Falem De Mim - Capítulo 4
Segundo Ato - Engano - Cena 1
O choque inicial deu lugar a um sangue tão quente que tinha virado lava correndo nas veias. Eu me sentia completamente vermelha e em brasa, mas não era de vergonha. Tinha certeza que até meu pescoço tinha manchinhas avermelhadas e minhas mãos ficariam roxas se eu continuasse mantendo meus punhos tão apertados. Bufante marcho com rapidez até a lixeira, desejando ter um isqueiro pra colocar fogo em tudo aquilo. Ou um coquetel molotov a postos pra esse tipo de emergência. Porém, na falta das minhas duas primeiras opções usei minhas próprias mãos. Primeiro arranquei os dois cartazes com toda minha ignorância, sob os olhares cuidadosos do refeitório inteiro e suas risadinhas debochadas, rasguei os papéis e amassei junto ao meu corpo. Todo meu show parecia divertir quem quer que estivesse ali, então furiosa dei um chute na lata de lixo, espalhando tudo pelo chão limpo.
- Vadia é a puta que pariu! Seus imbecis subdesenvolvidos – falo ríspida, conseguindo silenciar a maioria.
Meu olhar raivoso recai sobre algumas pessoas sentadas nas mesas mais próximas e eu sequer reconheci nenhum rosto. Nem sabia quem eram a maioria daquelas pessoas, mas agora todas elas me conheciam.
Sem ao menos ter chegado até a cantina, saio de lá sentindo cem pares de olhos nas minhas costas. Desço os degraus correndo e procuro a lixeira mais próxima pra agora me desfazer dos cartazes picotados. Amasso tudo mais umas dez vezes, antes de jogar no fundo daquela lata que cheirava comida velha. O que tinha tudo pra ser um dia ótimo, agora havia sido arruinado. Eu nem tinha mais cabeça pra continuar no campus.
Saio da faculdade com um pensamento simples e contínuo:
Que ódio! Que ódio! Que ódio! Que ódio!
(...)
Não adiantou discutir com Patrick. Ele só arranjava mais desculpas para tentar sair comigo.
Não adiantou tirar satisfações com Jacob. Ele jurava de pés juntos que não tinha nada a ver com aquilo.
Não adiantou quase bater na Bianca. Ela continuava rindo da minha cara, afirmando que "infelizmente não teve a ideia de fazer isso primeiro".
No final das contas poderia ser qualquer um ou nenhum. E sabe-se lá se aquilo fazia alguma diferença agora. A história sobre "a vadia de Auckland" já tinha tomado proporções muito maiores do que quem quer que tivesse começado os rumores. Estava circulando por todos os corredores, do prédio de exatas ao de humanas, nas quadras esportivas e nos dormitórios. Talvez apenas o corpo docente estivesse de fora das últimas notícias. Ou seja, meus dias se tornaram um pequeno tormento.
Mas o pior de tudo era que Kim Namjoon tinha ouvidos.
- Estava usando alguém do seu passado? – o professor de produção de espetáculos pergunta assim que eu termino meu texto.
- Não. Achei que seria melhor não misturar nenhuma experiência particular. Quero que seja autêntico – respondo séria.
- Esse foi seu erro. – dita simplista – Usar sua imaginação estava ótimo quando você tinha apenas que decorar textos aleatórios. Agora você tem toda uma carga emocional de uma história inteira nas suas costas e você tem que me fazer acreditar que sente tudo que está dizendo. Que já passou por isso.
- Mas se eu conseguir interpretar as emoções qual a diferença professor Derian?
Ele era um britânico com um nome anglo-saxão bem incomum. Além de ter um sotaque engraçado e forte. Não que uma coisa tenha nada a ver com a outra, mas ele era meu melhor professor.
- Não é o bastante. Eu tenho que saber de onde tudo isso está saindo. Você tem que revelar si mesma. O investimento precisa ser pessoal. Eu quero que use suas memórias, experiências, suas emoções pessoais.
Suspiro, abaixando minha cabeça. Não pretendia usar nenhuma das minhas experiências pessoais recentes, estava tentando bloqueá-las. E minhas memórias familiares também eram mais do que dispensáveis. Pai que trabalha demais, mãe que trabalha demais, filha única vai pra faculdade com tudo pago, fim. Nada era interessante o bastante para me inspirar ou relevante o bastante para ser usado.
