Capítulo 37
Rebeca
Minha cabeça estava processando tudo a mil por hora. Um puta computador não trabalharia tão rápido... e uma lesma ganharia uma corrida comigo.
Eu parecia uma estátua.
Eu não disse meu sobrenome, disse? Não.
Ele matou um homem na minha porta? Sim e friamente.
Três homens apareceram do nada, e como eu dirigi, não me lembro de termos sido seguidos? Exatamente e mataram os outros.
Eu pensei que iria hiperventilar, cair dura no chão por causa de um infarto... nada. Eu continuava parada, só meus olhos se mexiam.
Lucca caminhou por dentro da minha casa, observando cada móvel, adorno. Tudo bem que não tinha muito o que ver, mas ele estava atento a cada detalhe.
― Foi Matteo que te deu? ― pergunta, pegando meu ursinho que sempre fica deitado na cama.
Confirmo com a cabeça somente, num movimento sutil, quase imperceptível.
― Mão de vaca ― diz e eu não contradigo. Agora, ele poderia xingar Matteo de tudo quanto fosse nome que eu concordaria. ― Tem algum doce feito por você? ― Sério que o cara queria comer doce depois daquela carnificina lá fora...?
A propósito, sequer abrir a janela de casa. A ideia de ver os corpos sendo levados...
Ele não chamaria IML? Polícia? Nada!
― Rebeca! ― Ele acende a luz da minha casa para clarear já que nós entramos e eu, em estado de choque, não consigo me mexer, e já estava ficando escuro. ― Tem doce?
Olho para a geladeira e ele entende.
Sempre deixo uma bandeja de trufas para Cat já que quase todo domingo, ela passa a manhã ou a tarde comigo.
Sinto muito, Cat.
Ele abre a geladeira como se estivesse na casa dele, pega a bandeja e traz para a mesa, puxando um banco e sentando-se.
― Isso é bom demais. ― Fala, depois de jogar uma trufa na boca. ― Matteo já deve ter lhe dito o quanto eu adoro isso que você faz, né?
Sério que ele estava falando de doces depois de tudo?
― O gato comeu sua língua? ― Nego. ― Rebeca, eu sei que o que você viu foi algo que não deve estar bem acostumada, se bem que você morava em uma comunidade lá no Rio de Janeiro, e tenho certeza de que lá morre gente.
Você não disse que morava em uma comunidade.
― Como sabe onde eu morava? ― Ele abre um sorriso como se aquilo fosse natural.
― Linda, eu sei mais sobre você do que imagina. Agora, puxa uma cadeira e senta aí pra gente conversar. ― Eu não conseguia me mexer. ― Não vou te fazer mal, Rebeca.
Difícil acreditar, se bem que se ele quisesse me machucar, ele teve muito tempo.
― O que você quer saber? ― o questiono sem sair do lugar. Não sentaria perto dele nem fodendo.
― Tudo que não tem registro. ― Como? ― Eu sei tudo sobre você, desde o dia que nasceu, onde estudou, com quem morava, até sua chegada aqui na Itália. E aí... nada. Você é um fantasma que caiu de paraquedas aqui na Sicília.
Nego.
― Carona ― digo entrando em estado de inércia. ― Eu vim de carona, não de paraquedas.
Ele cai na gargalhada e só então eu entendi o que eu falei.
Idiotizou, Rebeca?
― Ok. De carona ― e come mais uma.
Ele falava com uma naturalidade como duas pessoas que conversam sobre algo do cotidiano.
― Por que eu? Matteo sabe?
― Por que eu sei tudo sobre você? ― confirmo. ― Rebeca, você já ouviu falar da "Cosa Nostra" ― confirmo mais uma vez. ― Somos uma organização poderosa, nascida aqui na Sicília, com braços comerciais, digamos assim, em várias partes do mundo. A Sicília é o nosso território e aqui dentro, nós mandamos em tudo.
Eu sabia. Eu sabia que Lucca fazia parte, e até Matteo, só não queria ter conhecimento dos detalhes.
