Som
Você nunca desiste Mica, e esse momento não é uma exceção. Tantas pessoas dependem de você, essa é a hora de ser forte. Mas esse lugar não faz o menor sentido. Parece que fazem séculos que eu ando e giro por esses corredores, e tenho certeza que os lugares estão se repetindo. A única coisa que tenho para me guiar, são os sussurros metálicos que vem das paredes. As moléculas de metal separadas, firmes, vibram quando o ar passa por entre elas como as cordas de um violão embaixo dos meus dedos. As vezes são barulhos agudos, outras vezes graves, mas diferente das agonias de antes, dessa vez eram claros e límpidos.
Eu era uma pedra por dentro, totalmente enrijecido e paralisado pelos medos e inseguranças que comiam a minha carne. Então eu me lembrei dela, e a forma como seus olhos escuros percorrem toda a superfície do mundo, despindo igualmente pessoas e animais e árvores de suas respectivas roupas, folhas e pelugens. Ela queimava com uma chama sobrenatural, uma motivação infinita que nunca se dobrava ou diminuía não importava a tempestade que desabava por cima de seus cachos. Eu tinha que ser assim, eu precisava ser assim também, mas Nyx, eu sou o metal e você é o fogo. Talvez o calor primordial que formasse as alianças, derretesse as pedras juntas na fornalha e fizesse aquele brilhante aro dourado fosse a minha salvação. Talvez o incêndio que matou nossas famílias fosse uma circunstância adversa que nos tivesse moldado. Talvez nossos laços tivessem sido ainda mais aprofundados, talvez eu tivesse derretido, cada uma das minúsculas partículas do metal se aproximando, formando algo sólido, como se as minhas entranhas estivessem sendo esmagadas debaixo dessa infinita pressão para me diminuir a um único pedaço quadrado de pedra.
Você era capaz de aguentar qualquer coisa, ser qualquer coisa, e eu me sentia cada vez mais fraco como se eu fosse feito de prata gasta, oxidada pelo tempo, manchada de preto. E com esse mesmo oxigênio você cresceu, se tornou mais forte, um titânico pilar de fogo e lava, caindo sobre o mar e subjugando todos ao seu calor, criando terras e dando vida. Você era o fogo que dava a vida. E eu era a terra que crescia depois da lava secar, cada um dos insetos e fungos que cresciam sobre as cascas das árvores centenárias. Então eu tentei canalizar esse movimento rápido e compassado que se fundia com as ondas sonoras, e no breu absoluto eu consegui ver onde eu estava. Talvez eu realmente tivesse me tornado outra coisa, talvez um morcego ou uma toupeira cega, mas os contornos dessa cova se estendiam por quilômetros para dentro do chão e para cima, serpenteando como uma cobra quadrada e cheia de buracos.
Eram câmaras, milhares delas, uma escada que ia por todas as direções desafiando a gravidade e o sentido. Cada uma das câmaras parecia ter sido esculpida diretamente da rocha que era fria como granito. As dobras retas e perfeitamente simétricas não tinham como ter sido feitas por mãos humanas, e muito menos fabricas, elas eram diretamente cortadas no seio da terra por algo muito além do meu entendimento. Andei em frente, e depois corri dando passadas largas, até que cai dentro de uma das salas. Sua porta, se é que podia ser chamada de porta, era uma nuvem escura que não deixava nenhum brilho passar, e do outro lado, eu estava no meio da cidade.
Tudo se encontrava paralisado, os carros parados no meio das ruas, as pessoas em movimento e às vezes paradas no ar mantinham expressões de todo tipo, a fumaça e os líquidos estavam grudados no ar como se eu tivesse entrado em uma pintura que o pintor tirou um momento para tomar um copo de café, seus pincéis ainda sujos repousavam no avental e as cores ainda não misturadas repousavam incompletas. Por cima de todo o silêncio, como uma nota desafinada de flauta, eu conseguia ouvir algo. Pelo volume do som era algo pequeno, mas de alguma forma importante como um anel de brilhantes ou uma moeda antiga. Quando olhei para trás, a porta havia desaparecido e eu estava sozinho na foto congelada. Ainda assustado com a probabilidade do movimento, tentei correr pelas calçadas e desviar das pessoas que se mantinham firmes como estátuas até encontrar o motivo do barulho.
Quando percebi onde estava, um frio desceu pela minha espinha como a unha enegrecida de uma bruxa, e os detalhes foram se tornando menos enevoados, quando o antiquário pairou sobre mim como um túmulo antigo, sua forma se destacando no meio da pintura. Não era o que eu conhecia, era assustador e perturbado, os contornos eram cinzentos e sombrios, a porta parecia aberta e ameaçadora como uma garganta aberta, os conteúdos de suas vidraças não tinham mais sido tirados de sonhos e sim de pesadelos, armaduras antigas saíram com lanças e e espadas enferrujadas que faziam ruídos horríveis, os copos rolavam de forma ameaçadora e os pratos se levantavam e caíam no chão como projeteis.
E por fim, saindo de dentro da porta como algo criado diretamente do abismo, um enorme pássaro disforme, suas asas negras pingavam óleo ou qualquer coisa que lembrasse óleo, seu bico era branco e cadavérico, comprido o suficiente para atravessar um homem no meio e certamente forte o suficiente. Ele saiu e abriu suas asas se mostrando, as penas frouxas e descabeladas caíam no chão, seus olhos amarelos brilhavam com uma intensidade demoníaca e suas garras amarelas estavam fechadas com uma corrente dourada polida. Eu me perguntei por um momento de paz se havia algo ainda mais absurdo nas outras salas da caverna, mas tive que abandonar esse pensamento para apertar meus ouvidos com força quando a criatura deu o grito mais cortante que havia ouvido na vida, sua voz fez o chão tremer e as vidraças se quebrarem. Eu precisava correr o mais rápido possível.
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