Aquela que Busca o Infinito
Você vai pra sempre estar em mim
Diz que a história não acabou
Que depois do universo ainda existe o nosso amor
Esse não pode ser o fim
Tem que existir outra versão
Depois do universo
Além da nossa dimensão
E eu te vejo lá
Depois do Universo - Guilia Be
NADA ASSOMBRA MAIS que as consequências de decisões; os espectros das pontos soltas das palavras que ficaram por dizer rastejando pela sua mente, sussurrando em seu ouvido as possibilidades desperdiçadas que não saíram do âmbito do "e se", os gestos nunca perpetrados por inúmeros motivos que teriam significado em seu momento, os equívocos que poderiam ter sido corrigidos com ações e, o mais cruel de todos, o que repetia tortuosamente que nunca mais recuperaria o que perdi no percurso - enquanto o mundo te superava, jamais conseguiria o mesmo de sua parte. E essa voz impertinente, rispidamente desdenhosa, tinha sua cota de razão, por mais que admitir tal verdade fosse o gatilho ativo para meu caos interno.
Emoções são abstratas, difíceis de compreender em totalidade. Muitas vezes se associam a ocasiões e, por lógica, a memórias que as representam. No entanto, uma das mais poderosas e que persiste mesmo após a resolução do fator desencadeante era a dor, o acúmulo espinhento em um núcleo instável que ameaçava ruir a estabilidade psíquica até mesmo da mente mais sábia, o mais resignado tem ciência e aceita-o como uma inferência de se estar vivo. Ela comporta os meandros da culpa, das dúvidas, a autocondenação, o desapego e a tristeza que se enraíza desde o coração e floresce em seu glorioso ápice no qual, o que resta, são lembranças estilhaçadas espargidas pelo chão.
Comparado ao antes, onde, apesar dos pesares, as peças poderiam se reencaixar novamente com um pouco mais de esforço, dessa vez, não se tratava de algo recuperável, uma fortaleza segura pra retornar quando você se quebrou em um caminho cheio de adversidades. Estava disposta a uma distância tênue da loucura inominável que se mesclava a impotência e ao medo, mas que ainda detinha uma ínfima chance de alterar, de ser o cataclisma capaz de reverter a sequência desastrosa que se seguiu desde o renascimento de Sebastian à nossa derrota.
Dante costumava dizer que não há arrependimentos quando se faz algo que realmente queria - uma decisão tomada de pleno acordo, mesmo se os resultados não parecerem favoráveis em um plano maior.
Você ainda acreditaria em mim se me visse nessas condições, Dante?
Abri os olhos há muito obscurecidos, visualizando um mar de cinzas que cobria-me parcialmente. Não muito habituada com uma divisão de cores tão constante, pisquei para adaptar minha visão melhor ao cenário. Ergui os braços trêmulos, um esforço demasiado mundano, mas que me proporcionou uma concepção mais nítida da minha individualidade e que não era uma parcela consciente de delírio.
Alheio a minha inspeção, um floco assentou em minha bochecha, o que me fez reparar mais no cinza que se manifestava em mais neve.
Pode soar bobo, pode rir se quiser, mas gostaria de ver a neve com você.
Inicialmente relutando em sair da zona de conforto, me aprumei e esquadrinhei o espaço ocupado pelo branco e estremeci. Parte do meu corpo estava soterrado e a temperatura, que não me afetou durante esse tempo, me atingiu com toda força, sobretudo sem nada para me cobrir e exposta ao vento frio, completamente nua e desprotegida. Conseguia definir minha própria silhueta, vendo como meu peito se movia lenta e ritmadamente com o processo desgastante de respiração, o ar gélido vergastava contra meu rosto e invadia meus pulmões com uma fúria rascante.
- Achei que não acordaria.
Minha mente me recordou trechos dos eventos anteriores, da presença da entidade ali, me observando feito um corvo com as íris ônix lustrosa e... Fundas. Não, esse não era o termo adequado para elencá-la. Um buraco negro faminto que devoraria qualquer um que se atrevesse a mirá-la por muito tempo.
- Estava esperando há um longo período para que decida esse impasse.
