──. um
Este capítulo foi betado por serpentae - projeto WonderfulDesigns
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Rose Walker vivia há anos em um estado de sono interrompido e agitado, sem sonhar de verdade. Não existia mais aquela sensação de ter vivido alguma coisa enquanto dormia.
E Sonho, em seu reino, a observava a cada segundo, minuto, hora e, bem, todos aqueles anos. Ainda tinha rastros de Daniel ali, portanto, um Morpheus mais impulsivo que, ainda assim, não queria cometer erros. Ele passou a entender com a ajuda de Luce, que haveria cicatrizes ali, e Rose, por sua vez, temia alguma coisa.
Quando adormecia, ela via vultos e fragmentos que sumiam em um vácuo claro e gélido. Coisas que, em algum momento, haviam sido algo: uma lembrança, um cenário fantasioso, um anseio profundo, um pesadelo. Qualquer coisa permanecia ali, distorcida, até que desaparecia em meros segundos. E então, ela apagava por oito horas, sem viver absolutamente nada no sono até que acordasse para deixar Jed na escola e correr para o trabalho.
Ela ainda pensava no futuro e, consequentemente, no passado. No presente, ninguém pensava até que se tornasse pretérito.
Antes de dormir, Rose fazia uma espécie de oração interna, para Deus talvez, ou para qualquer um que estivesse disposto a escutá-la. Soavam como gritos silenciosos de satisfação. Ela estava satisfeita com a forma como as coisas tinham acontecido. Você sabe, sem transitar por realidades carregando a responsabilidade — literalmente — de um universo nas costas. Além do mais, ela tinha Jed, a quem havia procurado por sete anos, e, como esquecer, parecia não haver mais perpétuos, bruxas e outros seres a perseguindo.
Ela estava satisfeita.
Depois de passar por todo o caos de uma existência, você queria apenas descansar. Não era fácil lidar com o fato de um dia ter sido uma falha na matrix.
Podia-se deduzir a falta que sentia de Gilbert, por mais curta que tenha sido sua companhia. "Depois de minha morte, se permanecer no sonho, me visite", lembrou-se dele dizendo antes de se tornar um ecossistema. Ela não o fez. E se sentia mal por isso. Também soube que outros pesadelos de Jed se tornaram sonhos, e Rose pensou em reencontrá-los.
Mas ela não conseguia.
Ela poderia. Tinha a capacidade, mas era impedida por algo, por alguém, por si mesma.
O Rei dos Sonhos não perdia muito de seu tempo com essa anedota; todavia, a ligação com Rose estava 'tirando seu sono'. Ficar sentado no início da escada para seu trono passou a ser uma rotina em algum ponto do dia. Suas mãos entrelaçavam-se uma na outra e os polegares brigavam entre si, revelando sua postura encabulada. Ele não era muito diferente do que Morpheus fora um dia; um emo. Ao mesmo tempo, era um pouco mais doce, juvenil e apegado. Ele queria falar com Rose, ao menos para dizer: "Olá, como vão você e Jed?" ou "Poderíamos pôr as cartas na mesa e conversar um pouco? Talvez para eu me desculpar pela criatura ranzinza que fui antes".
Ele não poderia simplesmente ir ao mundo desperto e começar a observá-la da ponta de sua cama, apenas para iniciar uma conversa.
— O senhor pode visitá-la no mundo desperto — começou Lucienne. — Certamente, não há problema em tocar a campainha do apartamento de Rose e apenas conferir se está tudo bem.
Morpheus não respondeu, ao menos não com palavras. Infelizmente, o lado orgulhoso de seu antecessor parecia bem vivo naquele instante. Seu olhar certeiro em direção à elegante bibliotecária na ponta do hall foi uma resposta suficiente. Ele inclinou a cabeça em confirmação.
— Ela e seu irmão estão bem — iniciou Sonho. — Mandei Matthew algumas vezes na semana.
— Então não vejo problemas para tanto alarde.
Sonho suspirou.
— Ela não tem sonhado.
— Não se deixa sonhar — Luce corrigiu.