Agora eu sabia muito mais. Vi coisa demais.
― Você é quem diz ser? ― Eu já não sabia o que perguntar.
O sorriso que há horas eu achava bonito, agora eu temia horrores.
― Sim, sou mesmo advogado, trabalho diretamente em contratos lícitos e ilícitos para melhor benefício de todos. Só não contei um detalhe e quem sabe isso a ajude a se soltar melhor. Você sabe o que é o Don ou o Capo de uma organização?
― Sei ― balbucio.
― Meu pai é o Don, Rebeca, e eu sou o filho daquela raposa astuta. ― E sorri como se fosse um elogio falar dele.
Rebeca, você só se fode.
― Quanto a saber sobre você, posso te dizer que uma mulher linda assim ― aponta para mim ―, trabalhando em um clube privado onde a maioria dos homens tem uma conexão conosco, não é muito difícil. Um dia, você caiu nas graças de um deles, e para piorar o negou. Por isso um dossiê foi requisitado.
― Matteo sabe? Onde ele entra aí, na organização? ― Ele come mais uma trufa.
― Como isso é bom! Posso comer tudo, não posso? ― Não negaria mesmo que tivesse guardado para o Papa. ― As coisas do Matteo, você pergunta diretamente para ele. Eu estou aqui sendo honesto sobre mim, e curioso pra saber sobre você, então, voltemos para sua história.
― Você matou. Na porta da minha casa. E quem eram os três que apareceram? Não terá problemas?
Ele inspira profundamente.
― Não sei quem são os caras que foram eliminados como tampouco me importo. Não são pessoas que sequer vale a pena eu pensar e suas mortes só trará benefícios ao lugar. E quanto aos três, trabalham para nós para sua proteção.
― Minha? ― Acho que foi a primeira vez que eu me mexi, apontando para mim levemente exasperada.
― Sim, você. Matteo recrutou depois de saber que alguém do Casamonica está atrás de você.
Michele me achou? Ponho a mão na boca em desespero. Se bem que estou conversando com o filho do Don da Cosa Nostra.
Rebeca, sua fodida. Você é um poço de azar, um imã para coisas ruins.
― Por isso que eu estou curioso em saber sua história, porque a história que eu soube do outro lado sobre você é bem cabeluda. Só que não bate.
― O que não bate?
― Isso eu não vou dizer, Rebeca. Eu quero saber tudo por você e como advogado, eu sinto cheiro de mentira de longe e ainda gosto de detalhes. Eu sou muito bom nas entrelinhas. Agora, conte-me como você parou aqui, na Sicília, ou melhor, na Itália.
E tomada de medo, sabendo que não dava pra fugir daquela situação, me sentei diante de Lucca começando minha história desde a infância.
― Então seu tio te assediava desde quando você não passava de uma menina? ― O sorriso dele era maquiavélico. ― E sua mãe nunca te defendeu? ― confirmo.
― Meu avô morreu logo após meus quinze anos. Até então eu estudava em uma escola religiosa, privada e rejeitada por ser pobre pelos meus colegas. Mesmo assim eu tinha boas notas para não perder a bolsa. ― Parecia que nada era surpresa. A sensação que eu tinha era que até meu histórico escolar ele teve em mãos. ― Quando ele morreu, fui matriculada em uma escola pública já que mamãe não tinha condições de arcar minhas mensalidades. Passei um ano muito mal. Meu avô era o único que se importava comigo. O sonho dele era que eu entrasse em uma universidade, me formasse.
― E por que não fez a prova? Por quê? ― Ele sabia que eu não tinha ido para o Enem?
― No último ano, eu passei a estudar com mais afinco, principalmente porque eu queria sair de casa. Meu tio vivia me rondando, muitas vezes me esperando chegar em casa. Eu passava o dia na biblioteca. Não tinha muito dinheiro, mas vovô, antes de morrer, pediu que o sócio da oficina me ajudasse financeiramente. Não era muito, mas dava pra eu fazer um lanche e me manter fora de casa. Quando a coisa apertava, eu ia para a oficina e estudava lá. Túlio nunca se incomodou com minha presença.
