estão sentados em um banco de madeira já envelhecido no parque de diversões abandonado, tomado por folhas e vegetação. Adam se ajeita, cruza as mãos sobre os joelhos e fecha os olhos dando um longo suspiro. Como se aquele gesto lhe trouxesse momentos, que ele queria lembrar (ou talvez esquecer)...
"Foi a trinta anos atrás... E eu ainda me lembro de planejarmos vir na inauguração do parque, que aconteceria cinco dias depois da data do acidente. Ainda me lembro do cheiro da tinta fresca, da visão que tínhamos da roda gigante pela janela da nossa casa. Não tem um minuto do meu dia que eu não pense em Anna e Denys, no que eles poderiam ter vivido, e no que estaríamos fazendo juntos..."
Fim...
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