— Isso não era para acontecer. Não há nenhum motivo especial para ela não vir ao meu reino. Temo que algum vestígio de "Vórtice" reste nela.
Lucienne aproximou-se, com as mãos descansando atrás de si. Ela tinha aquele olhar que seu mestre tanto desaprovava.
— Meu senhor, existem muitas maneiras de se controlar um ser humano. Mas, quando este tem total controle sobre si, até mesmo o falso livre-arbítrio parece ser irrelevante. Rose já foi inconscientemente muito poderosa; tem sangue dos eternos, e um ou dois anos para um ser humano não chega a ser um tempo excelente para superar traumas.
Ele parou de brincar com os dedos. Havia uma razão pela qual Sonho amava e detestava as palavras de Lucienne: era porque ela o fazia parecer imaturo. Ele sabia de tudo aquilo, mas apenas fugia desses estúpidos problemas.
Ele considerava suas preocupações estúpidas.
— Isso responde perguntas, mas não dá soluções.
— As soluções são óbvias-
— Soluções que não me envolvam diretamente, Lucienne — Morpheus a interrompeu.
— Claro.
A palavra de Lucienne saiu em um sutil deboche. Aquele Sonho estava mais maleável a ser tão orgulhoso quanto.
— Ela é forte o suficiente para desejar não encontrar-se com nada disso. — Ele sinalizou ao redor. — E talvez eu devesse deixá-la quieta. Mas não consigo.
— É apenas ardiloso para o senhor.
— Não seja tola...
Lucienne se aproximou com um pouco mais de frenesi antes de continuar.
— Sonhar é algo tão natural quanto morrer, desejar ou, por que não, destruir. E o senhor não está no controle do "autocontrole" da senhorita Rose. Isso afeta-o. — Pausou por um instante. Era verdade que Morpheus dera mais liberdade a ela para que fosse sincera e sugestiva, ainda que isso a deixasse receosa por provocar alguma irritação em seu mestre. — O senhor teme que o descontrole no reino do sonhar possa ser abalado, como no passado?
Ele levantou-se.
— Se não posso controlar meu próprio conceito sobre os humanos, isso prova que ainda há uma falha. — Ele voltou a cruzar os dedos. — E eu preciso tapar as rachaduras antes que tudo transborde.
[...]
Pendendo a cabeça para o lado, Coríntio manteve um silêncio debochado para Sonho. Ele deixou a boca semiaberta, semeando a dúvida entre um sorriso ou apenas uma forma de respirar, exibindo seus bons dentes.
Deu uma longa e propositalmente barulhenta sugada no 'bubble tea' que havia adquirido no mundo desperto. Talvez fosse sua primeira vez com aquilo, já que seu sorriso se desfez, e ele colocou a língua para fora segundos depois de engolir, percebendo que não gostava.
— Por que não manda o periquito preto? — Apontou com os 'olhos' para Matthew, que estava no ombro de Morpheus.
— Vai se ferrar! — crocitou Matthew.
— Eu pensei nisso.
Coríntio sorriu, desta vez de forma mais audível com a resposta vaga.
— Acabei de voltar de lá. — Ele levantou levemente o copo de plástico, em seguida abrindo-o e cutucando as bolas de sagu no fundo com o canudo.
— Você tem saído muito do reino. Devo me preocupar? — Morpheus olhou de relance para o copo.
O pesadelo assumiu um semblante vazio; ele ficou um pouco chateado. Assim como Morpheus, Coríntio não era seu antecessor, embora, como seu mestre, tivesse lembranças e vagos sentimentos de antes. Mas, acima de tudo, este Coríntio havia ganhado um pouco mais de bom senso e lealdade. Ficou magoado ao pensar que Morpheus ainda poderia não confiar nele completamente.
— Não. — Foi uma resposta vaga e direta, cheia de outros argumentos indizíveis. Ele removeu algumas bolas de sagu e arrastou o copo de chá para perto de Matthew, que começou a beliscar algumas gotas. — Então fui o escolhido para lidar com mais um pirralho humano? Isso me deixa lisonjeado.
— Não acho que poderia tocar o cerne do problema — o corvo pronunciou, deleitando-se com a bebida.