― Com tanta determinação, o que te fez largar tudo e vir para cá?
Desespero, medo.
― Eu não quis largar tudo. ― Inspiro profundamente ― Um mês antes da prova do Enem, mamãe perguntou se eu realmente iria desfilar como passista da Mangueira porque o diretor da escola abriu uma exceção para mim. Eu não ia muito para os ensaios por conta dos estudos, mas nesse dia eu fui. O carnaval seria depois da prova, então passando ou não, ia ser uma comemoração ou uma fuga. Eu fui.
Ele acabou todas as trintas trufas e agora abria a geladeira para pegar água como se já fosse de casa.
― Continue.
― Eu conheci Michele nesse dia. Na verdade, eu somente o vi de longe, observando-me, chamando minha atenção com sorrisos, piscadelas. ― Eu sempre fui muito elogiada por ter um corpo perfeito, uma cor naturalmente bronzeada com olhos claros, nariz afilado. ― Eu nunca me importei com flertes de homens mais velhos, mas ele, por ser lindo, eu notei. Estava na cara que ele não era dali, na verdade, nem do Brasil.
Eu tenho o mesmo sangue da minha mãe...
― Foi o próprio Michele que te aliciou? ― Meneio a cabeça num mais ou menos. ― Ele é muito velho pra você!
― Você o conhece?
― Foi ele quem veio aqui pedindo autorização para te procurar e te levar. ― Ele me achou.
Por isso os homens para minha proteção. Matteo colocou alguém para me proteger.
― Não, não posso usar desse termo. Eu meio que me apaixonei por ele ― confesso.
Ele ri, negando.
― Eu já tinha saído e até ficado com alguns garotos, mas nada muito sério. Quando vovô era vivo, ele vivia dizendo que qualquer garoto que quisesse namorar comigo precisaria passar por uma entrevista com ele. E depois que ele morreu, veio a dor, seguido da preparação para o Enem, não tive ninguém. Ele foi o primeiro.
― Primeiro o quê? Namorado! ― Olhando de fora parece mesmo uma loucura. Na época eu tinha dezessete e ele trinta e sete.
― Então, a gente ficou, tipo... ― ele franze o cenho sem entender ― amassos. Ele era lindo, inteligente, divertido. Falava fofo com a mistura do italiano com o português. ― Lucca revira os olhos. ― Só que eu não tinha coragem de dar um passo adiante.
Será que ele sabe que eu era virgem? Será que Matteo contou que ele fora meu primeiro?
― Minha mãe ficou grávida de mim exatamente com alguém como ele. Um gringo que a levou para a cama e depois voltou para o país dele deixando-a grávida. Claro que eu tinha medo de que a história se repetisse.
― E o que te fez mudar de ideia?
― Então, eu já estava pra fazer a prova, e acabei faltando alguns ensaios. A gente só se encontrava lá. Foi num desses encontros que ele falou que era dono de uma firma que buscava mulheres de boa aparência, jovem para trabalhar na Europa.
― E você acreditou? ― Ridículo mesmo.
― A princípio não. Achava estranho e até cheguei a pensar em uma rede de prostituição, mas aí era só ele me beijar, que eu me derretia e esquecia. E quando eu comentei, ele se sentiu ultrajado e até me deixou. ― Lucca solta uma risada pelo nariz desacreditado. ― Voltei lá todos os dias da semana, atrás dele, e ele tinha desaparecido. Somente no fim de semana que ele apareceu lá acompanhado de uma mulher mais velha, arrumada até para os padrões do lugar. Ele me apresentou a ela como amiga e sócia dele, e quando tivemos a oportunidade de ficarmos sozinhos, ele falou que se sentiu magoado por eu ter pensado algo tão ruim sobre ele. Que ele gostava mesmo de mim e que se eu quisesse, ele me traria para a Itália.
― E aí você acreditou?
Confirmo.