Não muito confiante em minha estabilidade, me levantei ignorando o ressoar gélido soprado em mim. Comecei a andar, lenta e certa de qual direção ir, torcendo para que ela entendesse o recado.
Não adianta lamentar pelo que perdi tampouco me resguardar em dor.
Meus pés doíam terrivelmente pelo frio cortante sob eles, os riscando e os esfriando conforme prosseguia. Pela minha visão periférica, para consternação, vislumbrei um vulto de vermelho que passou despreocupadamente e, por um instinto, virei-me em sua procura, me negando a aceitar que seria fruto da minha imaginação beirando a insanidade.
Chacoalhei a cabeça para espantar tais lembranças, focando unicamente no que deveria fazer.
Em determinada parte do trajeto, escorreguei em algo estranhamente macio. Aflita com os efeitos primários daquele inferno congelante, mirei o monte de neve que tropecei e engasguei com o que vi; a coisa flácida caída em um ângulo grotesco e expressões congeladas iguais a uma boneca de cera esculpida... A minha imagem. Incapaz de gritar, chequei horrorizada a semelhança atroz, o olhar vítreo que me encarava fixamente sem nunca desviar e o sangue que, não mais brotava, manchava o campo branco e o tingia de vermelho carmim que verteu de tal forma que desenhou uma flor medonha.
Ela, de fato, possuía os mesmos traços, a face, tudo absurdamente idêntico a mim. Contudo, sem o rubor facial que indicava pulsação, um coração batendo, nem mesmo o movimento do peito ao tragar oxigênio.
- O que isso significa?
A figura que me acompanhava mirou o corpo e, sem se abalar com a descoberta, continuou andando, impaciente com minha demora. Mortificada, com os sentidos trabalhando a mil, tive uma perspectiva mais ampla do local e os vários cadáveres, todos engessados com a minha cara, largados pela relva congelada. Todas morreram encadeadas com feições indiferentes e os olhos bem arregalados.
- Ei! O que isso significa? - esbravejei me firmando de pé. - Não me ignora, porra!
- Não é óbvio? - me olhou por cima do ombro, cética. - É um depósito de corpos.
- Depósito de corpos? Meus corpos! - rugi através do vento ferro. - Elas são eu, que merda é essa?
- Quer se juntar a elas, por acaso? - com a mandíbula rígida e uma carranca psicótica, ela indagou.
- Como é? - guinchei.
- Cala a boca. - exigiu com aspereza. - Para de distrações.
Meu estômago se contorceu em repulsa e terror. Sem alternativa, rastejei para longe dos amontoados de cadáveres e parti furiosamente. A queda de temperatura diminuiu a sensibilidade da pele e a sensação térmica era de estar soterrada em camadas grossas de neve sem ter meios de escapar.
Ruídos de gotejos ecoaram e, de certa maneira, me forneciam uma sutil noção do tempo para que contasse cada goteira, infundindo a ideia de que seria para assimilar as horas e conservar a lucidez que me restava.
Enquanto andava, imersa em reflexões, percebi um aro frio no meu dedo ao girá-lo involuntariamente.
Estendi a mão sobre minha cabeça, apreciando o resplendor do anel em meu anelar. Sinais de desgastes físicos, devido ao uso contínuo e indiscriminado em lutas, se apresentavam em sua fina estrutura, porém nada que deslegitimasse seu valor emocional e estético, na verdade, agregava ainda mais com sua resistência e estabilidade. Era a única coisa que restou da minha antiga vida, da minha individualidade como a Diva do futuro estilhaçado - de um tempo desfeito pela guerra.
O adereço simbolizavam, não somente a conceituação material, também um contrato, uma promessa que nunca se cumpriria
Fechando os olhos, vertendo em águas cristalinas, as lembranças se aclararam, resgatando as emoções frescas do evento: o dia que Dante me presenteou com o anel. Minha mocidade me conferia uma óptica bastante ingênua de que isso significava que, em algum momento, seria uma prova de que o destino nos unia como um casal, que teríamos um final feliz em meio a loucura de viver em uma dimensão ímpar. Agora os sonhos daquela época se reduzia a um mero delírio juvenil que se perdeu nos confins do tempo, no intervalo entre o passado e o meu presente - a definição de pretérito imperfeito.