— Matthew pode sobrevoar as janelas e observar de fora — Morpheus proferiu. — Você pode atravessar paredes e guiar até a porta.
— Enquanto você — enfatizou o loiro — pode atravessar janelas, paredes, chãos, corpos e mentes. Deve estar muito ocupado.
Sonho pressionou a mandíbula. Todos o chamavam de covarde.
— Tente guiar Rose para entrar em meus reinos novamente, e quando digo "guiar", refiro-me a fazê-lo enquanto ela estiver sonhando ou acordada.
— Você disse que ela se nega a sonhar. Como acha que vou conseguir alguma coisa com isso? — Coríntio entrelaçou os dedos sobre a mesa que os separava e inclinou-se para seu mestre com escárnio.
— Você não é um sonho, Coríntio, é um pesadelo. É o espelho sombrio da humanidade, mas, diferente de antes, o medo que você projeta não causará traumas significativos.
— E sim, caminhos! — Matthew completou de maneira exagerada, como alguém fantasiado de fantasma com uma toalha, tentando assustar com um sonoro "boo".
O loiro mastigava as gomas que havia posto na boca enquanto levantava uma sobrancelha para o corvo.
— Então, eu preciso que você... — começou Sonho, mas foi interrompido abruptamente por Coríntio.
— Sei, sei, já entendi. — O pesadelo retirou do bolso seus óculos redondos e escuros, colocando-os no rosto. — Fazer exatamente tudo o que sempre faço.
Levantou-se, resmungando um "palhaçada isso".
[...]
Ela parecia estar de cabeça para baixo. Não havia nada como de costume e, se houvesse, não teria lugar por muito tempo. Mas o "estar de cabeça para baixo" era novo. Não havia nada, como mencionado; era um escuro infinito, mas Rose tinha a impressão de estar ao contrário. Sentou-se no que parecia ser um chão, uniu os joelhos, apoiou os antebraços por baixo dos músculos isquiotibiais e colocou o queixo sobre os joelhos.
Não falou e não ousou pensar em nada.
Em algum momento, ela sempre "apagava" e estava esperando por tal momento. Mas o tempo parecia se esticar e, mesmo que no mundo desperto durassem apenas seis a sete horas de sono, ali a sensação era de eternidade. Esperou por, ao que parecia, dias. A cada segundo, seu coração disparava de ansiedade, suas mãos tremiam e as lágrimas silenciosas incharam seus olhos. Rose queria sair dali, acordar, "apagar".
Mas ficou presa naquele vácuo enquanto uma silhueta a observava de longe.
Ela se recusava a levantar-se, a falar ou a fazer qualquer outra coisa.
"Há alguns anos, minha melhor amiga morreu. Ela foi morta — ou talvez tenha se suicidado — em um massacre. Ela foi a mais inteligente que conheci. Gostaria de falar com ela novamente."
Ela escutou exatamente isso vindo daquela silhueta. Era a voz de sua própria cabeça? Mas era verdade; ela já havia se esquecido daquilo.
O despertador não tocou. Quem o fez foi Jed, chacoalhando a irmã pelo ombro, que, em um pulo, acordou. Sua respiração era ofegante. Ela não estava chorando, tremendo ou ansiosa, mas tomou para si a sensação de ter passado por uma queda de vários andares e sobrevivido ao impacto no chão.
— Rose — começou o menino —, eu vou me atrasar.
— Jed...
Seu olhar percorreu o quarto; por um minuto, ela esqueceu que tinha um irmão e uma vida. Sabe, quando você acorda de repente e seu sistema operacional demora a carregar completamente. Eram sete e quarenta, e Jed já estava muito acomodado em ser levado à escola de carro por Rose.
— Certo, me desculpe. Já se aprontou?
— Estou só esperando você.
Levantou-se correndo até o armário e pegou um casaco. Ela não estava mais trabalhando fora, portanto, não precisava ir a nenhum outro lugar após deixar Jed na escola. Lyta desapareceu. Carl e Hal evoluíram e foram cuidar de suas vidas. Ela estava sozinha. Bom, ela, Jed e Gil, o gato de rua que apareceu em sua janela um dia e nunca mais foi embora; ela lhe deu o nome de seu amigo, aquele que de repente agora era um lugar.