― Eu vou atribuir isso a sua imaturidade, Rebeca, mesmo que já tivesse com dezessete anos. Tendo um avô como o seu que te blindou da vida adulta, assediado pelo tio que te afastou de qualquer contato masculino, e dedicada aos estudos, o primeiro homem mais velho que diz "Ragazza ti amo" não daria em outra coisa. ― Foi burrice mesmo. ― Desculpe, linda, continue.
Eu não acreditava que estava abrindo o jogo para um filhote de mafioso.
― A gente tinha acertado de se encontrar no sábado à noite fora dali. Sabe, lá na comunidade, a gente meio que se protege e por amor ao vovô e até a vovó, eu era vigiada por muitos. Era só eu me encontrar com ele que alguns me cercavam e ficavam de olho. Como eu já estava segura com ele, eu aceitei o convite de sair. Só que eu me atentei que a prova seria no dia seguinte, e por mais que eu quisesse muito sair com ele, meus estudos, o desejo do vovô, o sacrifício dele em pagar falou mais alto. Meus estudos ainda eram prioridade em minha vida. ― Se eu tivesse discernido os sinais, eu fugiria. ― Eu não tinha o número de telefone dele, mas tinha o cartão da sócia dele e foi para ela que eu liguei pedindo para avisar que eu não poderia ir.
Tão burra.
― Quem está interessado, o número de telefone é a primeira coisa que se entrega. ― Eu sabia que havia sido burrice.
― Então, eu não apareci. Fiz a primeira prova e até tinha me saído bem. Estava feliz. Tão feliz que fui ao ensaio pensando em o ver, já que eu pedi a Sâmia que avisasse que eu iria depois da prova. Nada. Nem ele nem a Sâmia apareceram.
― Sâmia era a sócia dele? ― Confirmo. ― Sabe, Rebeca, alguns poucos usam desse subterfúgio. Prometem maravilhas, e caso a garota ignore, eles somem para atiçar mais ainda a vontade dela. As meninas tolas pensam que perderam sua chance e para a ganhar de volta, fazem qualquer negócio. É uma forma de trazerem vocês por livre e espontânea vontade. Claro que a maioria traz a força, a sequestram, mas por você ser alguém conhecida, ele evitou.
― Não sei se posso dizer que foi bem assim, Lucca. Eu queria Michele. Eu gostava de ficar com ele e até estava disposta para mais, mas...
― Mas? Diga. Fale o que você pensou, achou, viveu. Quero te conhecer a fundo e não somente me ater aos fatos. ― Até parece um advogado de defesa buscando meios de defender seu cliente.
Não caia nessa, Rebeca. Até o diabo se mostra como anjo de luz.
― Eu fiquei chateada, lógico. Michele não me ligou nem foi ao ensaio durante aquela semana. Contudo, eu precisei focar em meus estudos e o fiz. Eu queria muito entrar na universidade. A universidade era minha prioridade.
― Realmente eu não consigo entender. Você se mostra cada vez mais linda, inteligente, determinada e muito focada, no entanto, você está aqui vivendo nessa merda de lugar, sendo procurada como uma criminosa. Que porra aconteceu? ― Sua impaciência me assusta.
Resuma, Rebeca.
― Eu fui ao ensaio no sábado, antes da prova. Era minha última tentativa de me encontrar com ele, só que ele não apareceu nem eu fiquei muito tempo. Precisava dormir para a prova que aconteceria no dia seguinte. ― Mordo meus lábios tentando não chorar. ― Voltei pra casa. Estava relativamente cedo quando eu cheguei em casa. Tomei um banho, vesti meu pijama e quando eu saí do banheiro, me deparei com meu tio um pouco alcoolizado.
Lucca chega a mudar de expressão como quem só quer a confirmação para alimentar um ódio.
― Ele sempre tentava me tocar desde criança, só que naquele dia, ele me agarrou. ― Ainda posso sentir seu cheiro ao lamber meu pescoço, ou quando ele abocanhou meu seio depois de arrancar o botão do meu pijama deixando-me parcialmente desnuda. ― Meu tio tentou me estuprar, Lucca. E eu só consegui escapar por um milagre.
