|Uroboros|
Com sua atenção completamente desviada, Décima Primeira sente seu corpo sendo subitamente empurrado. E desafiando todas as expectativas, Edward, aparentemente livre dos efeitos do relâmpago, toma a relíquia das mãos da Hora, e a esmaga.
Como Edward havia retornado a consciência tão rápido era um mistério. Mas uma coisa era certa: não ter levado isso em consideração foi um erro.
O item despedaçou-se em milhares de espólios negros. A explosão repele a Hora, liberando uma densa névoa negra, deixando todos desnorteados. Gritos ecoam para todos os lados. O caos estava generalizado. Uma das santas, purificando toda a poeira do ar, revela Edward tomado por um bizarro elemento plasmático que o engolia aos poucos. Tal substância gelatinosa, parecia ter vida própria, era um parasita. Os gritos do rebelde reverberavam, transmitindo a mais pura agonia. Aquilo devorava cada vez mais o corpo do homem, até que o dominou por completo, restando uma assustadora silhueta negra. Mas o sofrimento não para por aí. Como um prisioneiro de sua própria carne, coloca as mãos na cabeça, quase que tentando tirar aquela cobertura insossa. Vetores de matéria escura se ergueram pelas paredes numa velocidade absurda, deixando todo o ambiente contaminado pela substância, o uroboros. Edward estava fora de controle.
Elaine não conseguia acreditar no que estava vendo. Gritava por Edward, ao que as Horas tentavam segurá-la, com dificuldade. Porém, no que a garota conseguiu se desvencilhar, correu em direção da figura, e, ao tocá-la, foi repelida quase que automaticamente. Vendo Elaine ao chão, com os cabelos no rosto, Elisa bradou enquanto se aproximava com sua criatura:
- Não tocaria nele se fosse você.
- O que você fez com o Eddy?!- Berrou Elaine em completo desespero.- O quê está havendo com ele?
Mas não houve resposta. As pessoas, apavoradas, tentavam passar por entre os escombros da saída, mas sem sucesso. Imensas vinhas negras bloqueavam o corredor seguinte. O palco estava armado, aquela seria a tumba de todos ali.
- Que cerimônia de mau gosto, não acham? - Disse Elisa em alto e bom tom.
Elaine estava prestes a dizer algo-provavelmente algum grito de indignação-mas é interrompida pela Primeira hora, que a detém.
- Basta, Elaine. Não gaste suas palavras com essa... infiel!
Mesmo sob aquela situação tenebrosa, Primeira ainda tinha esperança de que o Uroboros devorasse aquele rapaz. Afinal, o receptáculo continha o mais puro mal concentrado naquela matéria escura. Era o mais lógico que Edward perecesse ali mesmo, e, de qualquer maneira, Primeira não ousaria tocar no rebelde... A aparência gelatinosa fervente, e que liberava bolhas tão espessas como piche, apavorava qualquer um que olhasse. Os guardas, em volta observavam aquela situação com apreensão, já que os gritos ensurdecedores de Edward eram prova suficiente de que o contato com aquilo poderia ser letal.
Até mesmo os arqueiros não ousavam atirar na criatura, já que não tinham certeza se seriam atacados caso não dessem fim com uma flecha. E, mesmo assim, e se o matassem? Como o porta-voz havia alertado, ninguém suportaria o peso de assassinar o herói da colônia. Como membros do exército de Zênite, seriam vistos como heróis, ou vilões? Ninguém podia garantir.
Elaine observa aquilo, petrificada. O quê? Como? Por quê? Astargan, como diziam as lendas, era o mal encarnado. Um líder cruel e dominador. Aquela gosma negra era a essência dele? E Edward... Como ele pôde?
- Garota! Tá parada aí por quê?! Vai salvar alguém enquanto eu dou um jeito nessa lagartixa! - Disse Decipri, correndo até Elisa.
A guardiã sente um frio percorrer sua espinha, e treme balbuciando algumas palavras.
Primeira responde, apontando-lhe o dedo- O quê? Você quer ser uma traidora também?
A guardiã dá um pulo para trás, alarmada. Mesmo fazendo treinamentos, nunca havia se transformado antes. Entretanto, contra sua vontade, Elaine convoca os poderes da Aurora. Um raio fulminante de luz solar a cobre, vestindo-a com sua malha cósmica.