Ele também foi o mais inteligente que ela conheceu. Gostaria de conversar com ele novamente.
— Você está bem? — Jed perguntou, notando a situação nervosa e trêmula que seu irmão começou a perceber.
Rose olhou para suas mãos. Pareciam vibrar como uma máquina de tosa e estavam quentes demais. Começou a pensar que poderia estar passando mal; ela não estava. Entretanto, após esse palpite, iniciou-se uma leve náusea. Jed apoiou a mão em suas costas, preocupado. Ela o olhou e respirou fundo. Aprendeu que, enquanto Jed fosse menor de idade, ela jamais deveria sentir qualquer mal-estar.
— Foi só um pesadelo — respondeu, abrindo a porta do apartamento e dando passos apressados para o corredor. Jed ficou pensativo e parado por um segundo. — Anda, Jed, a gente vai nos atrasar.
O caminho pareceu longo demais, pois o garoto não proferiu sequer uma frase completa. Rose ainda pensava sobre sua noite e não teve iniciativa para perguntar o motivo do silêncio do irmão. O garoto não era burro e já haviam tido a conversa sobre Rose não sonhar mais. Um pesadelo? Para Jed, um pesadelo ainda era um sonho.
— Com o que sonhou? — ele iniciou.
A verdade era que Rose não conseguia mais ser tão transparente como antigamente. Ela segurou firmemente o volante na curva da rua, próxima de onde deveria deixá-lo. A escola era particular e, possivelmente, muito boa, graças a Paul e suas ávidas recomendações. Havia muitos carros e crianças transitando próximo à entrada da escola, por isso, Rose optou por manter certa distância, incentivando o irmão a andar. Ela parou.
— Não tenho certeza — pressionou os lábios. — Foram daqueles que você não se lembra.
Jed olhou para o lado de fora do carro. Ele não ousaria insistir; não havia motivos para duvidar. Era apenas um garoto preocupado com uma irmã que parecia tentar ser boa demais o tempo todo. Rose estava exausta, e Jed não era uma criança estúpida.
— Saia do carro. Se chegar atrasado, a culpa é toda minha.
Jed sorriu, saiu e fechou a porta com força.
— Ei! Não bata desse jeito.
— Foi mal! — gritou, já a alguns passos de distância.
Rose não costumava ir embora até que avistasse seu irmão entrando pelos portões da escola. Ela era cautelosa com ele. Haviam passado muitos anos separados, e Jed experimentara muito sofrimento nesse período. Ela tinha medo de que algo acontecesse novamente. Ele desapareceu entre os joviais uniformes azul-acinzentados. Rose, ainda com as mãos no volante, encostou a testa nele e descansou.
A algumas árvores secas dali, Matthew observava. Embora a missão tivesse sido atribuída a Coríntio, Matt gostava de se manter atento. Eles já haviam trabalhado juntos uma vez, por que não poderiam fazê-lo novamente? Juntos. Mas desta vez, separados.
Uma pedrinha atingiu sutilmente sua asa esquerda.
Um homem de cabelos claros estava encostado no tronco daquela árvore, olhando por cima das lentes dos óculos escuros. Coríntio ajeitou a armação. Ele abriu um pequeno saco com um pedaço de brownie.
— Ei, brrrrr — Matthew grasnou, voando em direção aos ombros de Coríntio. — Canalha.
— O chefe te mandou também, hum? — Coríntio deu uma mordida feroz no pedaço de bolo. Aquilo foi mais uma afirmação do que uma pergunta.
— Nah. — Matthew começou a bicar o alimento. Coríntio não se importou, então estava tudo bem comer comida com cuspe de corvo. — Se ele precisar de mim, vai fazer aquela pataquada de me sugar como uma descarga de privada. Estou aqui porque estava curioso.
— Perdeu seu tempo. Não pretendo falar com ela agora. Vou apenas observar.
— Está me gozando? Por quanto tempo?
Coríntio fingiu pensar.