- Talvez algum interesse amoroso? Do passado ou recente – ele sugere interrompendo meus pensamentos
Então eu sorrio de canto arqueando as sobrancelhas.
(...)
Saio apressada entre o aglomerado de alunos no final da aula de Fundamentos da Interpretação, a fim de alcançar Cameron. Apesar de conseguir sentar ao seu lado, não tivemos a chance de conversar devido à quantidade de conteúdo que a professora passou.
- Cam, espera! – chamo alto, fazendo-a se virar na minha direção. As pessoas já estavam se dispersando quando nos aproximamos – Vamos fazer esse trabalho juntas, né? No mesmo esquema de sempre – pergunto com um sorriso.
- Não vai dar Nicole – faz uma careta sem graça, se preparando pra sair dali enquanto olhava para todos os lados – eu combinei de fazer com o Joey. Você sabe, nós estamos namorando.
- Não é por isso que você está me evitando – fecho a cara na hora.
- Me desculpa – comprimi os lábios e se encolhe andando de costas, tentando parecer a vítima ali – eu não posso arriscar minha reputação.
- Que reputação Cameron? Ninguém nem sabe que você existe – digo áspera e dou-lhe as costas sem esperar nenhuma reação.
Decidida a fazer todos os meus trabalhos sozinha de agora em diante, vou até o único lugar que poderia me trazer certa paz e tranquilidade. Fora que agora também seria o lugar onde eu faria meus "investimentos pessoais", como foi sugerido pelo professor Derian.
Assim que cruzo as portas da biblioteca procuro seus cabelos castanhos com suas características asiáticas bem marcantes, sentado em uma das mesas de madeira clássica. Estudioso e inteligente, ele estava sempre sozinho por ali e eu me pergunto se o garoto tinha muitos amigos. Naquele dia ele estava usando um casaco azul que mais parecia uma camisa de flanela, mas por baixo sua blusa era cinza como de costume e suas pernas longas de canelas cruzadas sob a mesa exibiam uma calça marrom. Não era bege, mas estava quase lá. Namjoon estava concentrado em um livro enquanto brincava com uma caneta entre os dedos da mão direita. Eu, no entanto, estava concentrada nele. Durante sua leitura vez ou outra seu cenho franzia naturalmente e seus olhos se moviam rápido pelas linhas. Fato impressionante na verdade, já que o livro que ele lia era "Nanociência e Nanotecnologia: Compósitos Termofixos Reforçados com Nanotubos de Carbono" e eu tinha dificuldade até em compreender o título inteiro. Naquele dia as mangas das suas blusas estavam enroladas nos cotovelos, em volta dos seus pulsos tinham algumas pulseiras grandes que brilhavam a certa distância e no seu pescoço um cordão bem longo repousava. Era isso, além de gênio e poeta, o coreano era também um ícone fashion. Ele vira a página rapidamente, começa a fazer alguma anotação numa folha avulsa e para de repente. Presumo que seu celular tenha vibrado porque ele tira o aparelho do bolso da calça e dá alguns toques antes de bloqueá-lo mais uma vez. Naquele instante eu mentalmente entrego um prêmio para Kim Namjoon de pessoa mais interessante da face da terra. Como alguém conseguia ser tão incrivelmente fascinante sem fazer esforço nenhum?
Me aproximo em silêncio e quando me sento ao seu lado pego-o totalmente de surpresa. Ele sorri em minha direção e guarda mais uma vez o celular no bolso. Na minha presença Kim relaxa um pouco, colocando o livro inteiramente sobre a mesa e deixando sua caneta descansar sobre o papel. Olho de relance para suas anotações e percebo que elas eram uma mistura de inglês e coreano. Aquilo me faz sorrir até fixar meus olhos nele de novo.
- Eu acho que nós deveríamos passar mais tempo juntos – murmuro num tom tão simples que beirava a ingenuidade.
- Como assim? – ri baixo e com um franzidinho bem fofo na sua testa.
- Passar mais tempo juntos. Se conhecer – dou de ombros e apoio meu cotovelo na mesa, apoiando também meu rosto na minha mão sem desconectar nossos olhares – Aposto que você costumava me chamar de "garota aleatória da biblioteca". E você tem que descobrir que eu sou aleatória fora daqui também.
- Eu sabia seu nome a um bom tempo já – suas covinhas dão o ar da graça.
Era minha primeira vez vendo-as um pouquinho mais de perto. Estávamos sentados lado a lado e nossas cadeiras não estavam tão distantes. Se um dia eu o beijasse será que ele me deixaria acaricia-las? Matematicamente falando meu indicador tinha muitas probabilidades de encaixar perfeitamente ali.