Lágrimas transbordavam silenciosamente, molhando minhas bochechas enrubescida.
É impossível impedir o choro a essa altura.
As cores ao meu redor se desbotaram, não havia um foco de luz fixo além do que emanava de mim. No entanto, não impediu que esse fato se concretizasse e o cinza se tornasse o regente monopolizador, incutindo um monocromático doentio.
Feito um erro na projeção de luz em uma máquina, no qual não se forma uma imagem estável, minha mão de retorcia em um ruído de cores - um glitch curioso que não fazia sentido ser reproduzido na vida real.
- Vai mesmo ficar assim? - a voz entediada resmungou. - Você sabe muito bem que essa é só uma percepção que seu cérebro criou sobre a falha da sua existência. A mente humana, por mais geniais que sejam, só conseguem captar um número finito de informações. Eles entendem que há muito mais coisas que a mera visão e tentam, de acordo com o que acreditam, pôr em figuras cardinais para se certificar que é algo tangível.
Inclinada a rechaçar a oferta, cerrei as pálpebras, sendo assaltada por emoções que transbordavam com fúria de um gêiser, devastador e impossível de bloquear. Havia muitas frases, indagações e manifestações de sentimentos que nunca vieram a tona, que nunca contei, por mais que desejasse com ardor. Pendências poderiam ser um peso muito maior na consciência que uma falha em tê-las exposto.
- O que reside no seu coração... - retornei a lucidez com o murmúrio do Carma. - Sentimentos nublam a razão, desfocam do que é certo.
A divagação dele germinou em mim, tecendo suas raízes em meu amago e instigando-me a encarar a crua e cruel verdade: por mais que negasse, foram justamente os erros que cometi devido minha incapacidade de conter o que sentia que transformou o mundo em um terreno infértil de trevas.
- É mesmo necessário? - minha voz saiu tão arrastada que mal a reconheci.
- Sim, muito necessário. - ela estendeu os braços de uma maneira quase displicente ao mostrar os cadáveres que nos cercava. - Já tem a prova suficiente, o que mais quer?
- Como posso saber se vai dar certo? Como saber se posso confiar em você?
- Essa é a graça: não há garantias. Você só saberá se tentar, é simples. Tudo é questão de risco, saltar no abismo, entende?
- Essa não é a resposta que procuro.
- É a única que posso te oferecer. - replicou com seriedade. - Escolhas são sempre difíceis, nada vem fácil sem um preço. Todo mundo já perdeu algo importante em algum momento. - havia dor em sua exclamação, algo que veio a superfície após um longo suspiro. - Mas se todos tivessem a chance que você tem agora, nunca deixariam para trás. Há certas coisas que devem ser feitas por um bem maior.
Estranhei o modo mecânico como ela soava.
Vi como a silhueta feminina escura se desestabilizava.
- Se apresse.
Uma fissura luminosa emergiu em um trinco, como se a realidade em si, se rompesse diante de mim, se fragmentando.
Estiquei a mão para alcançar a luz e, lentamente, sendo engolida por ela.
Lancei-me ao vazio, os braços estendidos para tatear o que poderia encontrar após atravessar a luz... Exceto sombras.
Cambaleante, arrastei-me por um infindável corredor de sombras vivas, um organismo que pulsava ao meu redor a medida que debilmente prosseguia em direção ao passado. O fluxo do tempo é algo bem curioso comparado ao conceito dimensional, embora, em teoria, fossem tão interligados que não existia tantas distinções de um para o outro. Para atravessá-lo se exigia uma poderosa força de vontade para não ser absorvido em meio as linhas que se dividem infinitamente em diversas vertentes, a remanescente fagulha de vigor que sustentava meu corpo fora o suficiente para desassociar a carne da alma, obrigando essa chama bruxuleante a servir de combustível para mais uma missão que iria emitir juízo do destino da humanidade - e o meu também. Acessando as memórias da Arya e o conhecimento secular cultivado, muitas das dúvidas se aclararam e, conformada, naveguei contra a maré.