— Eu preciso fazer algumas coisas antes de falar com a garota. Parece que esse trabalho vai sugar minhas energias mentais, então, seria interessante aproveitar mais um pouco dessa bela cidade.
Coríntio analisou um rapaz que passava ao seu lado. Ele o secou com o olhar.
— Está me dizendo que vai procrastinar com a Rose para paquerar rapazes? — Matthew grasnou. Não era fácil lidar com um corvo recém-transformado tentando não grasnar entre as palavras o tempo todo em seu ouvido.
— Vou apenas comer bastante. — O homem apontou para o brownie.
O doce foi partido ao meio, um pedaço considerável foi dado a Matthew, e o outro foi comido por Coríntio.
— Vou acabar engordando algumas gramas com essas besteiras humanas que você me oferece — Matthew reclamou entre bicadas e grunhidos.
— Pare com esse escândalo. — Coríntio o expulsou de seu ombro. — Você precisa aprender a se controlar, pássaro.
— Existem coisas que estão além da minha vontade, cara. — O corvo pousou em sua cabeça, insistindo em ficar 'acoplado' em Coríntio. — Assim como você, e quem sabe, a senhorita que está dando partida no carro.
Rose começou a sair. Coríntio se moveu lentamente para trás da árvore, de modo que ela não o visse.
— Acha que ela nos viu?
— E isso faz diferença? — O homem, parado na calçada, observava o carro preto seguir seu curso à distância.
A garota não precisaria trabalhar para se sustentar, visto o que Unity lhe havia deixado como herança e o grande auxílio de Paul. Já fazia algum tempo que ela tinha parado de se perguntar sobre Lyta, mas ainda questionava o que poderia ter acontecido com ela. Uma vez, ela teve um sonho, e nele ocorreu uma cerimônia funerária para Morpheus. Havia muitas pessoas — pelo menos, ela achava que eram 'pessoas'. Até que ponto algo pode ser considerado uma pessoa? Uma criatura com corpo de mulher e rosto de gato? Fadas, felinos gigantes e plantas conscientes? Ela apenas os colocou no mesmo saco de 'pessoas'. Pois então, havia um número infinito de seres no funeral daquele que, um dia, quis acabar com sua vida.
E ela viu Lyta. A mulher que um dia pareceu tão viva, agora estava um bagaço, apoiada em uma pedra enquanto as pessoas passeavam e conversavam entre si. Onde estaria Daniel? Ela perguntou a Lyta, que respondeu vagamente que alguém o havia raptado. "Se um dia você engravidar, Rose, acabe com isso. Acabe antes que o tirem de você à força." Essas foram as palavras que martelaram na cabeça de Rose por um tempo quando acordou.
Morpheus morreu. Daniel sumiu. Lyta estava presa em um luto infinito. Ela não sabia o motivo de cada uma dessas situações e deixou de se importar muito rapidamente.
Ao chegar em casa, Rose jogou a chave do carro no pires em cima da mesa do corredor. Gil veio se esfregar em sua perna; ele sempre estava com fome, pedindo por comida.
— Não está no horário de comer, Gil — Rose disse ao gato, que continuava miando.
Sentou-se no sofá, de cabeça baixa. O dia dela tinha iniciado de uma maneira muito acelerada e não tinha dado tempo de acordar direito; somente após deixar Jed na escola em segurança é que o dia de Rose realmente começava.
Esfregou os olhos com as pernas dobradas. Pegou o controle e ligou a televisão em um desenho animado caótico e colorido. Estava muito exausta e queria dormir mais um pouco. Era assim: havia vezes em que ela tinha insônia sem motivos; outras, conseguia ter um sono digno durante a noite, mas nunca sentia a necessidade de voltar a dormir depois que se levantava de manhã.
Aos poucos, seu corpo foi se acomodando no sofá, e a visão da televisão foi ficando turva. Em segundos, ela despertou e lutou para se manter acordada, tendo em mente que precisava preparar o almoço. Da janela, do outro lado, havia outro apartamento. O corvo mensageiro observava de uma sacada. Rose havia adormecido com um gato gordo sobre seu tórax. Ele voou até a entrada de um beco, onde Coríntio estava encostado em um poste.