Milagre!
Eu o deixei chupar meu seio e com a mão tocar minha vagina. Senti nojo por mim, mas deixei ele se aproveitar para que eu tivesse uma pequena chance. Ainda consigo ouvi-lo dizer "Tá gostando, né puta? Sempre soube que você me queria, piranha." E quando ele vacilou para baixar a própria calça, peguei o vaso que estava no chão e quebrei na cabeça dele.
― Filho da puta. Esse desgraçado vai morrer.
Nego. Principalmente depois de ver que matar para Lucca é tão fácil como comer trufas.
― Não toleramos estupradores em nosso meio, Rebeca.
― Ele não está aqui, Lucca. ― Eu não o defendia, lógico! Um cara como ele não vale a pena, tampouco quero ter sangue de alguém em minhas mãos.
Lucca abriu um sorriso de lado como quem planeja algo muito, mas muito ruim.
― Volte, Rebeca. Volte para sua história.
― Eu saí da comunidade e fui atrás de alguns conhecidos. Saí com a roupa do pijama rasgada e a mochila da escola já que eu tinha estudado à tarde e deixei em cima da mesa. ― Respiro fundo ao lembrar o que de fato aconteceu naquele dia. ― Procurei ajuda nos vizinhos, mas eles, ao ouvirem os gritos do meu tio vindo atrás de mim, todo ensanguentado já que eu cortei sua cabeça, negaram. Meu tio sempre foi alguém muito querido lá pois sempre está disposto a ajudar a todos. Seria a palavra dele contra a minha. Túlio era o único que sabia a verdade por trás já que meu avô contava o que se passava dentro de casa. ― Enxugo uma lágrima ousada que caiu. ― Eu não tinha para onde ir. Foi aí que eu me lembrei do cartão de Sâmia e fui ao endereço.
― Por que para ela?
― Porque era a única pessoa que meu tio não conhecia, não morava lá na comunidade, nada. ― Lucca bate os dedos na mesa mostrando-se irritação.
― Ela te recebeu.
― Muito bem. Passei um tempão chorando com ela me acolhendo ― e agora eu sei porque Michele sequer desconfiou que eu era virgem. "Não aguento mais meu tio me assediando, me rondando, se esfregando em mim." Que virgem suportaria isso tanto tempo? ― Ela me deu um calmante e me colocou para dormir em sua casa.
― E aí você não fez a prova.
Confirmo.
― Eu perdi a hora com o calmante que ela me deu, como tampouco eu passaria no estado de nervos que eu estava.
― E aí você veio para cá?
― Foi. Levei um pouco mais de um mês para conseguir toda minha documentação já que não tinha nem dezoito. Eles providenciaram tudo. Também fiquei sabendo que Michele tinha voltado para cá, e quando nos falamos por telefone, ele me convidou mais uma vez.
"Rebeca, meu amor. Queria estar aí para cuidar de você, mas infelizmente tive um problema sério aqui e não poderei ir. Sâmia é de minha extrema confiança, deixa que ela resolve tudo pra você."
― E as fotos? ― Uma brincadeira.
― Ela disse que como eu era bonita, queria fazer um book meu. Eu estava na casa dela, ou melhor, no estúdio dela, de favor... Era o mínimo. E como ela não pediu para eu tirar a roupa, por que não?
― Aí você veio para cá e se encontrou com Michele? Por que não voltou pra casa?
Acha que não tentei?
― Eu tentei voltar, lógico, mas meu tio já tinha feito a cabeça da minha mãe que é louca pelo irmão dela dizendo que eu tinha me aproveitado da incapacidade temporária dele por estar levemente embriagado, e que a brincadeira que ele sempre fez comigo foi mal interpretada e que eu tentei matá-lo. Ela preferiu acreditar nele do que em mim. E vovó, mesmo que indecisa, não conseguiu tomar partido. Para elas, vovô tinha prejudicado minha criação, criando um monstro que se achava melhor que os outros.
― Entendi. ― Sorri. ― Por isso você veio para cá? Compreensível.