Cruzar a contramão de um ponto do futuro para trás seria uma oposição a ordem natural, estava não só abrindo mão do que fui como, também, do que foi escrito. Sem mais Sebastian desperto, sem a influência dos Pecados, sem o mundo mergulhado em Trevas e, sobretudo, sem ninguém que amava desperdiçando a vida e os sonhos em uma guerra sem sentido. O alto risco dessa sandice significaria o fim, a última chance e precisava ter mais do que uma postura desnecessária de mártir. Suportando a fraqueza consequente da batalha, impulsionei meu corpo no primeiro obstáculo que emergiu: a pressão para que retornasse formou uma barreira invisível que impedia que o curso se rompesse e fluísse no sentido contrário. Para alguém que abandonou tudo em prol de um bem maior, pelo menos em um intento final, nenhum bloqueio me impediria de cumprir meu próprio.
Arremessei-me com tudo para que a energia que ainda tinha abrisse um rombo no mecanismo de segurança temporal, seguindo com o máximo de rapidez que minhas pernas vacilantes podiam. Precisava de um passo... Um único passo até... Joguei-me para frente, curvando ligeiramente para expelir a bolha de ar que engoli numa tragada só. Enquanto meu cérebro processava o ocorrido, meu corpo tentava se acostumar com o impacto brusco e a bagunça de percepções que confundiam meu cérebro não muito estável.
Um rugido esganiçado irrompeu pela garganta seca: duas forças antagonizando para decidir qual seria a dominante nessa relação de simbiose forçada no qual fora submetida. Meus dedos se contorciam de modos inumanamente impossíveis de coordenar, lágrimas ardiam nos olhos ressecados pela falta motora das pálpebras, e meu corpo suava pelo conflito interno travado sem piedade. Não conseguia encontrar minha própria consciência em meio aquele caos até, por fim, me estabilizar, estabelecendo-me dentro daquela que seria eu.
Me endireitei, com os pulmões ardendo no frenesi de comportar o oxigênio que respirava, e vislumbrei o cenário a minha frente: uma plateia que me encarava em expectativa e esnobe julgamento.
Resfoleguei, assombrada com a quantidade generosa de pessoas que aguardavam o resto do ato. Meus dedos delgados se gastaram pelos fios parcialmente presos a um elaborado penteado que moldaram para replicar o estilo das mulheres renascentistas.
Mesmo não tendo uma imagem completa, facilmente descreveria minhas características físicas: os cabelos loiro-morango, olhos castanhos, leves sardas espalhadas pela face pálida e um gosto musical bastante requintado. E cantava, ópera para ser mais específica. Querendo me recompor para não atrair mais olhares inquisidores e críticos, reparei melhor no ambiente e nas vestimentas que usava e busquei nos arquivos de recordações dessa cantora uma informação, um nome, uma identidade específica, porém nada me ocorreu.
Abismada, mirei para um assento em especial, no instante que nos encontramos - o vislumbre do prateado e vermelho em disparidade do resto -, recuei involuntariamente e sai do palco ignorando os burburinhos que emergiram com a ferocidade de um predador que anseia devorar a presa.
- Que merda é essa? - praguejei, removendo os pesados acessórios do figurino e que dificultavam uma locomoção mais veloz. Fui direto para o camarim e examinei a ruiva que mordia o lábio inferior reprimindo a frustração com o desastroso espetáculo.
Aquela era eu, mas... Também não era eu.
Que droga está acontecendo? Cadê Carma?
- Essa última parte, a da fuga - resfoleguei ao reconhecer a voz. - Estava no script ou é o que chamam, no show business, de improviso? - o tom sarcástico carregado de diversão interrompeu a breve crises de identidade que estava prestes a despontar. - Ópera não é meu estilo, mas esse finalzinho me surpreendeu. - uma mão quente tocou meu ombro. - Você está bem?
Virei-me para encarar Dante, perplexa. Não, mais do que isso...
- Não... Não pode ser - murmurei em choque. - Não é possível...
Dante esfregou o queixo, pensativo.
- Sou tão bonito assim a ponto de fazer duvidar da realidade?