— A garota parece ter dormido — Matthew grasnou para o homem. — Eu não consegui chegar perto da janela o suficiente.
— E por que não? Não é seu trabalho? Observador.
— Ora, havia um bichano fedorento com ela. Na sacada, havia uma caixa de areia ainda mais fedorenta. Eu odeio gatos.
— Você não come carniça? — perguntou o loiro.
— Sim, naturalmente. Embora o cheiro não pareça tão azedo quanto. Além do mais, se você continuar me oferecendo essas comidas humanas, não sei se meu paladar conseguirá voltar aos insetos e coisas mortas de antes.
— Vai sim, corvo. — Coríntio se moveu ao caminhar lentamente, enquanto Matthew tentava acompanhá-lo, planando. — A natureza, uma vez ou outra, é despertada.
— Por falar nisso, você tem passado muito tempo no mundo desperto, Coríntio. Não está aprontando novamente como antes, está? O chefe se aborreceria demasiado se mais uma vez tu cometesse tais erros.
— Não tenho aprontado tanto quanto deveria. Mas veja — Coríntio parou em frente à entrada do prédio cujo apartamento de Rose fazia parte —, se estiver interessado, nunca comi olhos de corvo em minha vida.
— Sai fora!
[...]
Desta vez, Rose estava no vácuo escuro de antes. Ela sempre tinha noção de quando dormia e estava em algum vão entre o mundo desperto e o sonhar; era nesse vão que ela ficava.
"Deve ser uma traição quando seu corpo volta contra você. Será que Zelda gosta de flores? Eu deveria perguntar, em vez de apenas trazê-las." De repente, sua própria voz, novamente como da outra vez, emergiu.
Agora, a garota não estava mais de cabeça para baixo como antes. Ela apenas estava lá, parada, de costas. Como sabia que estava de costas se à sua frente havia o completo infinito, assim como atrás e dos lados? Bem, ela sentia. Sentia que estava de costas para alguma coisa e, então, por instinto, ela se virou. Mas, quando o fez, teve a mesma sensação.
Quando havia algo atrás dela, se virava.
Quando havia algo ao seu lado, se virava.
E isso durou por horas. Horas no sono, pois, como esperado, no mundo desperto seriam apenas dez minutos de cochilo.
Coríntio, por sua vez, estava sentado na poltrona ao lado. Ele não estava ali necessariamente. Isso não costumava ocorrer com frequência, mas, quando estava no mundo desperto, ele não trabalhava como pesadelo. Portanto, aquela era a primeira vez que seu corpo permanecia 'acordado' enquanto tomava conta dos pesadelos de alguém.
Ele não precisava tocar em Rose, pois era um pesadelo unitário, estando presente ao mesmo tempo para absolutamente quantos seres vivos fossem necessários. Era quase como um ser absoluto quando se tratava de sua função.
Gostou de estar com Rose em seu sono. Lá era quieto, vazio e simples, como uma tela em branco. Ele só precisava de alguns bastões de tinta, pincéis e, "boom", uma obra-prima. Era só deixar marinar.
Ele olhou para o gato, agora no encosto do sofá, que não parecia se importar com o estranho ali. Olhou para as paredes: havia fotos e livros por toda parte. Matthew não quis entrar por conta de Gil, além do fato de que seus grasnos acordariam Rose muito rapidamente.
No pequeno rack da televisão, havia uma foto de Jed, Hal e Carl em uma praia. Coríntio havia encontrado Hal uma vez e, claro, teve algumas horas particulares na cama com Carl. O garoto, Coríntio também se recordava, parecia ter uma boa relação com Jed.
Coríntio tinha vagas lembranças experienciadas por seu antecessor e não gostava muito disso. Agora, de pé, caminhou lentamente para verificar alguns papéis sobre a mesa de escritório próxima à janela, a mesma que Matt usava para observar novamente o movimento do outro lado. O homem-chave, com uma das mãos no bolso da calça, usou os dedos da outra para folhear uma pequena pilha de papéis, onde apenas uma palavra ilegível estava escrita. Rose não tinha a melhor caligrafia, podia-se dizer.