Elaine se sentia mais forte, mais rápida, e até mais alta. Era como se tivesse se transformado numa versão aprimorada de si, mesmo que ainda não se sentisse nada confiante. Na história da colônia, a guardiã da Aurora sempre foi o suporte do guardião do crepúsculo, nunca o contrário. Elaine, já transformada, percebeu em que situação infeliz estava. Como guardiã, só tinha poderes curativos e protetivos, e jurou jamais machucar alguém. O que ela poderia fazer numa situação daquelas? Edward estava ferido, mas inalcançável. A garota levou o olhar para o conselho, esperando encontrar alguma resposta, mas ao que parecia, as doze estavam igualmente imersas em problemas. Trazendo ainda mais incômodo, havia o fato de que Éden, a sacerdotisa da luz, estava obsoleta. Mesmo sendo frágil, devia ter dito algo, gritado, ou reagido de qualquer forma. Mas ela estava lá, quase como um adereço em seu trono.
A guardiã mal conseguia sair do lugar, mas o apelo da Hora foi o solavanco que a garota precisava. "Curar e proteger Elaine." repetiu para si mesma. "Se não posso atacar, ao menos posso defender essa gente."
Agora, como guardiã da aurora, começou a bolar um plano para assegurar a fuga de todos do salão, ao passo em que as Horas cuidavam de Edward e Éden. Aquelas pessoas estavam tão apavoradas quanto Elaine. Tantas pessoas correndo e se desesperando, como poderia estar ignorando tudo aquilo? Uma gigantesca sensação de urgência a tomou ao ver a situação por uma lente maior. Então, com um fulgor místico, levantou voo graciosamente, deixando partículas estelares por onde passasse.
Era irônico o quão fácil estava sendo usar os poderes da aurora. Sentia a magia fluindo em cada parte de seu corpo, leve e harmonicamente. Voar era extremamente simples, apesar das ficções que mostravam os heróis penando para administrar seus poderes. E, sendo uma garota franzina como era, parecia que o próprio amanhecer estava tomando as rédeas do seu corpo. Entretanto, as decisões eram dela. Não adiantaria nada se usasse os poderes, mas não soubesse aproveitá-los corretamente. Só a ideia de ter que decidir o destino de Edward a sufocava. As Horas tinham a solução para aquilo tudo, tinham que ter. As lágrimas desapareciam conforme voava pelo hall. Tinha que esquecer dele por um momento, só por um momento.
A essa altura, Decipri já estava em posição de batalha diante do animal- Ei, sua otária! Vai descer daí ou vou ter que te deitar na porrada?!
Sem ter chance de dar uma resposta, Elisa é atingida por um feixe de eletricidade que percorre todo seu corpo numa fração de segundo.. Décima Primeira se surpreende por um momento, mas logo percebe que a rebelde estava usando um traje isolante feito pelo exército. Isso só reforçava o fato de que aquele advento era algo planejado. No entanto, a Hora, muito mais experiente em batalha, manipula o solo, e a derruba de sua montaria sem pestanejar. Elisa não se deixa abater, e cai sutilmente em pose de batalha, quase como se soubesse o que estava prestes a acontecer. Enquanto isso, o enorme evtann foge descontrolado.
As pessoas começam a se amontoar na pesada porta de mármore do hall, e as Horas se mantêm na posição, protegendo Éden. A guardiã avisava a todos para que se mantivessem calmos, enquanto tentava abrir passagem pelos tentáculos que bloqueavam a saída. Mas sem algo para cortá-los era inútil, já que eram grossos demais.
Um grito ecoa, interrompendo os pensamentos da guardiã. Era Edward, que em completa agonia, tentava mover-se em direção à Primeira. Tudo o que se podia ouvir dele eram algumas palavras em algum dialeto antigo. Ninguém sabia o que significava, mas soava como a própria morte.
- Fique longe de mim, criatura! - Berrou Primeira, apontando seu medalhão para ele.
Primeira libera um feixe de luz no metamorfo, que o incendeia de pronto, fazendo-o entrar em surto. Tentáculos enormes provindos de suas costas colidiam com tudo ao redor, de maneira totalmente descontrolada. Enquanto isso, Decipri, em meio a uma batalha enérgica com Elisa, estava com o braço completamente embolhado, quase como se tivesse sido atingido com algum ácido. Fazia sentido, Décima Primeira era a única do conselho a ter habilidades de ataque, mas, sem as mãos, não poderia controlar nenhum dos três elementos da natureza que dominava, e Elisa, sendo uma estrategista, provavelmente sabia dessa fraqueza.