Dante. Era mesmo ele. Não o que conhecia, o homem maduro com a barba mal feita e um estilo menos excêntrico. E sim um mais jovem, a flor da idade, no auge dos seus vinte e poucos anos, com uma escolha controversa de roupas e um humor mais fanfarrão que sua versão mais velha.
E, ainda assim, ele era tão lindo quanto a retrato em minhas memórias.
A razão censurava as emoções que vê-lo novamente desencadearam em meu interior, todos os sintomas que reconhecia muito bem e que, mesmo com os anos, nunca mudavam - mostrando que apesar das diferenças e desentendimentos antigos, o que nos unia viveria além das dificuldades. A princípio me neguei a ceder ao incontrolável desejo de me jogar nos braços dele, chorando em silêncio sob o olhar intrigado do jovem Devil Hunter, mas, conforme os minutos se arrastavam, mais renunciava essa imposição.
O começo pra ela era o fim pra mim: o fatídico encontro com Dante, o meu Dante, tinha resultado em uma dolorosa separação e, agora, reencontro seu eu juvenil.
Com as mãos trêmulas, acariciei o rosto dele, sentindo a textura macia e o calor sob meus dedos. Satisfazendo meu instinto mais primitivo e carente de tato, contornei, com o polegar, os lábios que se abriram para dizer alguma coisa que nunca saiu. Ele não recusou o toque tampouco foi avesso a tal, Dante parecia entretido e curioso pelo desenlace da relação.
- Pelo visto quem ganhou a melhor parte do espetáculo fui eu. - vocalizou, segurando gentilmente minha mão. - Você bem que avisou que iria me surpreender, só não imaginei que fosse tanto.
Algumas lágrimas molhavam minhas bochechas.
- Ei, tem certeza que está bem? - Dante franziu o cenho com minha reação. - Gosto da ideia de que minha presença te emocione, mas não que te faça chorar, ruiva.
- Não sabe o quanto é bom pra mim te ver. - confessei no auge do que sentia por revê-lo, independente de qual forma.
- Falando assim parece que não nos falamos, nos vimos ontem, não lembra?
Saindo do meu torpor sentimental, assenti, concordando com algo que sequer recordava. Puxando toda veia teatral que existia em mim, atuei como se compreendesse do que se tratava.
- Que cabeça a minha... - me acomodei numa cadeira. - Ah, bem, o que achou do espetáculo?
- Quer minha opinião sincera ou que eu minta apenas para ganhar pontos extras com você? - se apoiou na parede, ostentando um sorriso de escárnio.
- O que achar melhor.
- Foi bem... Interessante. Mas ainda fora do meu gosto. - admitiu sem temer uma represália. - Olha, pra mim, ópera é a última coisa que iriam associar comigo. Dá pra perceber isso de longe.
- Mas você veio. - uma voz, igual a minha, articulou através dos meus lábios. - Fico feliz pelo pequeno esforço e por mentir pra não me magoar.
- Então... Quer sair pra beber algo? - sua expressão mudou, um vinco de preocupação surgindo em sua testa. - Por mais que queira acreditar que você seja perita no improviso, não acho que o ato final tenha sido realmente uma técnica de teatro pra causar drama e engajar o público. Sua saída foi bem genuína pra mim.
- Você é perspicaz, meu caro.
Ele se aproximou novamente, de uma maneira tão confortável e acolhedor.
- Pode me contar se tiver com algum problema. - disse com nuances claras de simpatia.
Olhei para Dante, o jovem irreverente de Devil May Cry 3 e vislumbrei, por um fugaz instante, o meu Dante, vendo o homem que ele se tornará com a passagem dos anos. Liberar uma parcela significativa do que recordava me abalou mais do que previ.
Relutei em lhe responder, processando a corrente de sentimentos e pensamentos que colidiam com ferocidade para determinar como procederia a partir daquele ponto. Segundo Carma, iria ser minha guia nessa viagem e, para todos os efeitos, aquele não era o passado original. Não querendo tirar conclusões precipitadas, mas estava mais para algum universo alternativo no qual Dante e eu nos conhecemos há muito mais tempo do que na realidade que vim. No meu mundo original, de fato, era uma pessoa de outra dimensão que foi parar dentro do jogo que, além de ser real, tinha muito mais a oferecer que sua visão midiática.
