Capítulo 14
Terminei de lê-la com os olhos cheios de angustia.
A sensação de saudade e vazio foi massacrante. Eu já havia experimentado aquela solidão muitas vezes. Era dolorosa. Sempre fui solitária e acostumada com o oculto, o descaso e as proibições. Inclusive o meu orgulho naquele exato momento me repreendia continuamente somente por pensar em como seria se eu já o houvesse perdoado e nada daquilo fosse real.
Nós três seriamos uma bela família. Esses pensamentos me assombravam. A gravidez de Maitê me deixava mais sensibilizada e pensativa quanto aos motivos terrenos e sobrenaturais que podiam estar envolvidos. Eu acreditava em alguém soberano tomando todas as decisões por nossas vidas. E foi direcionada a ele que questionei naquele momento.
- Qual o propósito de tudo isso, Deus? - Não era bom pensar assim e eu fui capaz de compreender.
Guardei o papel de volta ao envelope e tornei a bordar. Passei minutos inteiros concentrada na tentativa de esquecer as palavras da carta, quando de repente assustei-me ao ouvir a gritaria vinda do corredor. Levantei da cadeira e fui olhar o que havia acontecido.
- Vou ser pai! – a voz do homem chegava a falhar pela intensidade da histeria.
Christian carregava Maitê nos braços, girando-a de um lado ao outro, enquanto ela soltava sorrisos e gargalhadas exultantes. Alfonso e Anahí vieram do corredor central na direção deles os abraçados com a mesma satisfação.
Recostei-me na beira da porta de meu quarto, com tranquilidade, admirando aqueles sentimentos serem expostos sem temor algum. Os casais não pareciam recear julgamentos. Os empregados espantaram-se com os gritos de Christian. Eles começaram a chegar aos montes até o ambiente contagiante, dando palmas e celebrando. Ambos eram muito estimados por todos ali.
- Hoje vai ser feito uma festa, e todos estão convidados!
- Eu fico responsável pelas bebidas e chamar os conhecidos mais próximos – Prontificou-se Alfonso.
Admirei a forma como ele demonstrava intimidade com as pessoas daquela casa.
- Nós mulheres... – Ressaltou Anahí empurrando-me de onde estava - Vamos nos aprontar para o evento.
Ela me levou para dentro do quarto, indo imediatamente para o meu closet. Remexendo as prateleiras e cruzetas, seus olhos brilhavam e soltavam vez ou outra suspiros de admiração. A loira segurava muitos trajes próximo dos nossos corpos simulando como ficariam em nós e qual cor nos cairia melhor.
- Você tem tantos vestidos lindos, Dulce! - exclamou deslumbrada.
- Se gostar de algum, pode usar.
- Nossa, eu agradeço muito por isso! – sua expressão exaltou parecendo aguardar a minha oferta - Vamos nos arrumar juntas.
Quando Anahí tomou a decisão, Maitê entrou às pressas fechando a porta por trás de si, recostando-se nela.
- Socorro! Christian não me larga! - todas demos uma sonora gargalhada - Posso me juntar a vocês?
- Não só pode como vai! Venha até aqui – convidei.
Começamos a bagunçar tudo. As roupas foram lançadas para todos os lados. Meu closet era grande e cheio de peças que nunca sequer havia experimentado. Muitas eram presentes de Galavar. Ele no mínimo três vezes ao mês enviava modistas e costureiras para tirar medidas e confeccionar novas peças.
Anahí escolheu um vestido rosa claro, bem justo, com mangas apertadas. O espartilho de cima era de renda com bordas lilás. Eu já optei por um vestido azul escuro de alças largas e longas que iam até os punhos e um corcel preto. Maitê pegou algo mais confortável. Um vestido longo e branco sem marcações, algo que evidenciasse sua atual situação. Nossos cabelos foram penteados e amarrados como de costume para então descermos e começar a participar da pequena comemoração.
Assim que descemos a escadaria principal, nos deparamos com uma quantidade considerável de pessoas. Confesso que não pensei que havíamos nos demorado tanto no closet.
Christian e Alfonso brindavam com as taças cheias de vinho, virando-as sem juízo algum. As duas mulheres que entes me acompanhavam correram na direção de seus maridos dispostas a assumir seus postos. Aproveitei para cumprimentar alguns conhecidos que estavam por lá e mostrar o máximo de cortesia possíveis. Obviamente foi inevitável deixar de ouvir questionamentos sobre a ausência de meu marido. Todos perguntavam quando seria sua chegada, e para a surpresa deles eu pouco lhes dava retorno. Como poderia responder algo que não sabia? Tentei várias vezes mudar de assunto falando de coisas triviais o que por sorte obtive sucesso. Aquelas pessoas eram fúteis então só me restava dar a elas o que queriam. Assuntos fúteis que as cativassem.
Depois de muita formalidade sentei-me em um sofá, assistindo os convidados dançarem e beberem ao som da orquestra animada. Dei vários sorrisos sempre que avistava Mercedes sendo rodopiada por Sebastião. Ela estava toda envergonhada e me encarava sem saber o que fazer. Bati palmas e falei - divirta-se!