- Sabia meu nome?
- Antes até de falar com você – ergue uma sobrancelha. Ao se ajeitar levemente na cadeira seu ombro esbarra no meu e eu me inclino um pouco em sua direção – Ao contrário de mim você nunca foi muito de ficar sozinha por aqui e eu ouvia as pessoas te chamando quando vinham te procurar.
- Ahhh... – digo um pouco desapontada – Então você não tem o menor interesse de me conhecer.
- Eu já te conheço – dessa vez ele se inclina. Uma de suas mãos no bolso da sua calça desde que guardou seu celular – Além do seu nome sei também que está no segundo ano de Artes Cênicas. Provavelmente têm uns dezenove anos e é muito dedicada às suas aulas de produção teatral...
Suspiro aliviada por ele não citar nenhum dos rumores recentes ou qualquer um dos boatos espalhados como um dos fatos que ele sabe sobre mim. Mesmo assim abaixo meu olhar e recosto na cadeira, me afastando um pouco mais.
- O que eu quero dizer é que eu gostaria de te conhecer melhor – sua voz sai um pouco mais baixa, porém, mais grave também.
Acho que eu devo adicionar charmoso na lista de adjetivos de Kim Namjoon.
Apesar do meu sorriso aberto eu tenho que esfregar minhas mãos em meus braços, pra disfarçar o arrepio forte que eriçou minha pele. Enquanto eu sorria na sua direção percebi seus olhos deslizando pelo meu rosto e parando bem na minha boca. E lá ficou. Eu contei até trinta e o seu contato intenso me fez estremecer. Era melhor adicionar sedutor aos adjetivos também.
- Eu gosto de comer comida no café da manhã – começo a falar quando o silêncio achata um pouco o meu cérebro, mas minha voz ainda é baixa e nós nos aproximamos novamente - Tipo, comida mesmo. Cordeiro, vitela, carne. Acho que escovo os dentes umas quinze vezes por dia. Eu escuto muito The Everly Brothers, mas também sou muito fã da Cardi B...
Namjoon ri contido e sinto seu hálito fresco no meu queixo. Só ai que eu percebo o quanto nossos rostos realmente estavam perto e nossos ombros colados.
- Espera, eu tenho que anotar pra não esquecer os detalhes – ele brinca.
- Você que é o interessante de nós dois aqui – empurro levemente seu corpo, sem descolar nossas roupas. Será que a pele dele era tão macia quanto parecia por baixo de todo aquele casaco?
- Mentirosa. Preciso ver você cantando Bodak Yellow na sua próxima apresentação agora.
Arregalo os olhos, completamente surpresa.
- Você gosta de hip hop?!
- Eu só gosto de hip hop – responde como se fosse muito óbvio.
- Como assim dono da biblioteca?! Eu podia jurar que você só escutava música clássica e que estudava o dia inteiro ao som de Mozart.
Nós seguramos nossas risadas mais escandalosas, nos encolhendo e quase rindo "no mudo". Era bom estar ali com ele sem falar de livros e monólogos. Era bom falar com alguém que parecia não ter a palavra "vadia" no vocabulário.
- Agora o tailandês... – um garoto passa rindo pela nossa mesa, interrompendo nossa conversa – Ei Nicole, ninguém te disse que pra ser atriz pornô você não precisa fazer faculdade?
O amigo que estava junto com ele cai na risada sem ligar em estar chamando a atenção de toda a biblioteca.
- E ninguém te disse que os homens já evoluíram dos primatas? Vai procurar uma máquina do tempo seu Neandertal ridículo – respondo raivosa.
Mesmo assim os dois saem aos risos da biblioteca, sem nem ouvir as broncas da velhinha bibliotecária. Duvido que qualquer um deles sequer tivesse entendido o que eu tinha acabado de dizer, jamais ficariam ofendidos com as minhas palavras. No entanto, lá estava eu morrendo de vergonha ao lado do coreano extremamente educado. Pra ele eu não tinha coragem de dizer nada relacionado aquilo. Sequer conseguiria olhar na sua cara agora, então estico minhas pernas pra fora da cadeira a fim de sair dali o mais rápido possível.
Porém, Namjoon resolve abrir sua caixinha de surpresas mais uma vez ao segurar meu braço e dizer:
- Quer sair daqui comigo?
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