- Não é nada de mais, fica tranquilo. - esbocei meu sorriso mais animado. - Não quero ficar aqui pra ver as consequências da minha saída. Amara vai cuidar disso pra mim.
Abri os braços para formar um portal dentro do não tão grande camarim. A rajada de vento espalhou papéis e objetos pequenos, uma cacofonia que poderia muito bem chamar atenção para nós - não que realmente me preocupasse.
- Tem mais algo que deva saber? - Dante gracejou. - Abrir portais, músicas mortais, boa dançarina. Tem algo que você não saiba fazer?
- Talvez... - umedeci os lábios, afugentando os velhos fantasmas que me assombravam - Quando você descobrir, me conte.
- Temos uma aposta? - coçou o queixo.
- E o que quer apostar?
- Se eu conseguir descobrir no que você não é boa, o que acha que eu devo ganhar?
- Dinheiro? - arrisquei, rindo.
- Isso é bom também. Mas acho que você pode aumentar o prêmio. Quem sabe, um beijo?
- Não é como se precisasse disso - minha confissão fora interrompida com batidas frenéticas na porta e uma voz feminina urgente.
- É, parece que nos descobriram.
O frio e o quente se enroscaram em um choque térmico que eletrizou nossas mãos, contudo, não suficientemente eficaz para esmorecer o destemor que consumia meus sentidos, somada ao arrebatador fascínio que nutria, em grandes dosagens, por Dante e as incontáveis experiências de risco que partilhávamos no trabalho dele como Devil Hunter. De um panorama mais objetivo, qualquer versão materializada dele me fazia duvidar do que julgava ser paixão - o que sentia ultrapassava o que declaravam levianamente como amor.
Sem hesitar, agarrei a mão de Dante, deslocando-nos velozmente, e adentramos no portal que nos conduziu ao lado de fora da casa de ópera. Um arrepio se instaurou pelo meu sistema nervoso com a sensação de queda de temperatura gradual que sensibilizou minha pele, compelindo-me a me encolher com o sopro inesperadamente inóspito.
Elevei a cabeça, assistindo os pontinhos recaindo sobre a cidade. A camada de branco úmida se precipitou sobre nós com delicadeza, dançando com a brisa gélida que rodopiou entre nossos corpos.
- Isso poupou bastante tempo. - a curiosidade oculta em Dante vibrou com a afirmação. - O único estranho é a neve fora de estação.
É mesmo, não faz sentido, pensei.
- Melhor sairmos daqui. - Dante proferiu, estendendo a mão. - Conheço caminhos mais rápidos, claro, se for do seu interesse.
Segurei a mão dele, confiante no que ele pretendia realizar para a fuga. Dante sorriu, puxando-me de encontro ao seu peito assim que saltou para o prédio ao lado. O frio glacial penetrou em minhas roupas, fazendo com que estremeça e me apequene no refúgio dos braços do mestiço que me apertou ligeiramente em resposta a minha ação. Se houvesse algum resquício de oposição, por menor que fosse, se extinguiu.
No entanto, a sensação de, subitamente, esquecer de uma informação de extrema importância persistiu. Embora me esforçasse para cavar fundo nos canteiros de minhas memórias, mais me deparava com nada - uma trilha de interrogações que não iam a lugar algum. Tinha uma tarefa que me fora encarregada antes do pontapé inicial que me colocou em marcha.
- Algum problema?
- Não. Não. - toquei a testa me certificando tolamente que tudo estava em seus devidos eixos. - Foi só uma impressão estranha.
Movi ligeiramente a cabeça para mirá-lo, surpreendida com as orbes azuis cerúleas me fitarem de volta sob a luz discreta e enigmática da lua. O prateado projetava cintilância de diamantes minúsculos nos flocos de neve que caíam, um performance natural em um cenário comum. De repente, uma voz em meu interior se prontificou a assumir o controle.
- Apesar de fiasco da apresentação, acho que posso dizer que ter você perto tornou esse momento menos difícil.
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