Ela conseguiu ler meus lábios, o que a fez rir.
Christian cedeu aquele espaço para a burguesia e o proletariado, o que foi uma união no mínimo polemica. Os ricos e poderosos se incomodavam como a diversidade do lugar, mas nem um era capaz de opinar nos gostos de um Galavar. Todos faziam questão de estar em eventos promovidos por aquela família, seja lá como fossem.
Senti um constrangimento ao imaginar como Christopher ficaria se estivesse presente. Será que ele ia estar conosco ou se recusaria a celebrar? Tudo era bem incerto, contando com o retorno da sua personalidade imparcial e dura de leviandade. A lembrança me fez sentir a mesma sensação de frio na barriga de quando ele voltou a me olhar com frieza. Aquela foi nossa última troca de olhares.
- O que uma dama tão bela faz sentada sozinha? - virei-me de imediato para buscar de onde vinha aquela voz.
Era um homem bem alto, de cabelos loiros e ondulados. Os seus olhos azuis conseguiam ser mais escuros que os de Anahí. Podia ser por suas pupilas estarem dilatadas, evidenciando um nível inadequado de álcool.
- E quem se interessa em saber?
- Desculpe-me, que indelicado sou – disse cuidadoso - Me chamo, Emanuel - Respondeu estendendo uma das mãos para pegar a minha em cumprimento.
- Muito gosto. Sou, Dulce Galavar - Respondi entregando minha mão. O homem a beijou com um sorriso satisfeito.
Aquele nome me era familiar, mas não consegui relembrar no mesmo segundo.
- Concede-me esta alegre dança?
- Não acho muito agradável e... - Ele me interrompeu.
- Não me faça esta desfeita. Vejo que é a única sentada e tenho certeza que isto não lhe fará mal algum.
Nisso o desconhecido tinha razão. Todos dançavam alegres e eu gostava de dançar, então decidi aceitar o convite. Ele me levou até o meio da aglomeração para começarmos os passos. Emanuel girou-me e efetuou a coreografia com alguns erros, mas nada exorbitante. Alguns deles eram novos e desconhecidos para mim. Demos gargalhadas pela minha falta de coordenação em giros solitários. Mesmo com cheiro de malte transbordar de seu corpo o homem tentou não perder a compostura. Dançamos por horas e aquilo me fez transpirar mais que o habitual. Meu penteado não manteve a mesma forma, deixando vários fios ruivos caírem sobre o meu rosto. Em um dos giros me desprendi dele indo de encontro com Anahí e Maitê. Elas estavam em um estado similar ao meu. Nós três giramos e pulamos no meio do salão central, sob os olhares de todos os rapazes do lugar.
****
Após ser deixado de lado, Emanuel andou na direção dos anfitriões que estavam paralisados observando a exibição de beleza daquelas três mulheres.
- Que as três são lindas, isso é fato. Chega a ser um pecado - ressaltou ele, dando um curto gole no novo copo de whisky.
- Concordo. Com as três juntas é possível perceber como seria difícil escolher alguma delas - Christian deu tapa no ombro de Alfonso, que sorriu pela demonstração enciumada.
- A de cabelos escuros, nem se atrevam a olhar mais que dois segundos – gabou-se – Ela é minha, e é por ela que tudo isso está acontecendo agora – suspirou – Será a mãe do meu primogênito.
- Mas que a verdade seja dita - Ressaltou Emanuel, levantando um copo de bebida em brinde. Os homens já estavam com seus sentidos abatidos pelo álcool.
- E Thomas, como está? Não o vi ainda – Perguntou Christian.
- Thomas? – Emanuel tentou lembra-se do amigo por cima da sua embriaguez - Ele está viajando pelo ocidente com o pai. Ao que parece conseguiram novas vias de exportação e vão se mudar para lá –
-Tomou algum jeito? Lembro-me que ele é um desocupado que só gosta de festas e mulheres.
- E existe algo melhor que isto senhores? – A fala dele fez ambos o encararem envergonhados - Falando em grandes homens, Christopher já disse quando retorna?
- Por enquanto nada. É possível que venha para o nascimento do sobrinho. Já mandamos uma carta avisando.
- Agora entendo por que ele não retornava os convites de Thomas e os meus. O sumiço por tanto tempo – ele endireitou a coluna e olhou para Dulce por cima do copo de bebida - Com uma mulher dessas eu provavelmente não sairia de casa com facilidade.
Mesmo com o copo sendo emborcando num gole, Alfonso e Christian perceberam o olhar de cobiça do amigo. Eles se entreolharam suspeitando do elogio.
****
A noite tardou mais do que o previsto e eu não entendia como consegui disposição para dançar por tanto tempo. Meus pés latejavam e doíam. Anahí e Maitê pareciam tão leves e relaxadas quanto eu. Olhei para os lados e me despedi delas indo descansar na cozinha e beber um pouco de água. La era um dos lugares da casa que tinha o menor fluxo de pessoas. O mais tranquilo também.
Me servi na moringa e enquanto bebia o líquido refrescante, cantarolei uma das melodias. Enfeitiçada pela canção movi o corpo suavemente no ritmo, dando de frente com a face de Emanuel recostado observando-me próximo da porta de entrada do local. Ele sorria divertidamente parecendo satisfeito com a minha exposição.