E cada vez que ele mostrava os dentes naquele sorriso perfeito, eu pensava que ele estava maquinando algo muito, mas muito ruim.
― Foi. Cheguei aqui, na verdade, em Roma. Lá eu fui levada para um tipo de pensionato cheio de meninas de vários lugares. Nem Michele, nem Sâmia, nem ninguém conhecido estava lá. Eu não entendia nada. O idioma, as risadas por eu me sentir deslocada, mas na hora que eles me pediram para me vestir, eu até o fiz. Eu fui passista nova e lá no carnaval, nós sabemos nos pintar, usar maquiagem fortes, vestir roupas minúsculas só que diferente do que muita gente pensa, é uma competição, não uma casa de prostituição ― ao menos pra mim.
― E aí você foi para um prostíbulo?
― Sim. Fui colocada lá pensando que falaria com Michele e ele me tiraria dali. Como eu não entendia o idioma, me colocaram para servir as bandejas. Foi quando alguém tentou me tocar e eu não queria, Lucca. Se meu tio, que morava comigo, foi horrível, imagina um homem que eu nunca vi. ― Só em lembrar, me arrepio toda.
Ele percebe e foi a primeira vez que ele segurou minha mão, acariciando-me.
― Calma, linda. Eu não consigo imaginar, mas te entendo.
― Eu apanhei por não ter deixado. Michele me bateu e em bom português, eu entendi o que eu era ali. ― Baixo a cabeça. ― Eu precisava fugir. ― Não consigo olhar para ele. ― Roubei alguns poucos euros que tinha na bolsa das meninas no camarim e botei fogo na área de limpeza. Precisava de algo que forte que chamasse a atenção.
Lucca caiu na gargalhada.
― Quando eu soube, não acreditei. Nunca atribuiria isso a você, Rebeca. ― Por que não? Por eu parecer pacata demais e burra demais?
― Eu não pensei que tudo queimasse tão rapidamente. ― Ou pensou e até desejou, Rebeca?
― Minha linda, com tanto álcool e produtos tóxicos, não achava que o fogo se alastraria? E eu imagino que o lugar tinha carpete, tapetes e cortinas. ― Confirmo e ele sorri.
― Eu pensei que teria alarme de incêndio ou outra coisa parecida. ― Ele ri ruidosamente ante minha ingenuidade... ou diria vingança? ― Tentei pedir desculpas e trabalhar para ele desde que não fosse me prostituindo, coisa que ele não aceitou, lógico.
― E aí. Preciso saber como veio para aqui de carona. ― Sorri.
― Passei um tempo nas ruas de Roma. Eu não tinha documento, só a xerox já que eles tomam nosso documento. Às vezes, à noite, eu tomava banho nas fontes quando não tinha policial, ou comia dos restos que achava no chão, no lixo dos lugares turísticos. ― Olho para o lado evitando encará-lo. ― Ele me achou, ou melhor, me viu. Eu consegui fugir e cheguei até uma rodovia quando um caminhoneiro me deu uma carona até uma cidade perto de Milão. De lá, fui até Florença de carona em carona.
― Passou quanto tempo lá?
― Um ano e oito meses mais ou menos. Foi um tempo difícil, mas eu consegui ter um pouco de dignidade. Por estar em outra cidade, eu não temia a eles, mas a polícia, já que se eu fosse pega, eles me achariam. Michele deixou bem claro o acesso que eles tinham a todo o sistema de justiça.
― Isso é o que há de mais fácil ― confirma.
― Pois é. Passei um tempo nas ruas, me escondendo, temendo ser abusada por algum maluco, boêmio, mendigo. Até que eu achei uma senhora que por um prato de comida, permitiu que eu a ajudasse. E quando ela soube que eu não tinha casa, me colocou pra dentro da casa dela. Eu tinha uma cama, um banheiro para as minhas necessidades, roupa limpa. ― Respiro para tentar acalmar meu coração. ― A filha dela tinha uma confeitaria muito boa e conhecida lá e quando ela viu o quanto eu cozinhava bem, me empregou.