E assim ele permaneceu, percorrendo lentamente a sala, averiguando cada detalhe da pilha de "bagunças arrumadas". Retornou o olhar para Rose, deitada no sofá, levemente encolhida com os braços cruzados. Coríntio conhecia a superficialidade humana e como as pessoas mudavam aspectos fúteis de si mesmas.
Rose não tinha mais as mechas coloridas e parecia ter desfeito os dreadlocks desde a última vez que "se viram"; resgatou de suas memórias.
Coríntio olhou para Matt do lado de fora. O corvo abria o bico e se movia, parecendo conversar com alguém.
Ele suspirou, retornou a Rose e decidiu sair do apartamento segundos antes de ela ter um despertar abrupto mais uma vez. Respirava forte, com a mão no peito. Virou-se bruscamente ao sentir que havia alguém atrás de si — como no pesadelo —, mas não havia nada. Sentou-se ereta no sofá e colocou a mão na testa; estava suando. Suas narinas se dilataram ao farejar um cheiro estranho misturado com alguma colônia barata.
Coríntio era descrito com um odor azedo e seco, talvez devido a todo o seu trabalho, mas não como algo podre ou degradante. Não era como Gilbert, que, em um abraço de despedida, Rose identificou com um suave cheiro de alcaçuz emanando de sua roupa. Quando Gilbert se transformou no Verde do Violinista e beijou sua mão, o aroma permaneceu por alguns momentos, e isso nunca saiu da cabeça de Rose.
Rose conhecia o cheiro de sua casa. Toda família tinha o seu próprio aroma. E, definitivamente, o cheiro de Coríntio não fazia parte da residência. Ela ouviu um grasnar vindo da janela. Ao virar-se para identificar o som, viu apenas uma sombra negra voando e desaparecendo de vista.
— Droga! — Ela supôs ser Matthew, e mesmo que não fosse, tudo o que aconteceu em menos de vinte e quatro horas não era coincidência. É claro que pensaria o pior.
Levantou-se e começou a procurar em cada canto da casa por alguém, algo. Nada encontrou.
Coríntio já estava na entrada da recepção, ajeitando os óculos.
— E então, Coríntio, como foi a visita? — Matthew apareceu sobrevoando sua cabeça.
— Consegui dar um pouco mais de emoção ao seu sono.
— Ora, conseguiu fazê-la ter pesadelos? Deixará o chefe com inveja.
— Ela não está exatamente no mundo do sonhar, Matthew. Parece que tem um interstício ligeiramente agradável no universo — Coríntio comentou, encarando a fachada à sua frente. — E você está atrasado, meu caro. Já estou trabalhando com ela desde que a missão foi incumbida a mim.
— A sério?
— Só pareceu mais emocionante desta vez. Existe uma espécie de calafrio excitante quando você invade os pesadelos de alguém estando acordado. — Coríntio lambeu os lábios. — Imagine o quão saboroso seria comer os olhos de alguém em sonho e na realidade ao mesmo tempo.
— Oh, bem... Deve ser diferente para você. E espero que não esteja pensando em comer os olhos da senhorita Rose.
— Não estou. Apenas imaginando. Você sabe, os olhos do desperto são deliciosamente fortes e físicos, enquanto os olhos no sonhar são um pouco mais doces e... mágicos. Imaginei como seria a mistura dos dois em conjunto.
— Estive falando com o chefe — Matthew interrompeu rapidamente o assunto perverso do homem — porque estava preocupado de não termos lhe enviado nenhuma novidade sobre o caso.
— Então era com ele que falava.
— Ele é ansioso, você o conhece.
Coríntio nada falou, começou a caminhar com o corvo pousado em seu ombro.
— Que tal um hambúrguer? Eu pago.
— É claro que paga. Sou um corvo, não tenho bolso — grasnou. — E veja só, você está compensando seu anseio por olhos com comidas processadas. Ainda me arrasta junto nisso.
— Tem razão, corvo, deveria evitar comer comida humana. Está deixando meu ombro dolorido.
Continua.
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