Tudo estava ruindo ao redor, parecia o próprio retrato do caos. O Evtann estava à solta, Décima Primeira estava ferida, e Edward, totalmente fora de controle.
O coração de Elaine disparava, seu corpo inteiro parecia amortecido. Chegou à conclusão de que devia parar de pensar se quisesse se manter sã. Mesmo desesperada, procurou maneiras de solucionar aquele mundaréu de problemas. No exército, era conhecida por ser engenhosa, e agora precisava por isso à prova...
Vendo as estruturas das paredes cedendo, a mais nova guardiã da Aurora tomou uma das colunas derrubadas, e arremessou no animal que estava à solta. A criatura cai, e Elaine cobre o Evtann com sua capa, formando uma cúpula. Esse manto, marca registrada da guardiã da Aurora, é feito de amanhecer, molda-se e endurece de acordo com a vontade da dona, tornando-se uma barreira. Mesmo querendo ajudar Hora, a guardiã voou para o lado oposto, decidindo proteger aqueles que não estavam amparados pelo véu.
Elaine sobrevoa a área, pensando numa maneira de parar Edward. Pegou impulso e disparou com todas as suas forças em direção ao rebelde, mas, ao perceber isso, o metamorfo se defende com um de seus vetores, jogando Elaine em direção às paredes, fazendo-a se chocar contra uma fileira de colunas. A guardiã, já abalada, se segura no tentáculo com toda a força que tem, mas ainda assim cede e solta, se chocando com força contra o solo, e perdendo os sentidos.
Uma heroína, era isso que ela deveria ser... Mas o que faz um herói, afinal? Elaine já tinha o título, mas não fazia jus a ele. Confiou no plano que Edward tinha para colônia, e o sonho dele guiou a vida da garota por completo. Certamente, era muito mais fácil ver a si mesma como um apoio. Agora, sem alguém para se apoiar, sentiu que estava sozinha.
Primeira, pragmática como sempre, observava o estado de Elaine e a luta de Décima Primeira com frieza.
O rebelde estava no chão, carbonizado pela mais pura luz de sua jóia. Mesmo sendo claro que Edward não estivesse sendo capaz de controlar o uroboros, o elemento escuro demorava mais do que o esperado para dar cabo do rebelde. Algo estava errado.
-Mãe Primeira, estou sentindo algumas sinapses na mente de Edward! Ele está recobrando a consciência!
- Impossível... Um moleque qualquer não seria capaz de...
Talvez, o que Edward havia dito antes de romper o lacre fosse verdade. Um herdeiro para Astargan. Aquele homem terrível, de eras atrás, tinha um segundo plano. Apesar de incrédula da ideia de que um bárbaro como Astargan haveria bolado um plano tão minucioso como aquele, o que mais assombrava Primeira era o escolhido ser alguém como Edward. Um homem calmo, dedicado e disciplinado. O exato oposto do que diziam as escrituras sobre Astargan. Nunca lhe passou pela cabeça que Edward seria o escolhido como herdeiro, quem dera que existisse um. Achava que o rebelde tinha dito aquilo tudo no momento do brinde para assustar, causar comoção ou fazer um memorável protesto. Mas, inegavelmente, ele estava falando sério, então estava mais do que na hora do conselho falar sério também.
- Terceira, faça uma espada.- Bradou Primeira, enraivecida.
- Perdão?- Respondeu, alarmada.
- Foi o que você ouviu, Terceira! Nenhuma das armas aqui será capaz de atingi-lo! Use sua monção de remodelar objetos, e faça uma espada do meu medalhão!
Terceira se assombra. - Mas assim vai matá-lo! A líder do conselho não pode arcar com um pecado tão grande como esse!
- Deus me perdoará.
Terceira a interrompe. - Mas a colônia não...
As duas se entreolham por um tempo. E mesmo contra a sua vontade, estende a mão para Primeira, que lhe entrega o medalhão. Não cabia mais ao conselho refletir sobre moral. Precisavam de força bruta, e, mesmo sendo frágeis em combate, era necessário agir.
- É hora, irmãs! Sidéria, avante!
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