Meu rosto esquentou e logo larguei o copo com água, desconfortável com a situação.
- Há quanto tempo estava aí? - perguntei um tanto quanto assustada.
- Tempo suficiente para ter boas recordações - aquilo me deixou totalmente sem reação. Era notório que ele assistiu todo o episódio vergonhoso.
- Devia estar na sala com o restante dos convidados - falei tentando fazê-lo esquecer-me.
- Não me arrependo. Aqui estava bem melhor e sua voz é incrível. Está até agora em minha cabeça. – Elogiou aproximando-se de mim cada vez mais.
Eu recuei em defensiva começando a sentir medo. Olhei para os lados buscando alguém, mas estávamos sozinhos.
- Então se me der licença, já bebi água suficiente e estou de saída - ele já estava perto demais quando decidi tomar iniciativa de escapar dali.
Emanuel me encurralou próximo de uma das bancadas da cozinha, deixando um espaço mínimo entre os nossos corpos. Entrei em pânico, pensando nas piores coisa possíveis. Me acusei por ter tomado a decisão de andar desacompanhada na casa sabendo a grande quantidade de pessoas estranhas que estavam ali naquela noite.
Se qualquer pessoa entrasse ali veria apenas uma mulher casada ao lado de um homem fisicamente charmoso e solteiro, deduzi. Emanuel podia atrair qualquer mulher, mas a mim não agradou em nada.
- Porque a pressa... Sou tão desagradável assim?
- Não me tenha mal, mas essa situação é desagradável – expliquei recebendo um olhar ambicioso.
- Responda-me – perguntou em tom de audácia - Porque Christopher a deixou aqui? Eu sendo seu marido jamais faria tal ultraje.
Em silêncio por alguns segundos o encarei firme questionando até que ponto aquele homem ousaria chegar com suas insinuações. Era o comentário mais infeliz que podia ter ouvido naquele dia.
- Mas você não é nada meu e este assunto só pertence a Christopher e eu – pigarreei - Mais uma vez peço desculpas e insisto que preciso ir.
Emanuel colocou seu braço empatando novamente a minha passagem. Em fúria, lhe afrontei abismada pela insistência. O cheiro de álcool que vinha dele se tornou cada vez mais incômodo.
- Não se intimide, minha querida. Christopher e eu estamos acostumados a dividir as coisas - justificou-se com malícia, demonstrando seu nítido interesse.
Ele me olhava como uma presa fácil, indefesa. Confesso que naquele momento eu estava em desvantagem. Foi então que minha mente me forçou a associar aquele homem a uma conversa específica.
"Consegui duas belas mulheres dispostas a nos divertir. Elas estão na casa de Emanuel. Aguardam-nos..."
Aquele nome me soou familiar. Aquilo justificava o comentário tão desagradável e o comportamento atrevido. Era um dos amigos de Christopher. Minha mão foi dirigida ao seu rosto depositando em ali toda a minha fúria. Quando retirei a mão dele, elas queimavam. Esperei por alguma reação brava, mas ele apenas me admirou de forma descarada com um sorriso. Sua boca parecia saborear a situação toda.
Aquilo me fez despertar de forma divina. Recolhi toda a força do ódio reprimido para cuspir aquelas palavras.
- Você está equivocado, pois não sou objeto de compartilhamento algum. Sugiro que vá até os locais que você e meu marido frequentam e encontre a pessoa adequada para tal ato asqueroso. Seu estúpido insolente! - sai do local com os mais rápidos passos que pude dar.
Quando consegui sair por completo os passos foram firmes em direção à escada que dava acesso a área de cima. Meu rosto já não tinha mais sorriso ou alegria, só existia ali raiva e repulsa de imaginar o que acabara de me confrontar. Os hábitos nefastos dele há tempos não me atingiam.
****
Do outro lado, Alfonso e Christian perceberam a movimentação de Dulce e logo em seguida viram Emanuel sair do mesmo lugar que a mulher. O que mudava era apenas as expressões de cada um. Dulce parecia assustada enquanto o homem tinha a face rubra. Os dois eram espertos o suficiente para adivinhado o que havia acontecido. Eles se encararam indo na direção a Emanuel. Eles o abordaram no meio do caminho interrompendo seus passos.
- O que houve rapazes? - perguntou ao ser confrontado.
- O que fez com Dulce? - Alfonso o fuzilou, questionando-o.
- Mais fácil dizer o que ela fez comigo.
- Do que está falando? - Christian ficou confuso com a resposta.
- Ela me esbofeteou. Acreditam? Que mulherzinha temperamental é esta que meu amigo arrumou.
- Isso não ia acontecer do nada. Algo a deixou irritada.
- Só percebi que ela não gosta de elogios – disse dando de ombros – E eu vou embora. Christian, meus parabéns! Espero que me convide para a festa do nascimento do seu herdeiro.
Emanuel andou depressa para a saída da casa sem olhar para trás. Ele sabia que a atitude de Dulce era justificável, mas não lhe agradou.
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