― E por que saiu de lá? Da casa?
― Com medo de me acharem e machucarem a dona da casa, eu saí e fui morar em uma quitinete. E aí, mais uma vez a minha burrice falou mais alto. Eu abri o jogo para Lucia, contei a ela tudo que tinha me acontecido e ela me vendeu.
Brinco com minhas unhas para não olhar para ele.
― Não vejo burrice em nada, Rebeca. Vejo alguém tentando sobreviver com as oportunidades que a vida lhe deu. Infelizmente elas não foram boas. ― Não sei mais se vejo as coisas por esse ângulo. ― E alguém carente de atenção, carinho e ainda sentindo fome e medo, não consegue discernir bem as atitudes. Mas agora me responda por que escolheu a Sicília?
― Por incrível que pareça foi a própria Lucia. Ela tinha me aconselhado que eu só estaria livre se eu fosse para Nápoles ou se eu viesse para cá. Que mesmo que a máfia desses lugares tivesse sido desmantelada, ainda havia um grupo que dominava o lugar e que de certa forma eu estaria protegida. ― Ele confirma. ― Foi assim que eu parei aqui.
Ele assente.
― O resto da história eu conheço. Seu amigo Mattia foi muito prestativo em nos contar e diferente da Lucia, ele te defendeu com unhas e dentes. Ele foi o primeiro que nos fez questionar sobre você.
― Você não machucou ele, machucou? ― Por favor.
Ele nega, sorrindo.
― Minha linda. Há muito que eu conheço essa parte da história. Mattia apareceu machucado algum dia? ― Nego e então me lembro seu receio quando eu falei de Matteo. E como tudo é sigiloso, Cat não confessaria.
― Agora você sabe minha história. Vai me entregar para ele? ― Lucca faz uma careta.
― De jeito nenhum. ― Solto um suspiro de alívio. ― Mas eu preciso saber: quer voltar para o Brasil? Eu posso te tirar daqui sem precisar sequer de documentos. ― Está aí uma coisa que eu não sabia. ― Imagino que deve ser difícil voltar para um país que não tem ninguém te esperando.
Assinto.
― Eu só quero ter um pouco de paz. Viver com um pouco de dignidade.
Ele olha tudo ao redor mais uma vez e se levanta vindo em minha direção, o que me faz encolher diante daquele homenzarrão.
E então, ele se ajoelha diante de mim, pegando meu queixo e o obrigando a olhar para ele.
― Eu sou um homem de palavra, Rebeca. Nesse momento, eu juro que no que depender de mim, você estará segura. Em meu estado, nada nem ninguém tocará em você ― seguro meu choro. ― Há um grupo que te vigiará vinte e quatro horas por dia. Você não vai vê-los, mas eles estarão prontos para auxiliá-la no que precisar, principalmente se esse Michele ou qualquer um deles aparecer por aqui.
Foi então que eu olhei em seus olhos.
― Se precisar de mim para qualquer coisa, me ligue. ― Seus olhos...
"Eu já te disse que adoro a cor dos seus olhos? Um azul puxado para o cinza. Diferente. Lindo [...] É a marca registrada dos homens da família. Meu irmão, meu tio, meu avô e o irmão dele tinham essa cor."
Lágrimas começaram a cair diante daquela revelação.
― Não precisa fugir. Você estará segura aqui.
Ele enxuga minhas lágrimas que não param de descer e ainda me dá um beijo na testa.
― Eu não preciso de sua autorização. ― Ele se levanta e abre a carteira. ― Sei o quanto é batalhadora, mas está na hora de parar e viver um pouco melhor.
Ele joga um maço de euros em cima da mesa junto com seu cartão.
― Não é uma esmola, nem nada humilhante. Pense que eu estou te apadrinhando.
Tudo era uma mentira.
― A gente se fala, Rebeca ― e sai, deixando-me ali, inerte, decepcionada e triste.
Um capítulo grande para não quebrar o diálogo.
Quero um Lucca para mim... Será que ele me apadrinha também?
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro